Sociedade

Brasil sem homofobia

Brasil sem homofobia

 

 

Maria Berenice Dias*

 

 

No Brasil realiza-se a maior parada gay do mundo, e isso há 3 anos consecutivos. São Paulo reuniu, no último dia 17 de junho, mais de 2 milhões e meio de pessoas em uma festa linda, marcada pelas cores do arco-íris: símbolo universal da diversidade. Depois do Carnaval,  é nossa maior festa em número de participantes.

 

Em todos os mais de 5.000 Municípios, há alguma entidade em defesa dos direitos humanos atenta ao tema da livre orientação sexual. Entre os movimentos sociais existentes são estes os de maior número. A ABGLBT – Associação Brasileira de Gays, Lésbicas, Bissexuais, Transexuais e Travestis – congrega mais de 200 entidades.

 

Mas há mais. O programa nacional intitulado “Brasil sem Homofobia” visa a combater a violência e a discriminação contra os homossexuais e a promover a cidadania, atentando à diversidade de gênero. Este é o maior plano de ações governamentais já implantado e envolve todos os setores do governo em todos os níveis: federal, estadual e municipal. O próprio governo federal, inclusive, criou um observatório – do qual tenho o privilégio de fazer parte – que se destina a cobrar a implementação dessas medidas.

 

Em nível federal, há o Conselho Nacional de Combate à Discriminação, ligado à Secretaria Especial de Diretos Humanos, e, na maioria dos 26 Estados, existem conselhos visando à implantação de políticas públicas em prol dos direitos à identidade homossexual. O Programa Nacional DST/AIDS destaca-se como exemplo no panorama internacional com o seu programa de combate à AIDS.

 

Tudo isso leva a crer que o Brasil é o melhor dos mundos: não existe discriminação, reina o primado dos direitos humanos, e é absoluto o respeito às diferenças. No entanto, infelizmente esta não é a realidade do nosso País. Talvez o dado mais chocante seja o fato de não existir nenhuma lei que reconheça direito aos parceiros do mesmo sexo. A omissão é total, mesmo sendo o Código Civil bastante recente, do ano de 2003.

 

Nada é reconhecido, nem a união civil e muito menos a possibilidade do casamento.

 

Projeto de lei buscando o reconhecimento da parceria civil, do ano de 1995, nunca chegou a ser votado. As reações são violentas. Apesar de o Brasil ser considerado um país católico, a maioria do Congresso Nacional é formada por integrantes de igrejas evangélicas, segmento religioso que tem crescido muito, dispõe de grande poder econômico e vem dominando até os meios de comunicação. Assim, somam-se as forças conservadoras que impedem a aprovação de qualquer lei que busque reconhecer algum benefício à parcela da população alvo de tanta discriminação e preconceito.

 

Este obstáculo, que vem sendo visto quase como instransponível, tem levado à aprovação de algumas leis, de alcance estadual e municipal, com medidas de repressão a atitudes homofóbicas. Porém, os avanços mais significativos vêm sendo alcançados no âmbito do Poder Judiciário. É por intermédio das decisões judiciais que alguns direitos são reconhecidos. No entanto, o número dessas decisões ainda é escasso.

 

No ano de 2000, iniciei uma verdadeira cruzada, denunciando o injustificável preconceito contra as uniões que chamei de “homoafetivas” – expressão que mais diz sobre a natureza deste vínculo – na obra que, de forma pioneira, enfrentou os aspectos jurídicos das uniões de pessoas do mesmo sexo. A partir daí é que a Justiça começou a emprestar visibilidade e reconhecer alguns direitos a gays e lésbicas. Por isso, foi principalmente no sul do Brasil – região onde sou magistrada – que surgiram as decisões mais arrojadas e de vanguarda.

 

Mas a grande dificuldade ainda é abandonar o velho preconceito de ver tais uniões como uma sociedade de fato e as identificar como entidade familiar. Esta mudança se faz necessária, pois alguns direitos só podem ser reconhecidos no âmbito do Direito de Família, tal como direito a alimentos, direito de habitação, direitos previdenciários e, principalmente, direito à herança. Ora, enquanto visualizada como simples sociedade de fato, não se pode falar em família e, via de conseqüência, em direito sucessório.

 

O primeiro passo foi afirmar a competência das Varas de Família para julgar as ações envolvendo casais homossexuais. Depois, com o reconhecimento das uniões como uma entidade familiar, foi possível atribuir ao parceiro sobrevivente a condição de herdeiro e conceder-lhe direitos sucessórios.

 

 Recente decisão, também do Tribunal gaúcho, concedeu a adoção dos dois filhos à companheira da mãe adotante. Eles haviam sido adotados por uma das companheiras quando do nascimento, e, após 3 anos, sua companheira obteve na Justiça a adoção de ambos. Esta foi a primeira decisão que no Brasil acabou por reconhecer a possibilidade de adoção por um casal homossexual. Assim, as crianças passaram a ter duas mães, constando o nome de ambas no registro de nascimento.

 

Algumas ações propostas pelo Ministério Público no âmbito da Justiça Federal dispõem de efeito vinculante, ou seja, asseguram direito a todos. Assim, benefício previdenciário em decorrência da morte do parceiro e auxílio-reclusão, quando o parceiro estiver preso, passaram a ser pagos ao parceiro homossexual em sede administrativa, sem haver a necessidade de se buscar a via judicial. Igualmente a indenização decorrente do seguro obrigatório por morte em acidente de trânsito é deferida sem a necessidade de propor ação judicial.

 

Decisões sem efeito erga omnes, ainda que beneficiem somente as partes, acabam consolidando a jurisprudência, que indica novos rumos e abre caminhos, ainda que de modo vagaroso.

 

Mas os caminhos trilhados estão abertos – são conquistas que sinalizam novos tempos – e servem de paradigma para que a sociedade saiba o que significa o dogma maior da nossa Constituição Federal, que impõe o respeito à dignidade da pessoa humana.

 

E não há respeito sem igualdade, sem liberdade. O indispensável é garantir o direito à felicidade, o que todos buscamos e é o que desejo a todos vocês.

 

Obrigada.

 

 

* Desembargadora do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul. Vice-Presidente Nacional do Instituto Brasileiro de Direito de Família – IBDFAM

 

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Como citar e referenciar este artigo:
DIAS, Maria Berenice. Brasil sem homofobia. Florianópolis: Portal Jurídico Investidura, 2007. Disponível em: https://investidura.com.br/artigos/sociedade/brasil-sem-homofobia/ Acesso em: 07 out. 2024