Responsabilidade civil do Estado
Kiyoshi Harada*
Introdução
A matéria vem sendo regulada diferentemente, ao longo do tempo, pelas diversas Constituições como se verá das transcrições adiante.
Constituição Política do Império do Brasil de 1824:
“Art. 179, 29 – Os empregados públicos são estritamente responsáveis pelos abusos e omissões praticados no exercício das suas funções, e por não fazerem efetivamente responsáveis aos infratores”.
Constituição Federal de 1891:
“Art. 82 – Os funcionários públicos são estritamente responsáveis pelos abusos e omissões em que incorrerem no exercício de seus cargos, assim como pela indulgência ou negligência em não responsabilizarem efetivamente os seus subalternos. Parágrafo único – O funcionário público obrigar-se-á por compromisso formal, no ato da posse, ao desempenho dos seus deveres”.
Constituição Federal de 1934:
“Art. 171 – Os funcionários públicos são responsáveis solidariamente com a Fazenda nacional, estadual ou municipal, por quaisquer prejuízos decorrentes de negligência, omissão ou abuso no exercício dos seus cargos.
§ 1º – Na ação proposta contra a Fazenda pública, e fundada em lesão praticada por funcionário, este será sempre citado como litisconsorte.
§ 2º – Executada a sentença contra a Fazenda, esta promoverá execução contra o funcionário público”.
Constituição Federal de 1937:
“Art. 158 – Os funcionários públicos são responsáveis solidariamente com a Fazenda Nacional, estadual ou municipal, por quaisquer prejuízos decorrentes de negligência, omissão ou abuso no exercício dos seus cargos”.
Constituição Federal de 1946:
“Art. 194 – As pessoas jurídicas de direito público interno são civilmente responsáveis pelos danos que os seus funcionários, nessa qualidade, causem a terceiros. Parágrafo único – Caber-lhes-á ação regressiva contra os funcionários causadores do dano, quando tiver havido culpa destes”.
Constituição Federal de 1967/69:
“Art. 105 – As pessoas jurídicas de direito público respondem pelos danos que os seus funcionários, nessa qualidade, causem a terceiros. Parágrafo único – Caberá ação regressiva contra o funcionário responsável, nos caso de culpa ou dolo”.
Constituição Federal de 1988:
“Art. 37, § 6º – As pessoas jurídicas de direito público e as de direito privado prestadoras de serviços públicos responderão pelos danos que seus agentes, nessa qualidade, causarem a terceiros, assegurado o direito de regresso contra o responsável nos casos de dolo ou culpa”.
Verifica-se que pelas duas primeiras Cartas Políticas, a de 1824 e a de 1891, os funcionários públicos eram direta e exclusivamente responsáveis por prejuízos decorrentes de omissão ou abuso no exercício de seus cargos. O Estado nenhuma responsabilidade assumia perante terceiros prejudicados por atos de seus servidores. Imperava a teoria da irresponsabilidade do Estado por atos de seus servidores.
Na vigência das Constituições de 1934 e de 1937 passou a vigorar o princípio da responsabilidade solidária. O prejudicado podia mover a ação contra o Estado ou contra o servidor público, ou contra ambos, bem como, promover a execução de sentença contra ambos ou contra um deles, segundo o seu critério de conveniência e oportunidade.
A partir da Constituição Federal de 1946 adotou-se o princípio da responsabilidade em ação regressiva. Desapareceu a figura da responsabilidade direta do servidor ou da responsabilidade solidária; não há mais o litisconsórcio necessário. Com o advento do Código Civil, prevendo, expressamente, em seu artigo 15, o princípio da regressividade, este acabou ganhando corpo na doutrina, refletindo na elaboração de textos constitucionais a partir da Carta Política de 1946, que adotou a teoria da responsabilidade objetiva do Estado.
Interessante notar que desde a Constituição de 1967 houve um alargamento na responsabilização das pessoas jurídicas de direito público por atos de seus servidores. É que houve a supressão da palavra interno, passando a abranger tanto as entidades políticas nacionais, como as estrangeiras.
Logo, entidades de direito público de potências estrangeiras, também, são responsáveis por atos de seus servidores, exceto nas hipóteses de aplicação do princípio da extraterritorialidade. É o princípio da territorialidade, que tem seu legítimo fundamento na soberania de cada Estado.
Esse alargamento acentuou-se na Constituição de 1988, que passou a estender a responsabilidade civil objetiva às pessoas jurídicas de direito privado, prestadoras de serviços públicos. Determinados serviços públicos, os não essenciais, ao contrário dos essenciais – como concernentes à administração da justiça, à segurança pública etc. – podem ter as respectivas execuções delegadas aos particulares. Com o advento do regime militar, na década de sessenta, inúmeras empresas estatais foram criadas com a missão precípua de executarem esses serviços públicos, sob o regime de concessão. Essas estatais, hoje, estão sendo privatizadas. Mas isso nenhuma alteração traz no que tange à responsabilidade civil dessas empresas prestadoras de serviços públicos. O que submete essas empresas ao regime da responsabilidade objetiva, previsto no Texto Magno, não é a natureza do capital, público, privado ou misto, mas, o fato de executar o serviço público. De fato, não seria justo, nem jurídico, submeter o terceiro, vítima da ação ou omissão do concessionário, à difícil tarefa de comprovar a culpa do agente só porque o Estado delegou ao particular a execução da obra ou do serviço. Por isso, as empresas concessionárias, permissionárias e autorizatárias de serviços públicos respondem objetivamente pelos danos causados por atos ou omissões de seus diretores, gerentes ou empregados.
Responsabilidade objetiva do Estado
A responsabilidade civil do Estado, por atos comissivos ou omissivos de seus agentes, é de natureza objetiva, isto é, prescinde da comprovação de culpa. Neste particular, houve uma evolução da responsabilidade civilística, que não prescinde da culpa subjetiva do agente, para a responsabilidade pública, isto é, responsabilidade objetiva. Esta teoria é a única compatível com a posição do Poder Público ante os seus súditos, pois, o Estado dispõe de uma força infinitamente maior que o particular. Aquele, além de privilégios e prerrogativas que o cidadão não possui, dispõe de toda uma infra-estrutura material e pessoal para a movimentação da máquina judiciária e de órgãos que devam atuar na apuração da verdade processual. Se colocasse o cidadão em posição de igualdade com o Estado, em uma relação jurídica processual, evidentemente, haveria um desequilíbrio de tal ordem que comprometeria a correta distribuição da justiça.
A doutrina da responsabilidade objetiva do Estado comporta exame sob o ângulo de três teorias objetivas: a teoria da culpa administrativa, a teoria do risco administrativo e a teoria do risco integral, conforme preleciona Hely Lopes Meirelles(1).
Pela teoria da culpa administrativa a obrigação de o Estado indenizar decorre da ausência objetiva do serviço público
Pela teoria do risco administrativo basta tão só o ato lesivo e injusto imputável à Administração Pública. Não se indaga da culpa do Poder Público mesmo porque ela é inferida do ato lesivo da Administração. Basta a comprovação pela vítima, do fato danoso e injusto decorrente de ação ou omissão do agente público.
Essa teoria, como o próprio nome está a indicar, é fundada no risco que o Estado gera para os administrados no cumprimento de suas finalidades que, em última análise, resume-se na obtenção do bem comum. Alguns membros da sociedade atingidos pela Administração Pública, no desempenho regular de suas missões, são ressarcidos pelo regime da despesa pública, isto é, a sociedade como um todo concorre para realização daquela despesa, representada pelo pagamento de tributos. Daí porque, pode-se afirmar, o risco e a solidariedade fundamentam essa doutrina, que vem sendo prestigiada, entre nós, desde a Carta Política de 1946. Ela se assenta exatamente na substituição da responsabilidade individual do agente público pela responsabilidade genérica da Administração Pública. Cumpre lembrar, entretanto, que a dispensa de comprovação de culpa da Administração pelo administrado não quer dizer que o Poder Público esteja proibido de comprovar a culpa total ou parcial da vítima para excluir ou atenuar a indenização.
Finalmente, pela teoria do risco integral a Administração responde invariavelmente pelo dano suportado por terceiro, ainda que decorrente de culpa exclusiva deste, ou, até mesmo de dolo. É a exacerbação da teoria do risco administrativo que conduz ao abuso e à iniquidade social, como bem lembrado por Hely Lopes Meirelles na obra retro citada.
Essa teoria jamais vincou na doutrina e na jurisprudência e por isso mesmo nunca foi acolhida pelas diferentes Cartas Políticas de nosso país.
Noções de funcionário público e de agente
A expressão funcionário público, empregada pelas diversas Cartas Políticas, deve ser interpretada em seu sentido mais amplo. Abarca, para fins de responsabilidade civil objetiva do Estado, qualquer pessoa incumbida da execução de qualquer obra ou serviço público. É sinônimo de agente administrativo ou agente público, isto é, todo aquele que presta serviços à Administração Pública, direta ou indireta. Engloba, também, os agentes políticos que são apenas os governantes e seus auxiliares diretos como os Ministros e Secretários das diversas partes do Poder Executivo, bem como os membros de Poder.
Para efeito de responsabilização civil do Estado não importa que o agente público, que praticou o ato ou a omissão administrativa, estivesse irregularmente investido no cargo ou na função. O importante é que o dano causado a terceiro decorra da ação ou omissão do agente público no exercício de suas funções ou a pretexto de exercê-las(2). De fato, é indiferente para a vítima o título pelo qual o causador do dano esteja vinculado à entidade política. Outrossim, dano decorrente de abuso do agente público no exercício de suas atribuições não exime o Estado da sua responsabilidade objetiva, antes a agrava, pois caracteriza-se aí a culpa in eligendo.
O Sentido do § 6º do art. 37 da CF
Como já assinalamos, desde a constituição de 1946 (art. 194) vem sendo adotada a teoria do risco administrativo, combinada com princípio da ação regressiva. A carta política de 1988 estendeu, acertadamente, a responsabilidade objetiva do Estado às pessoas jurídicas de direito privado, prestadoras de serviços públicos. Outrossim, qualquer pessoa de direito público, nacional ou estrangeira, submeter-se á ao preceito do § 6º do art. 37 da Carta Política.
O Estado responde objetivamente por dano causado por seu agente, em substituição à responsabilidade deste, sem indagação de culpa. E o ônus financeiro da assumpção dessa responsabilidade objetiva é suportado por toda sociedade, que provê os cofres públicos através de tributos. Os tributos são pagos pelos cidadãos para propiciar ao Estado recursos financeiros necessários ao cumprimento de suas atribuições, inclusive para indenizar os danos por ele causados, a terceiros, no desempenho dessas atribuições. Daí a teoria do risco administrativo, que fundamenta toda a doutrina da responsabilidade objetiva do Estado.
O prejudicado pela ação estatal sempre terá o direito à indenização a ser pleiteada contra a Fazenda Pública ou contra a pessoa jurídica privada prestadora de serviço público a que pertencer o agente causador do dano. A ação nunca é dirigida contra o agente público ou de quem faz as suas vezes. Estes limitam-se a responder regressivamente em casos de dolo ou culpa.
Para a caracterização do direito à indenização segundo a doutrina da responsabilidade civil objetiva do Estado devem concorrer as seguintes condições:
A efetividade do dano. Deve existir concretamente o dano de natureza material ou moral suportado pela vítima. Como se sabe, a Constituição Federal de 1988 consagrou, expressamente, a indenização por dano moral, prescrevendo a inviolabilidade da intimidade, da honra e da imagem das pessoas (art. 5º, V).
O nexo causal. Deve haver nexo de causalidade, isto é, uma relação de causa e efeito entre a conduta do agente e o dano que se pretende reparar. Inexistindo o nexo causal, ainda que haja prejuízo sofrido pelo credor não cabe cogitação de indenização. Por exemplo, empresa concessionária de transporte coletivo urbano de passageiros emprega um motorista não habilitado que, ao passar por uma ponte construída e mantida pelo D.E.R. vem a desabar. Os passageiros sofrem ferimentos, mas nenhuma responsabilidade cabe à empresa de ônibus, por que o dano não resultou daquela irregularidade de contratar motorista não habilitado.
Só para ter uma idéia da complexidade, na perfeita delimitação da responsabilidade ante a teoria do nexo causal, imaginaremos um exemplo. O agente público municipal vistoria um prédio novo e concede o habite-se, equivocadamente. Dois meses depois o prédio desaba. Em conseqüência desse desabamento ocorreu um saque na empresa X, que perdeu elevada soma de dinheiro destinado à compra de matéria prima para seu estabelecimento fabril, fato que, provocou a falência da empresa X. Pergunta-se, o Poder Público, no caso, municipal, responde por essa falência? No caso, sem falar da responsabilidade solidária das contrutoras e do engenheiro-responsável, nota-se a dificuldade na detectação da verdadeira causa do dano em função das concausas sucessivas. O Código Civil, como se depreende do art.1060, nessa matéria, adotou a teoria que exige a relação de causa e efeito, direta e imediata entre o dano e a conduta do agente. Direto quer dizer aquilo que vem em linha reta, e imediato quer dizer sem intervalo. Assim, o Código Civil não agasalhou a teoria da equivalência das condições ou da conditio sine qua non.
Oficialidade da atividade causal e lesiva imputável ao agente do Poder Público. A responsabilidade civil objetiva do Estado, que é distinta da responsabilidade legal ou contratual, decorre da conduta comissiva ou omissiva de seu agente no desempenho de suas atribuições ou a pretexto de exercê-las. Indispensável que o agente pratique o ato no exercício da função pública ou a pretexto de exercê-la, sendo juridicamente irrelevante se o ato é praticado em caráter individual. Outrossim, já decidiu o Colendo STF que é irrelevante a questão da licitude ou não do comportamento funcional do agente que tenha incorrido em conduta omissiva ou comissiva, causadora do dano(3). Também, não tem, atualmente, menor relevância jurídica a distinção outrora feita entre atos de gestão e atos de império para excluir a responsabilidade do Estado em se tratando desses últimos. Essa divisão não se justifica, porque uno é o Estado, descabendo a idéia de duas pessoas distintas: uma civil e outra política. Aliás, quer o ato comissivo ou omissivo provenha do jus imperii ou do jus gestionis sempre será uma forma de atuação do Estado. Daí a irrelevância proclamada pela jurisprudência quanto a essa singular distinção doutrinária, que não se coaduna com o direito positivo(4).
Ausência de causas excludentes. A doutrina da responsabilidade objetiva adotada pela Carta Política está fundada na teoria do risco administrativo e não na teoria do risco integral. Por isso a responsabilidade do Estado não é absoluta. Ela cede na hipótese de força maior ou de caso fortuito. Da mesma forma, não haverá responsabilidade do Estado em havendo culpa exclusiva da vítima(5). No caso de culpa parcial da vítima impõe-se a redução da indenização devida pelo Estado(6).
Resumindo, o Estado sempre responderá objetivamente pelo dano causado ao administrado, por ação ou omissão de seus agentes, desde que injustamente causado.
O Estado, depois de ressarcida a vítima, promove a ação repressiva contra o agente causador do dano, se houver culpa ou dolo deste.
A expressão ultilizada pelo texto constitucional – nos casos de dolo ou culpa – para legitimar a ação repressiva do Estado não deve ser entendida como afastamento da teoria da responsabilidade objetiva como, equivocadamente, sustentavam alguns estudiosos. A existência do dolo ou da culpa é matéria que não diz respeito ao terceiro prejudicado pela atuação estatal. É assunto que diz respeito exclusivamente ao relacionamento funcional do agente com a entidade pública ou privada a que se acha vinculado. Verificado o dolo ou a culpa cabe a fazenda pública promover a ação de regresso para recuperar de seu agente causador do dano tudo aquilo que despendeu com a indenização da vítima.
É oportuno lembrar, ainda, que descabe a invocação de alguns julgados em que se exigiam a prova de culpa da Administração em razão de uma situação singular, para generalizar a tese a ponto de contrariar a doutrina da responsabilidade objetiva do Estado. É preciso bem distinguir os danos causados por agentes públicos ou de quem façam as suas vezes, de que cuida o texto constitucional, dos danos ocasionados por atos de terceiros ou por fenômenos da natureza. Nas hipóteses de depredações por multidões, de enchentes e vendavais que venham provocar danos aos administrados, suplantando os serviços públicos existentes, são imprecíndiveis a prova de culpa da Administração para legitimar a indenização. É o que tem decidido os tribunais(7). Na recente inundação do túnel do Anhangabaú, por exemplo, onde dezenas de veículos ficaram submersos, impõe-se a indagação de culpa da Administração Pública Minicipal. Até que ponto a omissão do órgão público (não acionamento das bombas ou seu funcionamento deficiente e anormal) foi a causa eficiente da inundação ocorrida? Dado o inusitado volume de águas qualquer ação do poder Público seria insuficiente para conter a invasão do túnel pelas águas? Nesse caso, se era previsível essa situação, não seria o caso de a autoridade competente promover a a oportuna interdição do túnel? São indagações que devem ser analisadas e respondidas com segurança para definir a responsabilidade da Administração de conformidade com os artigos 15 e 159 do Código Civil. Nesses casos, os danos não são decorrentes diretamente da atuação ou omissão do agente público, o que refogem da hipótese contemplada no § 6º do art.37 da Constituição Federal.
Em alguns casos especiais, embora inexistente uma relação direta de causa e efeito entre a conduta do agente público e o resultado danoso, porque este foi provocado por terceiro, a jurisprudência tem responsabilizado objetivamente o Estado. É o que aconteceu, por exemplo, no julgamento do RE nº 109.615-2-RJ, Rel. Min. Celso de Mello, DJ de 2-8-96, p. 25.785:
O Poder Público, ao receber o estudante em qualquer dos estabelecimentos da rede oficial de ensino, assume o grave compromisso de velar pela preservação de sua integridade física, devendo empregar todos os meios necessários ao integral desempenho desse encargo jurídico, sob pena de incidir em responsabilidade civil pelos eventos lesivos ocasionados ao aluno.
A obrigação governamental de preservar a intangibilidade física dos alunos, enquanto estes se encontrarem no recinto do estabelecimento escolar, constitui encargo indissociável do dever que incumbe ao Estado de dispensar proteção efetiva a todos os estudantes que se acharem sob a guarda imediata do Poder Público nos estabelecimentos oficiais de ensino. Descumprida essa obrigação, e vulnerada a integridade corporal do aluno, emerge a responsabilidade civil do Poder Público pelos danos causados a quem, no momento do fato lesivo, se achava sob a guarda, vigilância e proteção das autoridades e dos funcionários escolares, ressalvadas as situações que descaracterizam o nexo de causalidade material entre o evento danoso e a atividade estatal imputável aos agentes públicos”.
Tratava-se, no caso de um ferimento causado em uma aluna de dez anos de idade por uma colega, que portava uma agulha de injeção. A vítima veio sofrer perda total do globo ocular direito, com deformidade traumática permanente e percentual incapacitatório para o trabalho, de 75%. Embora reconhecendo ausente qualquer parcela de responsabilidade da servidora municipal (Professora da Escola pública) na eclosão do evento o V. acórdão entendeu irrelevante essa circunstância, porque o Estado responde objetivamente pela falta dos recursos necessários ao funcionamento regular e satisfatório dos estabelecimentos públicos de ensino. Influiu no julgamento o fato de não ter sido prestado socorro imediato à vítima, bem como, a demora da comunicação do evento aos pais da aluna vitimada. Esse mesmo acórdão cita jurisprudência do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, versando sobre caso análogo, RJTJSP-93/156:
Ao receber o menor estudante, deixado no estabelecimento de ensino da rede oficial para as atividades de aprendizado, a entidade pública se investe no dever de preservar a sua integridade física, havendo de empregar, através dos mestres e demais servidores, a mais diligente vigilância para evitar qualquer conseqüência lesiva, que possa resultar do convívio escolar.
E responde, no plano reparatório, se , durante a permanência no interior da unidade de ensino, o aluno vem, por efeito da inconsiderada atitude de colega, a sofrer a violência física, restando-se lesionado de forma irreversível.
A responsabilidade, ai, é inerente à extensão dos cuidados exigidos para a custódia do menor vitimado. E, com respeito ao ente estatal, se filia ao princípio consagrado no art. 107 da CR, configurando-se pela simples falha na garantia de incolumidade, independentemente da culpa concreta de qualquer servidor”.
O mesmo entendimento deve ser aplicado em relação aos prisioneiros vitimados por companheiros de cela, no interior de estabelecimentos prisionais, a menos que se comprove a culpa exclusiva das vítimas ou de terceiros. É dever do Estado manter a incolumidade física da pessoa que se encontre sob sua custódia.
Responsabilidade por atos legislativos e judiciais
Parte da doutrina defende a responsabilidade civil do Estado por atos legislativos, quando se tratar de leis inconstitucionais. Seria indenizável o dano causado por lei inconstitucional, porque, na realidade, o Estado não teria agido no exercício de sua função legislativa(8). Outros doutrinadores não admitem a responsabilidade do Estado por atos legislativos, porque a lei é uma norma geral e abstrata que atua sobre toda a coletividade. Na hipótese excepcional de a lei inconstitucional atingir o particular uti singuli causando-lhe dano injusto e reparável impõe-se a demonstração de culpa do Estado, através da atuação de seus agentes políticos, o que, no dizer de Hely Lopes Meirelles, seria indemonstrável no regime democrático, em que o próprio povo escolhe os representantes para o Legislativo(9). Na verdade o texto constitucional refere-se a danos causados por agentes do Poder Público e das pessoas jurídicas de direito privado prestadores de serviços públicos, fato que envolve os atos dos legisladores que, como membros de Poder, não deixam de ser agentes políticos. Não se deve esquecer que o texto constitucional emprega a palavra agente como gênero de que são espécies os agentes administrativos e os agentes políticos. Aliás, a jurisprudência do STF é no sentido da responsabilização civil do Estado por atos legislativos(10).
Quanto a responsabilidade do Estado em decorrência de atos do Poder Judiciário nenhuma dúvida pode pairar a respeito. É de se repelir a doutrina que defende a tese da irresponsabilidade do Poder Público, baseada no fato de que os juízes não são prepostos do Estado, mas atuam como órgão da soberania nacional. O que se impõe, no caso, é o afastamento da res judicata através da revisão ou da rescisão do julgado. O direito à indenização por erro judiciário está expresso no art. 5º, inciso LXXV da CF. A regra do art. 133 do CPC, segundo a qual, o juiz responderá por perdas e danos em casos de culpa, dolo ou fraude, não pode ser entendida como excludente da responsabilidade civil objetiva do Estado. Aquela regra deve ser interpretada no sentido da responsabilização individual do magistrado em ação de regresso visando o ressarcimento, pelo Estado, daquilo de despendeu com a indenização da pessoa vitimada pela atuação jurisdicional anormal.
A reparação do dano
A responsabilidade pelos danos que seus agentes, nessa qualidade, causarem a terceiros a que alude o texto constitucional é a de natureza civil, contrapondo-se à responsabilidade criminal.
O Poder Público e suas concessionárias, permissionárias e autorizatárias respondem por perdas e danos por ação ou omissão de seus agentes, de conformidade com a teoria do risco administrativo, isto é, sem indagação de culpa.
Assim, não se encontra totalmente recepcionado pelo Texto Magno o art. 15 do Código Civil que assim prescreve:
Art.15 As pessoas jurídicas de Direito Público são civilmente responsáveis por atos dos seus representantes que nessa qualidade causem danos a terceiros, procedendo de modo contrário ao Direito ou faltando a dever prescrito por lei, salvo o direito regressivo contra os causadores de dano.
A expressão civilmente responsáveis empregada no texto do art.15 é indicativa da indenização por perdas e danos para bem separar da responsabilidade penal, que só pode ser pessoal do agente Esse artigo 15, no início, suscitou acirradas discussões doutrinárias e jurisprudenciais quanto ao acolhimento da teoria subjetivista ou da teoria objetivista. Entretanto, mais tarde, prevaleceu o entendimento no sentido de que o citado dispositivo ter perfilhado a teoria da culpa, até que a Constituição Federal de 1946, em seu artigo 194, veio acolher, expressamente, a teoria objetiva do risco administrativo. O conteúdo da indenização é matéria regulada pelo Código Civil.
Logo, essa responsabilização civil deve abranger o dano emergente e os lucros cessantes, conforme artigos
Por isso o texto do art.1059 do CC refere-se às perdas e danos e ao que razoavelmente deixou de lucrar. Esta última expressão está a exigir bases seguras e fundadas para a indenização dos lucros cessantes. Não são indenizáveis os lucros imaginários, sob pena de propiciar locupletamento ilícito ao credor. Outrossim, a indenização deve abranger os juros moratórios, os honorários advocatícios arbitrados pelo juiz, bem como, a atualização monetária, segundo pronunciamento pacífico de nossos tribunais.
Finalmente, a indenização não se limita aos danos materiais. Por expressa disposição do inciso V do art. 5º da Constituição Federal abrange os danos de natureza moral. A maior dificuldade quanto a estes últimas está na fixação do quantum da indenização à vista de ausências de normas para aferição objetiva desses danos. Entretanto, pouco a pouco , doutrina e jurisprudência estão construindo parâmetros adequados para esse tipo de indenização, levando-se em conta a gravidade do dano moral infringido, a formação da vítima, a quantificação do dano material e a situação patrimonial do ofensor, esta última inaplicável em relação ao Estado.
Uma vez promovida a liquidação da sentença fixadora da indenização na forma do art. 603 e seguintes do Código de Processo Civil, mediante apresentação, pelo credor, da memória de cálculo, é promovida a citação da Fazenda Pública para opor embargos no prazo de dez dias, sob pena de expedição de precatório judicial pelo presidente do Tribunal que proferiu a decisão exeqüenda (art. 730 do CPC). O precatório entregue até o dia 1º de julho terá o seu valor atualizado até essa data para ser incluído no orçamento do exercício seguinte, a fim de ser pago até o final desse exercício, dentro da rigorosa ordem cronológica de sua apresentação (art. 110 e § 1º da CF). O credor preterido em seu direito de preferência pode requer o seqüestro da quantia necessária à satisfação do débito (§ 2º do art. 100 da CF). Como normalmente essas indenizações têm caráter alimentar não se sujeitam a ordem cronoloógica de apresentação de precatórios. De fato, o art. 100 da CF exclui os créditos de natureza alimentícia do procedimento aí previsto. Ocorre que, se houver vários credores de natureza alimentícia e não dispondo a Fazenda Pública de recursos financeiros para pagar a todos de uma só vez, o princípio da moralidade pública impede de favorecer este ou aquele credor. Impõe-se, nessa hipótese, a instituição de ordem cronológica específica para os credores da espécie. A jurisprudência do STF evoluiu exatamente nesse sentido(11).
A não-inclusão no orçamento de verba necessária ao pagamento de débitos tempestivamente apresentados, bem como, a não-satisfação desses débitos, até o final do prazo, em virtude de desvio da respectiva dotação orçamentária, configuram, em tese, crimes de responsabilidade, conforme artigos 12, nº 4, e 10, nº 4, c.c. art. 11, nº 1 da Lei nº 1.079, de 10-4-1950, respectivamente. Finalmente, o não cumprimento do precatório judicial no prazo assinalado na Carta Política pode ensejar a intervenção federal no Estado-membro e intervenção estadual no Município, por desobediência à ordem ou decisão judiciária, conforme prescrevem, respectivamente, os artigos 34, VI e 35, IV da CF.
Texto elaborado em fevereiro de 2000.
Notas
——————————————————————————–
(1) Direito Administrativo Brasileiro, São Paulo: Malheiros, 20ª ed., 1995, p. 556.
(2) RDA-187/190; RJTJSP-124/139.
(3) RTJ-140/636.
(4) RT-227/273; RT-238/162.
(5) RTJ—99/1155; RTJ-91/377.
(6) RTJ-55/50.
(7) RDA-255/328; 259/149; 297/301; RT-54/336; 275/319.
(8) J. ;M. Carvalho Santos, Código Civil Interpretado, Vol. I; Freitas Bastos, 1963, p. 355
(9) Ob. Cit., p. 563.
(10) RDA 189/305; RDA 191/175.
(11) RE 180.849-7, Rel. Min. Octávio Gallotti, DJU de 26-10-96, p. 41.041.
* Advogado, Professor de Direito Administrativo, Financeiro e Tributário, Diretor da Escola Paulista de Advocacia, Ex-procurador-chefe da Consultoria Jurídica da Prefeitura do Município de São Paulo.
Compare preços de Dicionários Jurídicos, Manuais de Direito e Livros de Direito.