“Dispõe sobre o Processo Administrativo Fiscal e cria o Conselho Municipal de Tributos”
1. ASPECTOS NEGATIVOS DO PL
Iniciaremos nossa análise crítica do PL nº 617/05 pelos aspectos que entendemos nocivos à ordem jurídica e aos direitos dos contribuintes e que, portanto, merecem ser reavaliados no decorrer do processo legislativo.
1.1. ARTIGO 2º, § 1º, INCISO III – INTIMAÇÃO POR MEIO ELETRÔNICO
O artigo 2º, §1º, inciso II, do PL, estabelece que as notificações poderão ser realizadas por meio eletrônico, conforme dispuser o regulamento.
Ainda que o avanço tecnológico tenha alcançado grande parte da população, a notificação por meio eletrônico encontra alguns empecilhos, os quais, a nosso ver, devem ser corrigidos expressamente já no texto legal.
De fato, devem ser observados os seguintes aspectos:
· endereço eletrônico no qual o contribuinte deverá ser notificado;
· momento a partir do qual se presume a sua intimação; e
· contagem do prazo para manifestação ou pagamento.
Entendemos que esta disposição genérica, relegando ao Poder Executivo a atividade de definir como deverá ser essa notificação poderá ensejar óbice ao direito à ampla defesa.
Assim, entendemos que o mencionado dispositivo deve tratar mais pormenorizadamente a forma pela qual a notificação eletrônica será realizada, caso contrário, deve ser totalmente retirada do PL.
1.2. ARTIGOS 13 e 15 – ERROS OU OMISSÕES DA NOTIFICAÇÃO DE LANÇAMENTO E DO AUTO DE INFRAÇÃO
O artigo 13 do PL estabelece que as incorreções, omissões ou inexatidões da notificação de lançamento e do auto de infração não os tornam nulos quando deles constarem elementos suficientes para a determinação do crédito tributário, caracterização da infração e identificação do autuado.
É cediço que a identificação precisa, pela Administração, de todos os elementos que envolvem a exigência do tributo é pressuposto para a própria defesa do autuado.
O lançamento é o ponto de partida de todo o procedimento fiscal, de modo que, estando ele viciado, poderá ensejar sérios prejuízos ao procedimento e atuar contra os princípios de direito que o norteiam, como o do contraditório e o da ampla defesa.
Não se trata de rigorismo excessivo, mas, sim, do apego à forma, que é elemento imprescindível a assegurar a certeza e segurança que as relações no mundo do direito demandam.
Ademais, o dispositivo, tal como redigido, comporta elevado grau de subjetivismo. Afinal, qual é o critério preciso para, num auto de infração em que constem omissões e incorreções, afirma-se que há elementos suficientes para a determinação do crédito tributário?
Admitir-se isso é assumir um afrouxamento da ordem normativa que milita contra o cometimento de desmandos pelas Autoridades Administrativas, em claro prejuízo dos administrados e das prerrogativas que lhes são constitucionalmente conferidas.
No mesmo sentido caminha o artigo 15 do PL que prevê que os erros de fato ou de direito poderão ser corrigidos de ofício pelo órgão de julgamento.
No que pese se tratar de um órgão da administração, ao exercer a atividade de julgar está desempenhando nitidamente função judicante e, como tal , deve observar a conduta que ela lhe impõe.
O que queremos significar é que, na medida em que exerce a atividade judicante, ao órgão administrativo cabe apenas a apreciação dos fatos e argumentos que lhe são trazidos pela parte no sentido de firmar um juízo acerca dos mesmos e decidir a lide.
A ele incumbe função essencialmente passiva que é corolário da imparcialidade. Não que o mesmo não deva agir no procedimento, mas daí a sanar vícios decorrentes da atuação das partes há uma grande diferença.
Em face de tais considerações nossa recomendação é a de que, ainda na via legislativa, tais impropriedades sejam sanadas a fim de que se evitem maiores prejuízos aos contribuintes. Para tanto sugerimos que tais dispositivos (os artigos 13 e 15) sejam expurgados do PL.
1.3. ARTIGO 9º – INSCRIÇÃO EM DÍVIDA ATIVA
O artigo 9º do PL determina que os créditos tributários informados pelo sujeito passivo por meio de declaração, não pagos ou pagos a menor, apurados pela Administração Tributária, sejam inscritos diretamente em dívida ativa com os respectivos acréscimos legais devidos, na forma do regulamento.
Trata-se de dispositivo cujo objetivo é o de tornar mais rápida a cobrança dos créditos tributários pela Fazenda Pública, suprimindo etapas importantes que sucedem o lançamento do crédito tributário de ofício, com a apresentação de impugnação e demais recursos pelo contribuinte, em clara ofensa ao contraditório e ampla defesa.
Por esta norma, o contribuinte que, em virtude de erro, prestar declaração incorreta ao Fisco, surpreendentemente, ver-se-á inscrito em dívida ativa, prestes a sofrer execução fiscal, sem ao menos ter a possibilidade de se defender da exigência que lhe é imposta. E o erro pode ser também do próprio Fisco, ao processar a declaração do contribuinte.
A despeito do relevante interesse público que está por trás da celeridade na cobrança dos débitos com o Erário, não se pode admitir que a Administração atue em prejuízo dos direitos e garantias individuais dos contribuintes, razão pela qual nossa opinião é no sentido de que o dispositivo em tela seja expurgado do PL.
1.4. ARTIGO 10º, §§ 5º e 6º – NOTIFICAÇÃO SEM AVISO DE RECEBIMENTO E PRESUNÇÃO DE NOTIFICAÇÃO
O artigo 10, § 5º, do PL, determina que a notificação do lançamento poderá ser feita pelo correio sem aviso de recebimento, desde que seja previamente divulgada na imprensa oficial e em pelo menos dois jornais de grande circulação no município.
Por sua vez, o § 6º, do mesmo artigo, ao reportar-se ao § 5º, fixa que o contribuinte presume-se notificado 5 dias após a entrega das notificações nas agências dos correios.
A nosso ver, a coexistência desses dispositivos revela-se excessivamente prejudicial aos direitos dos contribuintes.
É bem verdade que o direito tributário, a exemplo do direito civil, vale-se de determinadas ficções e presunções legais para garantir a sua efetividade, de modo que as mesmas são até admissíveis.
No entanto, não nos parece ser esse o caso, uma vez que nada obsta que, ao menos numa primeira tentativa, a Administração sempre tente notificar por meio de correspondência com aviso de recebimento.
Ademais, outros fatores alheios à vontade do contribuinte podem atrasar ou mesmo impedir o recebimento da notificação. Em decorrência, a presunção de recebimento em 5 dias, acaba por prejudicar o contribuinte que será tolhido do prazo para apresentação de defesa.
De fato, o aviso de recebimento revela-se como um importante instrumento para assegurar que o contribuinte foi efetivamente cientificado do lançamento que concorre contra ele.
Assim, ao possibilitar que a Administração opte por enviar correspondência sem aviso de recebimento e determinar que o contribuinte presume-se notificado 5 dias após a sua postagem, a legislação dará azo a que, mesmo o contribuinte que não a recebeu e, portanto, sequer sabe da exigência que lhe é imposta, tenha contato contra si o prazo para defesa.
Trata-se do nítido cerceamento de defesa que pode ser afastado com a exclusão dos mencionados dispositivos do PL.
1.5. ARTIGO 43, § 1º – DEPÓSITO ADMINISTRATIVO DE 30% COMO REQUISITO PARA INTERPOSIÇÃO DE RECURSO
O parágrafo 1º, do artigo 43, do PL, determina que o recurso ao Conselho Municipal de Tributos somente terá seguimento com a realização do depósito administrativo em dinheiro correspondente a 30% do valor do Auto de Infração.
Tal determinação não é novidade em nossa legislação. O Fisco Federal exige, igualmente, o depósito/arrolamento de bens no valor correspondente a 30% do valor da exigência fiscal.
No entanto, em que pese o entendimento firmado pelo STF, no sentido de que o depósito administrativo não ofende qualquer princípio constitucional, entendemos que tal exigência configura-se como uma verdadeira arbitrariedade.
Isso porque o lançamento realizado pela Autoridade Administrativa, no momento da interposição de recurso ao CMT, ainda não se configura perfeito. De fato, somente com o julgamento em definitivo constitui-se o lançamento, o qual presume-se líquido e certo.
Assim, inconcebível a exigência de 30% do valor exigido no Auto de Infração, o qual sequer foi julgado definitivamente.
Além disso, o depósito administrativo de 30% do valor da exigência acaba por ofender, com o devido respeito aos Ministros do STF, os princípios do contraditório, ampla defesa e duplo grau de jurisdição.
Dessa forma, entendemos que referido dispositivo deve ser expurgado do PL em questão ou, no mínimo, como forma de atenuar a exigência, para que seja possibilitado o arrolamento de bens, medida esta muito menos penosa ao contribuinte.
II – ASPECTOS POSITIVOS DO PL
No que pesem os aspectos negativos acima versados, importante frisar que os mesmos não são predominantes no contexto geral do PL nº 617/05.
De fato, além da normatização do Processo Administrativo Tributário no âmbito do Município de São Paulo e da criação do Conselho Municipal de Tributos que, por si só, já representam significativos avanços para a consecução da justiça tributária, o PL ora analisado apresenta aspectos positivos, dos quais passamos a citar alguns.
II.1 – ARTIGO 7º – NOTÍCIA DE CRIME TRIBUTÁRIO
O artigo 7º do PL determina que a notícia de crime contra a ordem tributária será encaminhada ao Ministério Público nos seguintes casos: (i) não pagamento ou não apresentação da defesa após ter sido constituído o crédito tributário; (ii) não pagamento ou não apresentação do recurso após a decisão da 1ª instância que mantenha a exigência do crédito tributário; e (iii) não pagamento após a decisão de 2ª instância que mantenha a exigência do crédito tributário.
Tal dispositivo está em harmonia com as legislações federal e estadual que prevêem que a representação das autoridades fazendárias ao Ministério Público só pode ser levada a efeito após o “trânsito em julgado” da matéria na seara administrativa.
Com efeito, as hipóteses arroladas pelo dispositivo em tela referem-se precisamente àquelas em que esgotam-se as vias administrativas de solução da questão.
II.2 – ARTIGO 26, § 2º – DISPONIBILIZAÇÃO DE DESPACHOS E FUNDAMENTAÇÃO POR MEIO ELETRÔNICO
O artigo 26, § 2º, cuida da possibilidade de disponibilização por meio eletrônico das decisões administrativas e suas fundamentações, conforme dispuser o regulamento.
Aqui, diferentemente do que vimos no caso das notificações eletrônicas, a tecnologia milita a favor do contribuinte, que poderá consultar as decisões, a fim de acompanhar o entendimento jurisprudencial das instâncias administrativas com maior facilidade, tornando, dessarte, mais efetivo o princípio da publicidade dos atos administrativos.
Resta aguardar para ver se a previsão legal se materializará sob a forma de um benefício concreto.
Sem mais para o momento e com os nossos cumprimentos.
WALDIR LUIZ BRAGA – Advogado, Mestre e Doutor em Direito Tributário pela PUC-SP
PAULA CRISTINA ACIRÓN LOUREIRO – Advogada, graduada pela Faculdade de Direito da USP
RICARDO EZEQUIEL TORRES – Advogado, graduado pela PUC-SP, Mestre em Direito Financeiro pela USP