As raízes da corrupção e da desigualdade: segunda parte
Mario Guerreiro*
Dando prosseguimento à entrevista do historiador José Murilo de Carvalho,
Reconhecendo o fato apontado, José Murilo começa dizendo que no Império a elite política “uma ilha de letrados num mar de analfabetos”. E acrescenta: “Naquele período, 85% da população era analfabeta, enquanto toda a elite tinha curso superior”.
No entanto, segundo pensa, esse quadro começou a se modificar a partir da década de 1930 e, com mais intensidade, após a Segunda Guerra com um processo de democratização e o aumento do número de eleitores.
Considera que durante o regime militar houve uma pesada industrialização e uma grande migração do campo para a cidade, mas isso concorreu para uma atenuação da desigualdade, porque a situação no campo era muito precária. Mas o Brasil ainda apresenta um dos maiores índices de concentração de renda do mundo.
Quanto a isto, não há a menor dúvida: é um fato lamentável, porém inegável. José Murilo se limita à afirmação do referido fato, sem tecer nenhuma consideração sobre as causas do mesmo.
De minha parte tenho uma explicação: são os bolsões de pobreza coexistindo com ilhas de prosperidade: é Imperatriz (MA) coexistindo com Campinas (SP), que constituem um desenvolvimento regional desigual. E isto é facilmente verificável nas próprias unidades da Federação: compare-se o próspero Triângulo Mineiro com o pobre norte de Minas.
O entrevistador indaga, então, se o sistema de cotas poderia atenuar as desigualdades históricas, principalmente em relação aos negros.
José Murilo não se mostra favorável a essa política pública, que “engessa muito a situação” segundo suas próprias palavras. Afirma que é a favor de ações afirmativas, desde que estas venham a beneficiar “setores historicamente prejudicados”, embora não explicite que setores são esses.
Talvez tivesse em mente setores possuidores de baixa renda, independentemente do fato de estes se comporem de negros, índios ou brancos. Dizemos isto, porque, logo em seguida, ele descarta explicitamente a relevância do fator racial.
“Falar em cotas raciais é ainda mais complicado. Porque se joga fora a grande tradição de miscigenação do país, o que sempre diferenciou o Brasil dos Estados Unidos e da África do Sul”.
De pleno acordo, o grau de miscigenação do Brasil é notadamente mais elevado do que o dos dois países mencionados. Segundo pensamos, isto dificulta bastante dizer quem é branco é quem é negro: a maior parte da população é, na realidade, mestiça, e isto para não falar na hereditariedade, naqueles que, como FHC, embora possam ser considerados brancos, “têm um pé na cozinha”, segundo sua própria declaração.
José Murilo, no entanto, não crê que a grande miscigenação da população brasileira tenha acabado com o preconceito racial. De fato, não acabou. Segundo pensamos, o preconceito no Brasil é muito mais um preconceito em relação ao pobre do que em relação ao negro. Mas José Murilo não diz nada sobre isso: prefere dar uma boa razão para a alegação de alguns defensores das cotas para negros de que tal medida acabaria com o preconceito racial no Brasil:
“Não, a miscigenação não acabou com o preconceito. Mas eu não acho que a melhor forma de combater um preconceito racial seja reforçando a raça”.
De pleno acordo: do ponto de vista biológico, “raça” é um conceito muito complexo, indo muito além do que os olhos podem perceber. Não faz muito tempo que na Universidade de Brasília dois gêmeos univitelinos se apresentaram para fazer o vestibular, um foi aceito pelo sistema de cotas, porque era “visivelmente” negro, o outro foi rejeitado, porque era “visivelmente” branco. Isto é o que se pode chamar de ciência do olhômetro.
“Raça pura” é uma noção preconceituosa que só existe na cabeça dos nazistas: todas as raças são impuras, pois apresentam maior ou menor grau de miscigenação.
Explicitando sua afirmação anterior de que reforçar a raça não é uma boa maneira de combater o preconceito, José Murilo menciona Joaquim Nabuco, para quem a escravidão no Brasil foi mais arguta por não obedecer a linha da cor, à medida em que escravos libertos e mulatos tinham também seus escravos. Deste fato histórico, ele faz uma acertada inferência:
“Isso teve um efeito bem ruim, enraizando a escravidão mais profundamente na sociedade. Mas o lado positivo é que não houve estratificação da linha da raça, que não ficou tão marcada quanto nos EUA”.
[Como se sabe, na Antiguidade, quase todas as sociedades eram escravocratas, e isto de uma maneira independente do fator “raça”. Povos vencedores escravizavam, ou vendiam como escravos, os vencidos. Isso não foi diferente na África em que tribos escravizam os derrotados de outras tribos, ou os vendiam para mercadores árabes que, por sua vez, os levavam para o litoral onde os vendiam para europeus].
O entrevistador se desloca então para a cena contemporânea e indaga se a chegada de Lula à Presidência não rompeu com a mencionada tradição histórica da formação da elite nacional.
Neste ponto permitam-me antecipar a resposta de José Murilo, apresentando minha maneira de compreender a pergunta. Entendida sob determinado ponto de vista, minha resposta é um decidido “Sim!”, porém entendida sob outro, um não menos decidido “Não!” Explico:
Se considerarmos a questão do ponto de vista da posição de classe social de nosso atual Presidente, diremos que rompeu com uma linhagem oligárquica que, desde o Império, esteve no Poder. Todos os governantes do Brasil, sem uma única exceção, eram filhos de famílias tradicionais, verdadeiras aristocracias urbanas ou rurais.
Como todos sabem, sendo Lula proveniente da classe proletária, representou um rompimento com a referida oligarquia. Mas se por acaso isto for visto como um fator positivo, uma evidência da democratização do Poder, discordaremos veementemente, pois a posição de classe do Presidente não lhe confere automaticamente nenhum mérito como um inovador do cenário político tradicional: ao contrário, nunca tivemos uma elite de Poder tão corrupta e incompetente, salvo honrosas exceções de alguns de seus membros.
Neste sentido, não podemos falar em democratização, mas sim na emergência da pior forma de democratismo com nítidas tendências ao totalitarismo, haja vista sua condescendência com os famigerados Sem Terra, seu alinhamento com o ditador da Venezuela e sua aberta simpatia pelo terrorismo islâmico.
Mas José Murilo pensa de uma maneira bastante diferente da minha, embora concordemos em alguns pontos. Começa dizendo que “Quando Lula foi eleito, eu usei a expressão ‘um grande orgasmo político nacional’. Era gente diferente no poder, gente mais próxima do povo”.
Certamente, o próprio José Murilo gozou bastante em seu indisfarçável populismo; mas, para usar expressão do mesmo calibre do que a dele, tudo o que eu experimentei, por ter que engolir um “sapo barbudo” – a expressão é da lavra do finado Brizola – foi uma terrível diarréia.
Mas José Murilo prossegue: “Era um partido que se diferenciava dos demais por ter uma ideologia e por defender uma ética pública”. [obs.nossa: Cuja conseqüência mais palpável foi o Mensalão].
“Mas a verdade é que para vencer, para passar daquele patamar histórico de 35% de votos, Lula teve que assumir determinados compromissos, sobretudo com a manutenção da política econômica do governo anterior”
Aqui José Murilo assume o ponto de vista das chorosas viúvas de Lula, aquelas mesmas que desejavam que Lula rompesse com o FMI dando calote na dívida externa, produzisse desenvolvimento à custa de uma hiperinflação – como mandam os iluminados da CEPAL -, e cumprisse todas as promessas feitas anteriormente à Carta ao Povo Brasileiro. Porém, como ele não as cumpriu, as viúvas insatisfeitas migraram para o PSTU e o PSOL da incendiária Heloísa Helena.
“No escândalo do mensalão, ficou claro que a chegada ao poder tinha corroído a tão trombeteada ética petista”. Colocando as coisas desse modo, José Murilo pretende insinuar que o PT era um partido ético e com boas intenções, mas que se corrompeu ao chegar ao “Puder”. Oh! santa ingenuidade! Ele acreditou no discurso eleitoreiro do PT e de Lula!
Minha versão é que, chegando ao poder, Chapeuzinho Vermelho virou Lobo Mau, ou seja: Lula e o PT arrancaram suas máscaras de santinhos e de puras vestais e mostraram sua verdadeira face que é simplesmente horrenda.
Para não despejar toda a culpa nas péssimas intenções do PT e de Lula, José Murilo – mestre na aplicação de panos quentes – quer nos fazer crer que a culpada é a tradição clientelista do Brasil. E não esconde sua mineirice ao dizer logo em seguida : “Mas há muitos pontos positivos no governo Lula”. Ao que o entrevistador pergunta imediatamente: “Quais?”
A resposta de José Murilo é simplesmente decepcionante: “A ampliação do bolsa família e a sua enorme capacidade de comunicação com a opinião popular”. É impressionante como, após ter criticado duramente a “tradição clientelista brasileira”, ele aponta uma política pública descaradamente clientelista como coisa positiva!
Quanto à enorme capacidade de comunicação com a “opinião popular”, isto é um fato inegável. Trata-se de uma capacidade que tem que ser realmente possuída por todo demagogo bem sucedido ou propaganda enganosa bem elaborada. Tanto pode ser sinal de mérito quanto de demérito, tudo dependendo dos efeitos produzidos pela comunicação.
Lembramos que tanto Cristo como Hitler podem ser considerados líderes carismáticos.
* Doutor em Filosofia pela UFRJ. Professor Adjunto IV do Depto. de Filosofia da UFRJ. Ex-Pesquisador do CNPq. Ex-Membro do ILTC [Instituto de Lógica, Filosofia e Teoria da Ciência], da SBEC [Sociedade Brasileira de Estudos Clássicos]. Membro Fundador da Sociedade Brasileira de Análise Filosófica. Autor de Problemas de Filosofia da Linguagem (EDUFF, Niterói, 1985); O Dizível e O Indizível (Papirus, Campinas, 1989); Ética Mínima Para Homens Práticos (Instituto Liberal, Rio de Janeiro, 1995). O Problema da Ficção na Filosofia Analítica (Editora UEL, Londrina, 1999). Ceticismo ou Senso Comum? (EDIPUCRS, Porto Alegre, 1999). Deus Existe? Uma Investigação Filosófica. (Editora UEL, Londrina, 2000) . Liberdade ou Igualdade? ( EDIPUCRS, Porto Alegre, 2002). Co-autor de Significado, Verdade e Ação (EDUF, Niterói, 1985); Paradigmas Filosóficos da Atualidade (Papirus, Campinas, 1989); O Século XX: O Nascimento da Ciência Contemporânea (Ed. CLE-UNICAMP, 1994); Saber, Verdade e Impasse (Nau, Rio de Janeiro, 1995; A Filosofia Analítica no Brasil (Papirus, 1995); Pré-Socráticos: A Invenção da Filosofia (Papirus, 2000) Já apresentou 71 comunicações em encontros acadêmicos e publicou 46 artigos. Atualmente tem escrito regularmente artigos para www.parlata.com.br,www.rplib.com.br , www.avozdocidadao.com.br e para www.cieep.org.br , do qual é membro do conselho editorial.