Aspectos jurídicos do gênero feminino
Maria Berenice Dias*
Sumário: 1. Causas das diferenças; 2. Panorama legal; 3. O sistema jurídico atual; 4. Conclusões.
1. Causas das diferenças
Não se consegue identificar o momento a partir do qual restou a mulher relegada a uma posição de inferioridade. Da época ancestral, existe a figura do primata arrastando a fêmea pelos cabelos, após vencer eventual resistência mediante uma pancada na cabeça. Na Grécia antiga, as mulheres não podiam assistir às Olimpíadas, espetáculo reservado aos homens, que detinham a capacidade de apreciar o belo, ou seja, o corpo dos atletas, que competiam nus. Para os romanos, as mulheres não se encontravam sob a égide do jus gentium, pois eram consideradas “coisa”, como os animais, e sequer eram quantificadas nos censos. A Bíblia diz que a mulher foi extraída da costela de Adão, havendo dito o Senhor: Não é bom que o homem esteja só: façamos-lhe uma ajudante semelhante a ele (Gênesis 2,18).
Mesmo não se podendo identificar o tempo, e muito menos as causas, o fato é que a sociedade ocidental concedeu ao homem o espaço público e reservou à mulher o ambiente privado, nos limites da família e do lar. Essa duplicidade ensejou a formação de dois mundos: um de dominação, externo, produtor; outro de submissão, interno, reprodutor. Tal distinção estereotipada está associada aos papéis ideais do homem e da mulher: ele provendo a família, e ela cuidando do lar, cada um desempenhando a sua função. Instituídos diferentes padrões de comportamento, ao macho é outorgado um papel paternalista a exigir uma postura de obediência da fêmea. Assim, ao autoritarismo de um corresponde a submissão do outro.
Esse era o modelo de família do início do século passado, identificado pelo casamento. Era considerada a célula mater da sociedade, uma verdadeira instituição, em face da forte influência religiosa que vê o matrimônio como um sacramento. Ante a estrutura rural da época, a família possuía uma formação extensiva, com numerosa prole, constituindo uma verdadeira unidade de produção, com os filhos, parentes e agregados servindo de mão-de-obra. O patriarca era a figura central, quem tomava as decisões e administrava o patrimônio. A família de então tinha as seguintes características: era matrimonializada, patrimonializada, patriarcal, hierarquizada e heterossexual.
2. Panorama legal
Esse perfil da família serviu de base para a edição do Código Civil de
Com o casamento, a capacidade civil da mulher se relativizava, passando a se equiparar aos pródigos e silvícolas. Também necessitava ela da autorização do marido para o exercício de qualquer atividade. O homem era o chefe da sociedade conjugal, o cabeça-do-casal, quem administrava os bens da esposa e dos filhos. Mais: o eventual desvirginamento da mulher, desconhecido pelo marido, era causa para a anulação do casamento.
De tal ordem era a sacralização da família, que, mesmo sendo possível o desquite, permanecia a indissolubilidade do vínculo matrimonial e a impossibilidade de novas uniões. A tentativa de manutenção do casamento fez a lei tornar indispensável a identificação do culpado pela separação. Sendo a mulher a responsável, perdia o direito de perceber alimentos e era condenada à perda do nome do marido.
Nesse contexto, nenhum relacionamento fora do casamento era reconhecido. A legislação, além de se omitir em regular relações extramatrimoniais, afastou qualquer possibilidade de se extraírem conseqüências jurídicas de vínculos afetivos outros, ligações tidas por espúrias. Proibiu doações, seguros, bem como a possibilidade de herdar. Os filhos havidos fora do casamento recebiam a pecha de bastardos e não podiam buscar o reconhecimento da paternidade enquanto o pai estivesse vivo ou casado.
A posição de inferioridade da mulher decorria das próprias características da família. Era necessária a mantença da autoridade do varão com a finalidade de preservação da unidade familiar. Só em 1932 é que adquiriu a mulher o direito à cidadania, quando foi admitida a votar. Em 1962, por meio do chamado Estatuto da Mulher Casada, teve ela implementada sua plena capacidade.
Esse perfil da estrutura familiar veio a sofrer mutações a partir da Revolução Industrial, quando as mulheres foram chamadas ao mercado de trabalho. Também as guerras, que levavam os homens ao fronte ou à morte, abriram espaço para a atividade laborativa feminina, principalmente para a prática de atividades terciárias e repetitivas, percebendo remuneração inferior.
Depois, em face das lutas emancipatórias, desfraldadas pelo movimento feminista, descobriu a mulher o direito à liberdade e passou a almejar a igualdade, questionando a discriminação de que sempre foi alvo. Com a emergente evolução dos costumes, somada ao surgimento de métodos contraceptivos, deixou a mulher de se tornar refém do medo da gravidez, o que a levou à descoberta do prazer feminino, forjando o que Norberto Bobbio – o maior filósofo contemporâneo – chamou de a maior revolução do século: a revolução feminina.
A mulher saiu do gueto familiar e adentrou no mercado de trabalho, no qual não ocupava qualquer espaço, adotando o paradigma masculino. Passou ela a participar, com o fruto de seu trabalho, da mantença do lar, o que lhe conferiu certa independência. Começou a cobrar uma maior participação do homem no ambiente doméstico, partilhando o cuidado com os filhos.
Essas mudanças acabaram se refletindo na própria composição da família, que se tornou nuclear, formada somente pelo casal e seus filhos.
Com o advento da Lei do Divórcio, em 1977, é que emergiram novos valores sociais referentes à dignidade da mulher e sua autonomia, liberdade e privacidade na área da sexualidade. Além da possibilidade de novo casamento, restou alterado o regime legal de bens para o de comunhão parcial, no qual só se comunica o patrimônio adquirido após o matrimônio. Passou a ser facultativa a alteração do nome em decorrência do casamento.
Também desapareceu o repúdio às relações extramatrimoniais, apesar da falta de respaldo legal à sua constituição. Esses novos modelos familiares, formados com pessoas que saíram de outras relações, fizeram surgir diversas estruturas de convívio, sem que seus componentes disponham de lugares definidos e uma terminologia adequada. Inexistem, na Língua Portuguesa, vocábulos que identifiquem os integrantes das novas famílias.
Quando do desfazimento desses vínculos, seus membros acabaram batendo às portas dos tribunais. Ante a falta de previsão legal, viram-se os juízes forçados a criar alternativas para evitar flagrantes injustiças. Foi cunhada, via jurisprudencial, a expressão “companheira”, como forma de contornar as proibições para o reconhecimento de direitos.
A fim de evitar enriquecimento injustificado, aplicou-se, por analogia, o Direito Comercial. Em face da aparência de uma sociedade de fato entre os convivas, passou-se a determinar a partição do patrimônio amealhado durante o período de vida em comum. Quando ausentes bens a serem partilhados, chegou-se a ver configurada verdadeira relação laboral, para dar ensejo ao pagamento de indenização por serviços prestados. Surgiram esses mecanismos, sem jamais se reconhecer que se estaria na presença de uma sociedade de afeto, e não uma sociedade de fato.
3. O sistema jurídico atual
A Constituição Federal de 1988, que surgiu com ares de modernidade, operou profundas alterações no campo das relações familiares. Ao estabelecer a plena igualdade entre o homem e a mulher, acabou por revogar toda a legislação que dava primazia ao homem. Alargou o conceito de família, passando a integrá-lo as relações monoparentais, formadas por um dos pais com seus filhos. Também afastou qualquer distinção na filiação, dando fim à odiosa classificação que discriminava os filhos em decorrência da postura de seus pais.
Esse redimensionamento acabou afastando da idéia de família o pressuposto do casamento. Para sua configuração, deixou de se exigir a existência de um par, o que, conseqüentemente, subtraiu de seu conceito a finalidade de proliferação.
Também a Carta Constitucional enlaçou no conceito de família a união estável entre um homem e uma mulher, emprestando juridicidade ao relacionamento existente fora do casamento. Assim, deixou de ser o casamento o marco a identificar a existência de uma família e o único sinalizador do estado civil das pessoas.
Apesar da profundidade das alterações levadas a efeito, faltou coragem aos juízes, pois não conseguiram visualizar o dimensionamento da nova ordem jurídica. Não houve qualquer avanço na concessão de direitos além dos que já vinham sendo deferidos antes da constitucionalização do conceito de família.
Somente com o advento das leis que regularam a união estável – e isso em 1994 e 1996 – é que se começou a conceder alimentos, reconhecer o direito à herança, à habitação e de usufruto aos partícipes dessas relações.
A Constituição, ao reconhecer a existência de entidades familiares fora do casamento, restringiu-se a emprestar juridicidade às relações heterossexuais. Por absoluto preconceito de caráter ético e moral, deixou de regular outras espécies de relacionamento que não têm como pressuposto a diversidade de sexos.
No entanto, mesmo com a atual conformação do Direito de Família, ainda não ocorreu a alteração da legislação infraconstitucional, permanecendo no bojo do Código Civil[1] todas as regras de hierarquização da família.
4. Conclusões
Ainda que o atual panorama legal não permita tratamento desigualitário em função do sexo, para o fim da discriminação não basta a consagração constitucional da igualdade.
O princípio da igualdade formal não é absoluto, é um conceito relativo, impõem-se diferenciações para tornar materialmente iguais entes desiguais. Mister acentuar as diferenças, para que se implementem políticas públicas que dêem um tratamento prioritário às questões de gênero. Por isso, indispensável a adoção de ações afirmativas que busquem o estabelecimento da igualdade material por meio da igualdade de oportunidades.
Por mais que seja irreversível, a trajetória das mulheres ainda está muito condicionada à função reprodutora. A santificação da maternidade impõe-lhe um comprometimento exclusivo com relação aos filhos, o que leva à chamada síndrome da abnegação feminina. Normalmente, falta-lhe um projeto de vida próprio, o que traz graves problemas de identidade. Como a sociedade ainda possui uma visão estigmatizada da mulher, ligada mais aos seus dotes físicos do que a seus atributos intelectuais, difícil é o seu acesso ao poder.
No Executivo, afora algumas prefeituras de pequenas cidades, raras são as representantes do sexo feminino que têm participação política por iniciativa própria. As que chegam a se eleger normalmente entram na vida pública pelas mãos do pai ou do marido.
Igualmente, no Poder Legislativo, a chamada “bancada do batom” não chega a atingir 7% das câmaras legislativas, nas esferas federal, estadual ou municipal. Na tentativa de reversão desse quadro é que foi criada a denominada Lei das Cotas, que busca a inserção da mulher no cenário político.
No Poder Judiciário, cabe um questionamento de dupla ordem sobre a ocorrência de mudanças. As leis até agora foram feitas e aplicadas por homens. A presença de mulheres cada vez em maior número nos quadros da magistratura, no entanto, não tem levado a quaisquer alterações que ressaltem um enfoque de gênero. As mulheres são julgadas conforme representações sociais. Quando alguém perquire o comportamento moral da mulher, é por que a como provocadora da agressão de que foi alvo.
Talvez o mais surpreendente seja que, ainda quando conseguem as mulheres alcançar espaços até agora ocupados por homens, restam por reproduzir o modelo vigente. Acabam se tornando invisíveis para lograr aceitação. Enormes as dificuldades de afastamento das expectativas patriarcais, rompendo os códigos e os padrões legais vigorantes, para a implementação dos direitos de igualdade já conquistados pelo movimento feminista.
Mas não basta a edição de leis assegurando a ocupação dos espaços ou o aumento da participação das mulheres em determinados postos de poder para pôr fim à discriminação. Mister que as mulheres exerçam o papel de agentes modificadores dos padrões comportamentais vigorantes.
[1] A referência é ao Código Civil de 1916.
* Desembargadora do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul. Vice-Presidente Nacional do Instituto Brasileiro de Direito de Família – IBDFAM
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