A mulher do século XXI
Maria Berenice Dias*
A presença paritária de homens e mulheres nos bancos acadêmicos, no mercado de trabalho, na direção de veículos, enfim, na sociedade talvez não permita ver que a discriminação contra a mulher ainda existe. Prova disso é a presença rarefeita de mulheres nos órgãos de cúpula do poder, sua ausência no STF[1] e sua escassa participação no cenário político.
As raras conquistas, os pequenos avanços, no entanto, têm levado a uma verdadeira acomodação. As mulheres se dão por satisfeitas, tentando se convencer de que, diante da igualdade constitucionalmente consagrada, nenhuma diferença persiste. Melhor é não ver que ainda percebem salários um terço menores do que os dos homens. Mais fácil é ridicularizar as feministas, repetir o modelo patriarcal e subjugar-se ao poder masculino.
Mas é no âmbito da família que a submissão é mais visível. A mulher é a grande vítima da violência doméstica. É o crime cometido com mais freqüência, é o menos denunciado e normalmente não é punido.
A verdadeira sacralização da família interessa ao Estado, que lhe delega a função de formar o cidadão de amanhã, tarefa que quase sempre recai sobre os ombros femininos. Apropriando-se dos vínculos afetivos entre homens e mulheres, a lei transformou ditos relacionamentos em casamento, elo em um primeiro momento indissolúvel. Verdadeira instituição cercada de formalismo, com interesses de ordem patrimonial. O casamento atribuiu direitos e deveres aos cônjuges, imposições muitas vezes sequer desejadas pelo par. O vínculo jurídico gerado pelo matrimônio, ainda que agora já possa ser desfeito, é mantido independente da vontade dos cônjuges. Só cabe deferir a separação mediante a identificação de um culpado, como que se buscando punir quem simplesmente ousa não querer mais continuar casado.
A liberação dos costumes – que decorreu da chamada revolução feminina, da inserção da mulher no mercado de trabalho, do surgimento dos métodos contraceptivos – levou à quebra da ideologia patriarcal. De outro lado, a evolução da engenharia genética, ao gerar formas reprodutivas independentes de contatos sexuais, acabou por redimensionar o próprio conceito de família. Não mais é exclusivamente a união de um homem e uma mulher, unidos pelos sagrados laços do matrimônio. A presença do afeto é o que basta para a identificação de uma entidade familiar, em que se inserem tanto as chamadas uniões estáveis como as famílias monoparentais e as relações afetivas homossexuais, melhor nominadas de relações homoafetivas.
No limiar deste novo século, estamos em um período de transformações, fazendo-se necessário pensar e repensar a relação entre o justo e o legal. O surgimento de novos paradigmas familiares leva a rever os modelos preexistentes, para que todos sejam enlaçados sob o manto do Direito de Família.
A sociedade, no entanto, ainda se encontra regida pelo Código Penal, editado em 1940, que considera crime o adultério, e pelo Código Comercial, que data de 1850 e que exige a autorização do marido para a mulher praticar atos de mercancia. O Código Civil vige desde 1916 e ainda autoriza o pedido de anulação de casamento no caso de ser desconhecido do marido o defloramento da mulher. Para substituí-lo, o Projeto de Lei que cria um novo Código Civil se arrasta por mais de um quarto de século no Congresso Nacional.
O surgimento do atual modelo de família leva à necessidade de rever posturas revestidas de conservadorismo, devendo-se atentar na liberdade como um dos pilares do Direito.
Para que se resgate a credibilidade da Justiça e se acredite em um Direito mais legítimo, mais sensível, mais voltado à realidade social, é mister que a mulher ainda empunhe suas bandeiras e prossiga na luta pela igualdade, direito que está calcado muito mais no reconhecimento da existência de diferenças.
(Artigo publicado no Jornal da ABMCJ, nº 03, set/out 2000, p. 04; Jornal Zero Hora, Porto Alegre – RS, 28/11/2000; Jornal AMB Informa, nº 10, dez/2000, p. 25; Presença Literária 2003, edição comemorativa ao 60º aniversário da Academia Literária Feminina/RS, p. 95/96, e Manancial – Sesmaria Cultural de Dom Pedrito, Editora Rigo, Dom Pedrito – RS, 2004, p. 121-122).
[1] A assertiva corresponde ao ano de 1999, data de elaboração do texto.
* Desembargadora do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul. Vice-Presidente Nacional do Instituto Brasileiro de Direito de Família – IBDFAM
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