A homoafetividade e a Justiça
Maria Berenice Dias*
O conceito de família mudou e os relacionamentos homossexuais – que passaram a ser chamados de uniões homoafetivas – vêm adquirindo visibilidade. O legislador intimida-se na hora de assegurar direitos às minorias alvo da exclusão social. O fato de não haver previsão legal para específica situação não significa inexistência de direito à tutela jurídica. Ausência de lei não quer dizer ausência de direito, nem impede que se extraiam efeitos jurídicos de determinada situação fática. O silêncio do legislador deve ser suprido pela justiça, que precisa dar uma resposta para o caso que se apresenta a julgamento.
A omissão da lei dificulta o reconhecimento de direitos, o que faz crescer a responsabilidade do juiz. Em face da resistência de ver a afetividade nas relações homossexuais, foram elas relegadas ao campo obrigacional e rotuladas de sociedades de fato a dar ensejo a mera partilha dos bens amealhados durante o período de convívio, mediante a prova da efetiva participação na sua aquisição.
A mudança começou pela Justiça gaúcha, que definiu a competência dos juizados especializados da família para apreciar as uniões homoafetivas, as inserindo no âmbito do Direito de Família e deferindo a herança ao parceiro sobrevivente.
Na esteira dessa decisão, que alcançou repercussão de âmbito nacional, encorajaram-se outros tribunais e, com significativa freqüência, são divulgados novos julgamentos adotando posicionamento idêntico. Na medida em que se consolidou a orientação jurisprudencial – ainda que minoritária – emprestando efeitos jurídicos às uniões de pessoas do mesmo sexo, começou a se alargar o espectro de direitos reconhecidos aos parceiros quando do desfazimento dos vínculos homoafetivos.
Também são do Rio Grande do Sul as decisões que vêm deferindo a adoção aos parceiros do mesmo sexo. Também são do Rio Grande do Sul as primeiras decisões deferindo a adoção aos parceiros do mesmo sexo. Esta orientação também se alastra no país e um punhado de crianças que se encontravam depositadas em abrigos agora te um lar e dois pais ou duas mães.
Há que reconhecer a coragem de ousar quando se ultrapassam os tabus que rondam o tema da sexualidade e se rompe o preconceito que persegue as entidades familiares homoafetivas. Essa nova postura mostra que o Judiciário tomou consciência de sua missão de criar o direito. Não é ignorando certos fatos, deixando determinadas situações a descoberto do manto da juridicidade, que se faz Justiça. Condenar à invisibilidade é a forma mais cruel de gerar injustiças e fomentar a discriminação, afastando-se o Estado de cumprir com sua obrigação de conduzir o cidadão à felicidade.
A Justiça não é cega nem surda. Precisa ter os olhos abertos para ver a realidade social e os ouvidos atentos para ouvir o clamor dos que por ela esperam. Mister que os juízes deixem de fazer suas togas de escudos para não enxergar a realidade, pois os que buscam a Justiça merecem ser julgados, não punidos.
* Desembargadora do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul. Vice-Presidente Nacional do Instituto Brasileiro de Direito de Família – IBDFAM
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