Rayam Simon Moreno de Moraes[1]
RESUMO
O presente trabalho pretende analisar o princípio da publicidade do processo penal com o advento das mídias de informação. Ao longo deste estudo buscou-se pensar sobre o princípio da publicidade do processo penal usado para expor o acusado em contraste com o seu uso como garantia processual. A pesquisa é baseada em estudos bibliográficos, tendo como influência algumas críticas do jurista italiano Francesco Carnelutti. Verificou-se que a divulgação excessiva e imprudente de detalhes dos processos criminais traz prejuízos ao acusado, interferindo no andamento processual. A partir desses resultados pode-se concluir a necessidade de repensar a exploração midiática de casos penais.
Palavras-chave: publicidade; alteridade; exposição midiática.
ABSTRACT
The present work aims to analyze the principle of publicity in the current context of information media. Throughout this study, we sought to think about the principle of publicity of criminal procedures used to expose the accused in contrast to its use as a procedural guarantee. The research is based bibliographic studies, having as influence the criticism of the Italian jurist Francesco Carnelutti. Excessive and injudicious disclosure of details of criminal procedures has been found to injure the accused, brings losses and thus interfering with the procedural progress. From these results, we can conclude the need of rethink media exploitation of criminal cases.
Keywords: publicity; otherness; media exposure.
1 O FUNDAMENTO DO PROCESSO
O processo nasce da evolução da pena, no momento em que essa adquire seu caráter verdadeiro, como explicou Aury Lopes Júnior (2016). Ou seja, quando o Estado toma posse da tutela, suprimindo a justiça privada. A partir de então o processo passa a ser, não somente útil, mas indispensável para a aplicação da pena, pois somente por essa via se lhe impõe.
Nas palavras de Lopes Júnior,
existe uma íntima e imprescindível relação entre delito, pena e processo, de modo que são complementares. Não existe delito sem pena, nem pena sem delito e processo, nem processo penal senão para determinar o delito e impor uma pena. Assim, fica estabelecido o caráter instrumental do processo penal com relação ao Direito Penal e à pena, pois o processo penal é o caminho necessário para a pena (2016. p. 21).
É, pois, invocado o adágio nulla poena et nulla culpa sine iudicio, atrelando inevitavelmente a pena ao processo, sobretudo no que diz respeito ao Direito Penal. Diferentemente do Direito Civil que se apresenta de forma corriqueira onde quer que haja lide e pode ser resolvido muitas vezes sem a interferência do Estado, no Direito Penal, o jus puniendi pertence somente ao Estado – mesmo no que tange a ação penal privada, o querelante figurará como substituto processual daquele. Este ramo do Direito está inevitavelmente nas mãos estatais e carece do processo para existir.
Veja-se, pois, que o Direito Penal, no sentido próprio do termo, nas palavras de Miguel Reale (2002, p. 245) “é o sistema de princípios e regras mediante os quais se tipificam as formas de conduta consideradas criminosas, e para as quais são cominadas, de maneira precisa e prévia, penas ou medidas de segurança, visando a objetivos determinados.”. Ora, a mera tipificação e prescrição de uma pena não é suficiente para caracterizar o direito, mesmo a própria subsunção da norma ao fato necessita do processo para se realizar, desse também há necessidade para que a pena seja aferida e aplicada. Destarte, haja vista que do processo depende da diagnose do delito e aplicação da pena, invoca-se novamente a noção de que não existe delito sem pena, nem pena sem delito e processo, para garantir que somente vinculado a esse o Direito Penal ganha concretude.
Essa jurisdicionalidade do Direito Penal trata-se, não somente de um princípio, mas da garantia da jurisdição. Garantia que denota mais do que a presença de um juiz, exige a imparcialidade do juiz natural, e que esse esteja comprometido com a máxima eficácia da Constituição (LOPES JUNIOR, 2016. p. 34).
Além disso, não só pelo seu caráter instrumental se evidencia a necessidade do processo penal. Outrossim, como possibilita e instrumentaliza a obtenção de um provimento jurisdicional válido, o processo não só confere legitimidade ao poder punitivo estatal, mas também o limita.
O processo penal age positivamente no que diz respeito à tutela estatal, conferindo poder coercitivo ao Direito Penal, legitimando e possibilitando o cumprimento da devida pena, bem como age negativamente frente a essa tutela, garantindo que haja respeito aos direitos do indivíduo constitucionalmente assegurados. Ou seja, busca ao máximo alcançar uma decisão justa, por meio de princípios constitucionais encontrados de forma implícita – como o duplo grau de jurisdição; a oficialidade e a vedação do bis in idem – ou explícita – como a plenitude de defesa (art. 5º, inciso XXXVIII, alínea a); o contraditório (art. 5º, inciso LV) e a legalidade explícita da prisão cautelar (art. 5º, incisos LXI, LXII, LXIII, LXIV, LXV, LXVI, LXVIII) – e princípios inerentes ao Ordenamento Jurídico – como a busca pela verdade real ou material; e a persuasão racional (NUCCI, 2012).
Para que haja tal proteção de direitos, o processo deve se guiar sempre pelos vetores traçados na Constituição Federal. Segundo o entendimento de Nestor Távora (2016, p. 44) “o processo é uma das previsões constitucionais de garantia do atendimento ao texto da Constituição do Brasil”. Para esse autor, “o processo, enquanto tal, deve ser sinônimo de garantia aos imputados contra as arbitrariedades estatais, sem perder de vista a necessidade de efetividade da prestação jurisdicional” (TÁVORA, 2016, p. 44). Afinal, durante o processo, o sujeito passivo que irá precisar de proteção é aquele que figura como acusado; e nas palavras de Bueno de Carvalho (2001, p. 55), “a lei é o limite ao poder desmesurado – leia-se, limite à dominação. Então, a lei – eticamente considerada – é proteção ao débil. Sempre e sempre, é a lei do mais fraco: aquele que sofre a dominação”.
Por exemplo, pelo princípio de presunção de inocência ou não culpabilidade, consagrado na Declaração dos Direitos do Homem de 1789, como previsto expressamente no art. 5º, inciso LVII, da Lei Maior, ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória. Fica então estabelecida a liberdade como regra, cabendo, a quem acusar, o ônus probatório.
Tais princípios visam garantir freios à forte mão do Estado-Juiz diante do mais débil, juntamente com os direitos fundamentais também previstos na Constituição, o que caracteriza o Estado Democrático de Direito. Para Ingo Wolfgang Sarlet (2010), tais direitos, em comunhão com a organização estatal, constituem o Estado Constitucional em seu âmago:
Os direitos fundamentais, integram, portanto, ao lado da definição da forma de estado, do sistema de governo e da organização do poder, a essência do Estado constitucional, constituindo, neste sentido, não apenas parte da constituição formal, mas também elemento nuclear da Constituição material. Para além disso, estava definitivamente consagrada a íntima vinculação entre as ideias de Constituição, Estado de Direito e direitos fundamentais Tendo em vista que a proteção da liberdade por meio dos direitos fundamentais é, na verdade, proteção juridicamente mediada, isto é, por meio do Direito, pode afirmar-se com segurança, na esteira do que leciona a melhor doutrina, que a Constituição (e, neste sentido, o Estado constitucional), na medida em que pressupõe uma atuação juridicamente programada e controlada dos órgãos estatais, constitui condição de existência das liberdades fundamentais, de tal sorte que os direitos fundamentais somente poderão aspirar a eficácia no âmbito de um autêntico Estado constitucional (SARLET, 2010, p. 58-59).
Para Guilherme de Souza Nucci (2012, p. 14),
a finalidade básica do Estado Democrático de Direito é cultuar a dignidade da pessoa humana, proporcionando respeito à individualidade, quando confrontado como poder estatal, sem desguarnecer da segurança e do combate à criminalidade. Para atingir tal propósito, deve-se respeitar à risca o devido processo legal, que representa o cumprimento de todos os princípios penais e processuais penais.
Portanto, para que haja a aplicação legítima e minimamente acertada da pena, não se pode abrir mão da plena observância do devido processo legal. Tal garantia, como supra princípio ou princípio-base (NEVES, 2011) tem como substância o cumprimento de todos os demais princípios e caminha ao lado do princípio da dignidade da pessoa humana, ambos constituem os princípios regentes do processo penal. São as regras do jogo (CALAMANDREI, 1950), sem as quais não se pode punir, e sobre as quais se pode alcançar a efetividade da tutela jurisdicional (PALU, 2001). Complementa ainda Ibáñez (1999, p. 49),
não se trata apenas de garantir a regras do jogo, mas o respeito aos valores em jogo, com aqueles que – agora – já estão fora do jogo, isto é, não se busca qualquer resultado, mas um resultado útil para satisfazer o direito ora ameaçado ou lesionado.
Este princípio de que se fala encontra-se assegurado pelo art. 5º, inciso LIV, da Constituição Federal nos termos: “ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal”. Sendo analisado sob uma perspectiva processual (procedural due process), ressaltando o procedimento correto para a tutela de bem jurídicos; e material (substantive due process of law), que reclama uma atuação adequada na aplicação e elaboração normativa (TAVORA, 2016, p. 65). Busca-se, portanto, que a pretensão punitiva observe as regras de procedimento, competência, colheita de provas, respeitando o contraditório e a ampla defesa.
Reconhecendo a supremacia do princípio que exige a observância inexorável da legalidade do processo, escreve José Herval Sampaio Junior (2008):
vê-se que esse princípio assume dentro do processo penal uma importância transcendental e que delineia todo o seu agir, limitando inclusive a atividade do legislador […] deve a lei se conformar com os direitos e garantias fundamentais do cidadão (SAMPAIO JÚNIOR, 2008. p. 137).
2 A NECESSIDADE DO PRINCÍPIO DA PUBLICIDADE
Bem como o princípio regente em comento sustenta os demais, por eles é mantido. A publicidade, por exemplo, é um princípio processual penal que tem por escopo zelar pela lisura dos atos processuais por meio da transparência desses. Esta é a “garantia de acesso de todo e qualquer cidadão aos atos praticados no curso do processo” (LIMA, 2011, p. 41).
O art. 93, inciso IX, da Constituição do Brasil, objeto de emenda pela EC nº 45/2004, garante que:
todos os julgamentos dos órgãos do Poder Judiciário serão públicos, e fundamentadas todas as decisões, sob pena de nulidade, podendo a lei limitar a presença, em determinados atos, às próprias partes e a seus advogados, ou somente a estes, em casos nos quais a preservação do direito à intimidade do interessado no sigilo não prejudique o interesse público à informação (BRASIL, 1988).
A publicidade tem um importante papel para que haja controle e possa ser exigida responsabilidade daqueles que atuam nas esferas de poder enquanto representantes do Estado. Desde o século XVIII, o jurista, filosofo e reformador social, Jeremy Bentham afirmava a impossibilidade de justiça sem a publicidade como meio de lutar contra a improbidade, para ele:
[…] na escuridão do segredo, o interesse sinistro e o mal de todas as formas têm pleno andamento. Somente na proporção em que a publicidade é realizada, qualquer um dos controles aplicáveis ??à injustiça judicial pode operar. Onde não há publicidade, não há justiça […] A publicidade é a própria alma da justiça. É o estímulo mais agudo ao esforço e o mais seguro de todos os guardas contra a improbidade. Ele mantém o próprio juiz em julgamento enquanto está sendo julgado […][2]
No Estado Democrático de Direito tal responsabilização é de suma importância, porquanto não pode haver cidadão – exerça a função que exercer – que se possa eximir de prestar contas com a lei. O Supremo Tribunal Federal ratificou tal função do princípio de publicidade para o sistema democrático no MS 27141/DF:
[…] No Estado Democrático, não se pode privilegiar o mistério, porque a supressão do regime visível de governo compromete a própria legitimidade material do exercício do poder. A Constituição republicana de 1988 dessacralizou o segredo e expôs todos os agentes públicos a processos de fiscalização social, qualquer que seja o âmbito institucional (Legislativo, Executivo ou Judiciário) em que eles atuem ou tenham atuado. Ninguém está acima da Constituição e das leis da República. Todos, sem exceção, são responsáveis perante a coletividade, notadamente quando se tratar da efetivação de gastos que envolvam e afetem a despesa pública. Esta é uma incontornável exigência de caráter ético-jurídico imposta pelo postulado da moralidade administrativa. Sabemos todos que o cidadão tem o direito de exigir que o Estado seja dirigido por administradores íntegros, por legisladores probos e por juízes incorruptíveis, que desempenhem as suas funções com total respeito aos postulados ético-jurídicos que condicionam o exercício legítimo da atividade pública. O direito ao governo honesto – nunca é demasiado reconhecê-lo – traduz uma prerrogativa insuprimível da cidadania. O sistema democrático e o modelo republicano não admitem – nem podem tolerar – a existência de regimes de governo sem a correspondente noção de fiscalização e de responsabilidade. […] (STF – MS:27141 DF, Relator: Min. CELSO DE MELLO, Data de julgamento: 22/02/2008, Data de Publicação: Dje-034 DIVULG 26/02/2008 PUBLIC 27/02/2008).
O Supremo deixa claro seu entendimento sobre a transparência no exercício do poder como pressuposto democrático, cuidando que o Estado, no exercício da jurisdição e do jus puniendi, possa sempre ser supervisionado pelo povo, de quem emana o poder. O Tribunal já havia manifestado tal posicionamento desde o ano de 1995 no Habeas Data nº 22/DF, rejeitando a ideia de “poder oculto”:
HABEAS DATA – NATUREZA JURÍDICA – REGIME DO PODER VISÍVEL COMO PRESSUPOSTO DA ORDEM DEMOCRÁTICA – A JURISDIÇÃO CONSTITUCIONAL DAS LIBERDADES – SERVIÇO NACIONAL DE INFORMAÇÕES (SNI) – ACESSO NÃO RECUSADO AOS REGISTROS ESTATAIS – AUSÊNCIA DO INTERESSE DE AGIR – RECURSO IMPROVIDO. A Carta Federal, ao proclamar os direitos e deveres individuais e coletivos, enunciou preceitos básicos, cuja compreensão é essencial a caracterização da ordem democrática como um regime do poder visível. O modelo político-jurídico, plasmado na nova ordem constitucional, rejeita o poder que oculta e o poder que se oculta. Com essa vedação, pretendeu o constituinte tornar efetivamente legítima, em face dos destinatários do poder, a prática das instituições do Estado. […] (STF – RHD 22 DF, Relator: Min. MARCO AURÉLIO, Data de Julgamento: 19/09/1991, TRIBUNAL PLENO, Data de Publicação: DJ 01-09-1995 PP-27378 EMENT VOL-01798-01 PP-00001).
O acesso público aos autos dos processos criminais e a possibilidade do acompanhamento dos julgamentos, ao passo que permite às partes e à sociedade ter conhecimento acerca dos atos processuais, tem por efeito despertar maior zelo dos profissionais ali investidos de autoridade. Assim sendo, estando à vista de qualquer do povo e sendo por todos fiscalizados, o Judiciário estaria ainda mais atado à lei e legitimado para agir segundo ela. Acerca disso, ensina Pontes de Miranda (1958):
O princípio da publicidade faculta a todos seguir a marcha do processo, assistindo ao que se passa, pesando o valor moral e intelectual do juiz, aferindo a conduta do escrivão e dos auxiliares da justiça. Essa presença das partes e de estranhos serve a que juízes, escrivães, órgãos do Ministério Público, peritos, testemunhas e partes mantenham a dignidade e as exigências de educação, nos atos e nas palavras (MIRANDA, 1958, p. 26).
Trata-se, logo, de uma garantia ao indivíduo para impedir arbitrariedades e violências contra o imputado (MIRABETE. 2006). Ou seja, é um importante princípio para limitação do poder estatal, protegendo o indivíduo frente ao Estado, e também garantindo – leia-se, tentando garantir – que os demais princípios sejam observados. Gilmar Mendes (2008) chega a tratar a publicidade como garantia de segundo grau devido esta resultar em efetividade para a demais garantias, possibilitando que o processo se dê conforme as normas constitucionais, sob a vigilância da opinião pública, In verbis:
A publicidade dos atos processuais é corolário do princípio da proteção judicial efetiva. As garantias da ampla defesa, do contraditório, do devido processo legal apenas são eficazes se o processo pode desenvolver-se sob o controle das partes e da opinião pública. Portanto, o princípio da publicidade é uma garantia de segundo grau, uma garantia das garantias (MENDES, 2008, p. 502).
2 A IMPRENSA E AS CAUSAS PENAIS
Pode-se perceber, no entanto, que, por vezes, o princípio que deveria conferir segurança ao cidadão perante o Estado-Juiz e o processo penal, acaba por gerar grande insegurança frente a sociedade e agravar as mazelas daquele. Carnelutti (2017, p. 123) denuncia que a publicidade se encontra degenerada em um motivo de desordem, “não tanto o público que enche os tribunais ao inverossímil, mas a invasão da imprensa, que precede e persegue o processo com imprudente indiscrição”.
A análise carneluttiana não ataca a possibilidade do acesso às audiências públicas pelo cidadão médio, sua crítica é fixada mormente sobre as mídias jornalísticas que desenfreadamente, em termos de métodos e intensidade, expõem os atos processuais ao público em geral. Tal forma de publicidade do processo se tornou cada vez mais popular com o advento da internet, a veiculação de sessões de julgamento de Tribunais Superiores transmitidas integralmente e ao vivo, ao passo que cresceu o interesse social por certas causas penais. Para o autor italiano:
A publicidade dos debates penais (e como veremos das discussões cíveis), funda-se certamente no interesse geral da administração da justiça, da qual constitui uma garantia; todavia, não se exclui que finalmente o interesse jornalístico que satisfaz e estimula a curiosidade sobre os delitos, mais do que informação sobre os processos, provoque prejuízos ao instituto judicial, que desdizem da civilidade (CARNELUTTI, 2017, p. 123-124).
O que está sendo evidenciado é que o mesmo princípio tido como garantia das garantias, que visaria proteger o investigado de arbitrariedades do Estado, passa agora a prejudicá-lo quando, tendo sido exposta sua situação, além de enfrentar o juízo estatal, este terá de enfrentar o julgamento da sociedade.
Ora, tratando-se a publicidade de garantia individual, esta não deve nunca ser exercida contra o titular: o indivíduo. Deve ainda ter por escopo proteger o cidadão não somente do Estado, mas também de outro cidadão ou de pessoa jurídica de direito público ou privado (CANOTILHO, 2007). Se o princípio da publicidade exige que o Estado seja transparente nos atos que pratica, o mesmo deve também demandar que não se divulguem informações indiscriminada e irrestritamente.
Isto significa dizer que, a depender do caso concreto, a máxima efetividade do princípio da publicidade do processo pode implicar na exposição ampla dos fatos, ou, de forma oposta, em nada publicar acerca destes ou ainda publicar com restrições. Deve-se entender o sigilo como decorrente daquele princípio e não alheio a ele. Sendo a exceção, este é desdobramento da regra, sendo linhas que se cruzam (MIRANDA, 2005).
Uma interpretação de tal princípio que ignore seu titular e as consequências sociais de sua aplicação sem medida é uma interpretação equivocada e incompleta. Afinal, a Constituição não é mera folha de papel, como diria Lassale (2001); esta enquanto corpo harmônico deve ser entendida de forma holística, e interpretada de forma sistemática, de modo a não se contradizerem seus valores, fazendo jus à Constituição material (NETO, 2007).
Deve-se cuidar ainda que, ao falarmos da divulgação jornalística do processo penal, não se deve tratar somente do princípio da publicidade, sobretudo é a respeito da liberdade de imprensa que se está falando. Podendo esta ser exercida nos contornos da Constituição Federal (BRASIL, 1988) em seu art 5º, inciso IX: “é livre a expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente de censura ou licença”. Além disso, acrescenta o art. 220, §1º que “Nenhuma lei conterá dispositivo que possa constituir embaraço à plena liberdade de informação jornalística em qualquer veículo de comunicação social, observado o disposto no art. 5º, incisos IV, V, X, XIII e XIV”.
Portanto, para que a imprensa exerça seu papel de informar fatos, inclusive expondo a ação do Estado, servindo de controle externo do poder estatal, esta precisa ser livre de qualquer censura ou licença. No entanto, ausência de censura não implica dizer que a atuação midiática será ilimitada e sem qualquer reponsabilidade. Pelo contrário, a primeira e maior responsabilidade da imprensa é com a verdade e com a veiculação objetiva de informações.
A liberdade de imprensa tem natureza jurídica de direito, tendo por titular imediato a imprensa, e com titularidade mediata a sociedade civil (CANOTILHO, 2007). Entendido isso haja vista não ser de titularidade exclusiva, depreende-se que esse direito não pode ser exercido de forma ilimitada, afinal um de seus titulares é a sociedade civil, da qual faz parte o cidadão. Conforme percebe Bernardo Montalvão Varjão de Azevedo (2012):
Se a liberdade de imprensa é direito que pode ser exercitado pelos meios de comunicação, também é verdade, como se destacou acima, que é direito que tem como titular toda a sociedade civil, logo, o próprio cidadão. Ora, se isso é verdade, não é possível que a liberdade de imprensa sacrifique um de seus titulares, o próprio cidadão, mesmo diante de hipóteses excepcionais como as do processo penal. Note-se que, se a liberdade de imprensa é uma conquista da humanidade, a preservação da inocência e a aplicabilidade ponderada do princípio da publicidade também o são (AZEVEDO, 2012, p. 138).
Vale lembrar que tal liberdade de divulgação jornalística de fatos é mormente exercida por empresas que, por definição, buscam a obtenção de lucro e que, portanto, buscarão noticiar com mais intensidade o que for mais interessante para a audiência. Não se mostra razoável que se aplique de modo desponderado o princípio da publicidade e a liberdade de expressão, em detrimento de outros direitos conquistados (AZEVEDO, 2012).
4 A ÉTICA DA ALTERIDADE
É analisando a situação em que se encontra o investigado, ou mesmo o já sentenciado – qual seja o papel de alvo do sistema penal, tornando-se também alvo da sociedade por meio da mídia – e, somando a ideia de que “a verdade jamais pode ser alcançada pelo homem”, que Carnelutti defende fundar o processo penal não na lógica da totalidade, mas da alteridade, Arenhart e Marinoni (2000) ao comentar sobre a ideia do jurista italiano, manifestaram:
Mas para conhecer a verdade da coisa, ou digamos apenas da parte, é necessário conhecer tanto o verso quanto o anverso: uma rosa é uma rosa, ensinava Francesco, porque não é alguma outra flor; isto quer dizer que para conhecer realmente a rosa, isto é, para atingir a verdade, impõe-se conhecer não apenas aquilo que ela é mas também o que ela não é. […] Em suma, a verdade está no todo, não na parte; e o todo é demais para nós. […]. Assim a minha estrada, começada com atribuir ao processo a busca da verdade, conduziu à substituição da verdade pela certeza (ARENHART; MARINONI, 2000, p. 43-44).
Para Carnelutti (2017), deve-se perseguir a certeza, e não a verdade, haja vista que esta não pode ser apreensível, a não ser em partes. Segundo o autor,
não podemos apreender a verdade a não ser em pequenas doses: cada razão contém uma dose de verdade, umas vezes relevantes e outras desprezíveis. Cada um de nós apenas chega a descobrir uma parte da verdade; por isso em cada um de nós a verdade está misturada com o erro e para depurá-la, cada um de nós necessita do outro: tal é a necessidade do diálogo (CARNELUTTI, 2017, p. 104).
Para o professor Jacinto Nelson Miranda Coutinho, Carnelutti rompeu com a ideia de “verdade processual”, volvendo-se para a “ética da alteridade”, na qual diagnosticada a falta de verdade, no lugar dela Carnelutti propõe que no processo passe-se a buscar e investigar a certeza. “No fundo, é bem que se diga desde logo, não vai mudar muito; mas vai, definitivamente, colocar o espelho diante daqueles que nele devem enxergar-se.”[3]
A lógica proposta por Carmelutti em sua crítica consiste em ver o outro como absolutamente outro[4] advém da Alteridade proposta por Emmanuel Levinas[5] onde aquele
não é uma categoria como outra qualquer, que se prestasse meramente a articulações intelectuais, mas uma incômoda presença a mim, o Mesmo, que sou o indivíduo reflexionante, a mônada autocompreensiva com a qual sua concretude entra em contato real […] (SOUZA, 2004, p. 168).
Ou seja, aspira-se a mudança no sistema desde o tratamento para com aquele que é alvo do processo penal. É colocada em crise a justiça enquanto valor absoluto dos sistemas juridicamente encarregados de dizer o justo.[6] A justiça torna-se dependente da relação entre os sujeitos, só será possível caso a relação com o Outro seja justa.
Tal ética se preocupa em ver o apenado como um ser que não pode ser reduzido a um conceito, uma categoria, uma classificação possível de ser compreendida. Não é somente um acusado, um infrator ou um sentenciado, é um ser complexo, o Outro. A alteridade em questão trata acerca de responsabilidade por outrem, a não-indiferença de quem vê alguém e não algo naquele que é sujeito passivo do procedimento.
Para que fosse plena essa alteridade, o juiz teria que se despir de todo seu aparato, sua toga, e de seu poder real ou simbólico para dar ao acusado o direito à palavra (CARNELUTTI, 2017). Francesco Carnelutti (2017, s/p.), ao analisar os sujeitos processuais, destaca a nobreza da advocacia por cumprir essa alteridade e “sentar-se sobre o último degrau da escada ao lado do acusado”. Em relação aos juízes, sua autoridade e poder de dizer o que é ou não justo é vista antes como uma carga, algo para o que nenhum homem está preparado e todo homem deveria estar ciente disto.
Conforme o pensamento do jurista:
Nenhum homem, se pensasse no que ocorre para julgar um outro homem, aceitaria ser juiz. Contudo achar juízes é necessário. O drama do direito é isto. Um drama que deveria estar presente a todos, dos juízes aos judiados no ato no qual se exalta o processo. O Crucifixo que, graças a Deus, nas cortes judiciárias pende ainda sobre a cabeça dos juízes, seria melhor se fosse colocado defronte a eles, a fim de que ali pudessem com frequência pousar o olhar, este a exprimir a indignidade deles; e, não fosse outra, a imagem da vítima mais insigne da justiça humana. Somente a consciência da sua indignidade pode ajudar o juiz a ser menos indigno (CARNELUTTI, 2017, s/p.).
Para Carnelutti (2017, s/p.), “a solenidade, para não dizer a majestade dos homens de toga se contrapõe ao homem na jaula” e “essa toga, sem dúvida, convida ao recolhimento” (CARNELUTTI, 2017, s/p.). No entanto, em que pese essa evidente autoridade do magistrado ser, a primeira análise, uma dificuldade para a lógica da alteridade no processo penal, Emmanuel Levinas (2005, p. 145) admite que “Se falamos de justiça, é necessário admitir juizes, é necessário admitir instituições como o Estado; viver num mundo de cidadãos, e não só na ordem do face-a-face.” Para o autor “há necessidade de instituições que arbitrem e uma autoridade política que a sustente. A justiça exige e funda o Estado” (LEVINAS, 2005, p. 145).
Portanto, o objetivo não é deslegitimar a reação contra a violência, mas trazer a abordagem pautada na alteridade como forma primeira de resolver a violência, entender que a “justiça é um direito à palavra”, respeitando a condição de dignidade do outro (LEVINAS, 1980).
Carnelutti (2017) ao discorrer sobre os espetáculos violentos do circo nos tempos de Roma e as touradas na Espanha, México e Peru, não deixa de perceber as semelhanças com o processo:
Considerar o homem como uma coisa: pode-se ter uma forma mais expressiva da incivilidade? Mas é aquilo que acontece, infelizmente, nove entre dez vezes no processo penal. Na melhor das hipóteses aqueles que se vão ver, fechados nas jaulas como os animais do jardim zoológico, parecem homens de mentira ao invés de homens de verdade. E se, todavia, alguém percebe que são homens de verdade, parece-lhe que são homens de outra raça ou, quase, de outro mundo. Este não lembra, quando sente assim, a parábola do publicano e do fariseu, nem suspeita que a sua seja justamente a mentalidade do fariseu: eu não sou como este (CARNELUTTI, 2017, s/p.).
Destarte, ver o acusado sob as lentes carnelutianas é sobretudo ver alguém e não algo. A partir dessa lógica o tratamento daquele que supostamente se encontra em conflito com a lei deve ser civilizado e humanizado seja por parte do Estado ou – e ainda mais – por parte da imprensa e daqueles que lhe prestam audiência.
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[1] Acadêmico do Curo de Direito da Universidade Estadual do Maranhão. E-mail: rayamsimon@outlook.com
[2] J. Bentham, ‘Projeto de um novo plano para a organização do estabelecimento judicial na França: proposto como um sucedâneo ao projeto apresentado, para o mesmo fim, pelo Comitê de Constituição, à Assembléia Nacional, em 21 de dezembro de 1789’ (doravante ‘Estabelecimento judicial na França’), impresso em Londres, 1790, 25-6 (Bowring, iv. 285-406, at 316-17)
[3] COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda. Glosas ao “Verdade, Dúvida e Certeza”, de Francesco Carnelutti, para os operadores do Direito. Síntese de parte da disciplina Sistemas de Protección de los Derechos Humanos, do Curso de Doutorado em Derecho Humanos y Desarrollo, da Universidad Pablo de Olavide, Sevilla, Espanha, desenvolvido em jan.-fev./2000. Com modificações, o trabalho havia sido preparado para o painel “Direito e Psicanálise”, do Seminário Nacional “O Direito no III Milênio: Novos
Direitos e Direitos Emergente”, realizado na Universidade Luterana do Brasil – ULBRA, em Canoas, Rio Grande do Sul, de 12 a 15 de novembro de 1997.
[4] Para maiores informações, c.f. COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda. Glosas ao “Verdade, Dúvida e Certeza”, de Francesco Carnelutti, para os Operadores do Direito. In: RUBIO, David Sánchez [et al.] (Org.). Anuário Íbero-Americano de Direitos Humanos (2001/2002). Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2002, p. 182.
[5] Pensador lituano-francês (1906-1995), estudioso de Bérgson, aluno de Husserl e leitor e crítico da Ontologia Fundamental de Heidegger, considerado o filósofo cuja obra tem a característica de uma intensa e rigorosa reconsideração da questão da subjetividade esvaziada de sua aufo-suficiência ontológica, instituidora, em consequência, de um outro modo de pensar, em que a ética é a filosofia primeira e a base de todo pensar. É ele um homem experimentado nos traumas do Século XX e que soube, na incansável perseguição da preservação do humano, pensar não um ser melhor, mas um melhor que ser, para um além de ser, um ser diferente de ser da tradição ontológica, um ser ético. E ao pensar ética, Levinas leva em consideração o outro homem, o absolutamente diferente, o outro percebido como insuscetível de redução a conceitos, a definições. Estrutura tal pensador, assim, uma outra ética, a Ética da Alteridade, sinônimo de responsabilidade, responsabilidade ativa, responsabilidade por outrem, na não-indiferença, modo primeiro de instalar o justo entre os humanos.
[6] Sobre justiça em Levinas, v.g.: LEVINAS, Emmanuel. Verdade e Justiça. In: Totalidade e Infinito. Lisboa: Edições 70, 1980, p. 68-87; LEVINAS, Emmanuel. Filosofia, Justiça e Amor. In: Entre Nós: ensaios sobre a alteridade. Petrópolis: Vozes, 2005, p. 143-164. SOUZA, Ricardo Timm de. Justiça, Liberdade e Alteridade Ética: sobre a questão da radicalidade da justiça desde o pensamento de E. Levinas. In: OLIVEIRA, Nythamar Fernandes e SOUZA, Draiton Gonzaga (Org.). Justiça e Política: homenagem a Otfried Höffe. Porto Alegre: Edipucrs, 2003, p. 619-633.