Resumo: O modesto texto transcreve a origem histórica da condução sob vara, também denominada de condução coercitiva que é medida aplicável tanto no processo penal como no processo civil. E, que teve sua constitucionalidade reafirmada pelo STF.
Palavras-Chave: Constitucionalidade. Medida coercitiva. Direito Processual Penal. Direito Penal. Direito Constitucional.
A famosa expressão “condução sob vara” ou “debaixo de vara” tem origem etrusca, embora seja uma incógnita. Segundo Heródoto, os povos etruscos chegaram da Lídia por volta do século XIII.
Considerou-se os etruscos originários da própria península itálica, mas há quem mencione que eram nórdicos e provavelmente tenham chegado à Etrúria pelo Norte dos Alpes, atual Leste da Suíça e Oeste da Áustria, e descendem dos réticos.
Talvez a resposta esteja na Toscana, mais especificamente na Cultura de Villanova, um sítio arqueológico representado por cerca de em tumbas encontradas.
Primeiramente na Etrúria e, depois, em Roma, os juízes eram divididos em duas classes diferentes, os ordinários e não-ordinários e identificados pelo povo inculto por varas de cores diferentes, chamadas de fasces.
Entre etruscos e, mais tarde, também entre romanos havia certa classe de funcionários públicos chamada de lictores, sendo espécie de oficiais de justiça da época que tinham que abrir espaço em meio à multidão para que os magistrados pudessem passar.
Assim, eram encarregados para esse serviço e carregavam às costas um feixe de varas pertencentes à classe dos magistrados e, com estas, iam paulatinamente afastando as pessoas para que então os doutores pudessem transitar até o lugar dos julgamentos e em meio as aglomerações em geral.
Tal medida também se justificava em razão da extrema rudeza das pessoas que não conseguiam discernir uma autoridade de uma pessoa comum, por isso os fasces serviam simultaneamente para promover a dita identificação por meio do uso do instrumento de coerção, para facilitar a passagem. Tais feixes eram chamados de fasces lictores, feixes de lictor. O detalhe é que quanto maior fosse o número de varas presente no feixe, maior seria o poder do juiz.
Em nosso ordenamento jurídico, chegou através da Roma Antiga por meio do antigo costume de usar os fasces lictor e foram para o bojo das Ordenações Filipinas que vigoraram longamente entre nós e, então, previam o primeiro parágrafo do Título LXV, do livro a, p. 135, in litteris: “E os juízes ordinários trarão varas vermelhas e os juízes de fora brancas continuadamente, quando pela Villa andarem, sob pena de quinhentos réis, por cada vez, que sem ela forem achados”.[1]
Através das Ordenações Filipinas os oficiais de justiça podiam conduzir tanto testemunhas (as renitentes) e os réus debaixo de vara, ou seja, coercitivamente, à força. Mesmo o artigo 95 do Código de Processo Criminal do Império de 1832 previa que quando as testemunhas não comparecessem sem motivo justificado, tendo sido citadas, serão conduzidas debaixo de vara e sofrerão a pena de desobediência.
Portanto, a condução sob vara indicava propriamente a ação de meirinhos ou oficiais de justiça, por ordem de um juiz que poderiam buscar os réus e testemunhas recalcitrantes e trazê-los à sua presença cutucando-os com essas varas pelo caminho para mostrar a todos que ali estava um mau elemento ou sujeito, um renitente, um arredio. E que ele, oficial de justiça, envergando aquela vara, personificava a própria autoridade do juiz.
Atualmente, a expressão “vara” identifica o locus onde o juiz trabalha de acordo com sua especialidade, ou seja, existem vara de trabalho, vara criminal, vara de fazenda pública e, tantas outras.
A condução coercitiva, ou seja, forçada de quem fora intimado e deixa de comparecer perante a autoridade encontra respaldo em nosso ordenamento jurídico exatamente no artigo 201, primeiro parágrafo e, artigo 218, 260 e 278 e 261, primeiro parágrafo do Código de Processo Penal e, ainda, no artigo 80 da Lei dos Juizados Especiais, a Lei 9.099/95 e artigo 187 do Estatuto da Criança e Adolescente.
Aliás, convém sublinhar que o agente poderá ser inclusive responsabilizado criminalmente pela desobediência, prevista no artigo 330 do CP, trata-se de sanção processual, ainda herdade das Ordenações Filipinas, de onde se extraiu a exótica expressão conduzir debaixo de vara.
A referida expressão igualmente é usada em fase investigatória com amplo aval das cortes superiores brasileiras, conforme se verifica o RESP 761 938 /SP (Relator Ministro Gilson Dipp, Quinta Turma, julgado em 4.4.06, DJ 8.5.2006).
A condução coercitiva vem ganhando maior emprego e espaço no meio jurídico brasileiros, até mesmo fora das hipóteses legais, sem que tenha ocorrida a prévia intimação, sendo usada como eficiente mecanismo de persecução penal.
Em verdade, trata-se de excelente ferramenta para malbaratar associações e organizações criminosas, em relação às quais a obtenção de provas geralmente é bem mais trabalhosa, devido às suas ramificações e ao modo de agir de criminosos, os quais invariavelmente, contam com colaboração de vários agentes, da estrutura e organização para evitar a falta de êxito no trabalho investigativo.
Nesse sentido, aliás, há julgados tanto do Supremo Tribunal Federal (HC 107644/SP) quanto do TJGO (agravo regimental em medida cautelar 161912-29.2013.8.09.0000, rel. des. João Waldeck Felix de Sousa, Corte Especial, julgado em 14/1/15, DJ 1725 de 10/2/15), admitindo a condução coercitiva.
Recentemente com o imbróglio penal envolvendo um ex-presidente, na Operação Lava-Jato[2], o referido instrumento coercitivo passou a ser alvo de críticas, tanto que passou a ser figura de crime prevista no projeto de lei 280 de 2016 que trata de abuso de autoridade e, que tramitou e fora aprovado em 26.4.2017.
Nesse contexto o PT ajuizou perante ao STF ação de descumprimento de preceito fundamental ADPF 395 /DF desejando que seja declarada a inconstitucionalidade do artigo 260 do Código de Processo Penal.
Mas, tal inconstitucionalidade, de fato, não existe, pois, mesmo sob a coerção coercitiva, o indivíduo poderá permanecer em silêncio e não produzir provas contra si.
Sendo assim, o instrumento coercitivo com o escopo de promover a oitiva conjunta de investigados e evitar a prévia combinação quando artimanham falsas versões, e, ainda, a ocultação e destruição de provas ou até mesmo, a fuga do agente, pode o juiz, valendo-se de seu poder geral de cautela, conforme o artigo 798 do CPC e artigo 3º do CPP autorizar a coercitiva condução tido como medida cautelar menos invasiva que a prisão respeitando sempre , respeitando-se sempre os direitos constitucionais do indivíduo de permanecer em silêncio e não produzir prova.
Há também uma segunda espécie de condução coercitiva, que é mais recente e deriva diretamente do poder geral de cautela dos juízes, sendo mesmo substitutiva das prisões processuais. E, se encontra no rol meramente exemplificativo contido no artigo 319 CPP.
O instrumento evoluiu muito e passou a ser aplicável a todo e qualquer depoente recalcitrante que, uma vez intimado ou notificado, não comparecesse a ato judicial ou ainda audiência designada pelo MP.
Realmente, o artigo 8º, inciso I da Lei Orgânica do MP da União, a Lei Complementar 75/93 tornou aplicável, por extensão do artigo 80 da Lei 8.625/93, ao MP dos Estados, o que permite aos promotores e procuradores, notificar testemunhas e requisitar sua condução coercitiva, em caso de ausência injustificada.
Em resumo, havendo previsão legal para que o juiz autorize medida cautelar mais gravosa, conforme se revela a constrição cautelar, não subsiste nenhuma ilegalidade ou violação de direitos na adoção de procedimento menos restritivo da liberdade, que, do mesmo modo, pelos critérios famosos de razoabilidade e proporcionalidade, que enfim, atenda aos objetivos da investigação criminal.
O referido cumprimento do mandado judicial se dará, obviamente, observando-se as regras próprias de cumprimento dos mandados de prisão, estatuídas na Constituição Federal, leis e estatutos específicos (LOMAN, OAB, Lei Orgânica do Ministério Público). Será cumprido durante o dia, entregando-se cópia do mandado ao conduzido, o qual terá o direito de comunicar a medida à sua família ou a pessoa por ele indicada, de permanecer calado e de ser assistido por advogado de sua confiança, dentre outras garantias asseguradas em lei.
Em face de ser medida excepcional que é diversa da prisão, o uso de algemas[3] somente é permitido em situações arroladas pela Súmula Vinculante 11 do STF não se admitindo também a espetaculização e a exposição sumária e desnecessária da imagem do conduzido nos veículos de mídia, a não ser se for estes os objetivos da condução.
A razoabilidade e proporcionalidade da condução coercitiva pode incidir no fato e, decretar em substituição à prisão preventiva para prover identificação criminal, conforme artigo 313, parágrafo único do CPP ou à prisão temporária com igual finalidade, vide o artigo 1º, II da Lei 7.960/89 com evidentes vantagens para o conduzido.
Apesar de haver restrições quanto ao uso de algemas[4] na condução coercitiva, em tempo, é salutar sublinhar que o indiciado ou investigado poderá ser algemado, mas não poderá ser recolhido a cela alguma, enquanto permanecer sob precária custódia da autoridade policial, para mera averiguação de sua identidade bem como de circunstâncias do crime ou para prover investigação sumaríssima do arredor do fato.
Caso o investigado ficar preso em até cinco dias, nada impede que sua custódia, sem recolhimento celular, se prorrogue por algumas horas, ou pelo tempo necessário para localizar a vítima ou seu cadáver, apreender documentos e objetos para “congelar ativos do crime”, promover oitiva de cúmplices ou testemunhas do fato, realizar o recolhimento pessoal do suspeito, coletar material biológico para exames ou ainda proceder a completa a identificação criminal do investigado conforme os termos da Lei 12.037/2009.
Em sendo inadequadas ou desproporcionais a decretação de prisão preventiva ou temporária, nada impede que a autoridade judiciária mande expedir mandados de condução coercitiva para serem cumpridos por agentes policiais sem haver qualquer exposição pública do conduzido e para que prestem declarações à Polícia, ao MP, imediatamente após a condução do declarante ao local do depoimento.
E, tal medida então deverá ser executada no mesmo dia da deflagração da condução coercitiva, principalmente nas famosas megaoperações.
Em geral para se viabilizar a condução coercitiva será necessário demonstrar que estão presentes todos os requisitos para a decretação de prisão temporária, mas sim, a limitação de rol fechado ou restritivo do artigo 1º da Lei 7.960/89.
A medida é justificável plenamente em face de premente necessidade de acautelar a coleta probatória durante a deflagração de certa operação policial ou judicial a fim de permitir a conclusão de certa investigação criminal urgente.
Aliás, se a lei permite mais o menos é completamente admissível. Pois, se o legislador permite a prisão temporária por (até) 5 dias, prorrogáveis por mais 5 (cinco) dias nos crimes comuns, a condução coercitiva resolve-se em um dia ou menos que isto, em algumas horas, mediante a retenção do suspeito e sua apresentação à autoridade policial para interrogatório sob custódia, enquanto as buscas têm lugar.
Ou seja, a condução sob vara deve durar apenas o tempo necessário à instrução preliminar de urgência, não devendo persistir por prazo igual superior a 24 horas, caso em que se trasveste em temporária.
Ressalte-se que o STF admite a condução do suspeito à Delegacia de Polícia mesmo sem mandado judicial, pois tal providência se insere nos poderes de investigação da autoridade policial (poderes implícitos).
Em seu voto, o Ministro Dias Toffoli acompanhou o relator Lewandowski e assentou que, no caso concreto, a condução do suspeito “deu-se de forma válida e legal, inserindo-se dentro das atribuições constitucionalmente estabelecidas à polícia judiciária (CF, art. 144, §4; CPP, art. 6, incisos II a VI). Fica claro, portanto, que, para a maioria dos integrantes da 1ª Turma do STF, a condução debaixo de vara não se confunde com qualquer forma de prisão cautelar, no sentido de recolhimento celular.
Se fosse similar, seria necessária prévia ordem judicial, nos termos do art. 5º, LIV, da CF. Assim, esta modalidade de condução coercitiva, no entendimento majoritário daquela turma da Suprema Corte, é mera consequência do poder-dever policial de determinar o comparecimento de pessoas à delegacia para a tomada de depoimentos.
Pode ser entendida também como diligência inerente ao poder-dever de prover segurança pública, semelhante ao que se dá com a retenção de pessoas para a verificação de identidade de cidadãos em bloqueios policiais ou em postos de fronteira, portos e aeroportos.
Atualmente, se defende a condução coercitiva como instrumento útil para o auxílio de investigações principalmente para consecução de meio de prova e, ainda, para salvaguardar os elementos probatórios imprescindíveis para elucidação de crimes complexos e, ainda, à efetivação de outras medidas cautelares na seara do processo penal, que restringe somente temporariamente a liberdade individual do conduzido, diferentemente das prisões provisórias que privam mais permanentemente o indivíduo indiciado de sua liberdade.
Em defesa da condução sob var deve-se destacar que a restrição de liberdade é sempre comportável principalmente quando são insuficientes as demais medidas coercitivas conforme se entende da Reforma do CPP trazida pela Lei 13.403/2011 precisamente pelo art. 282, caput pois o magistrado está legitimado a autorizar tal condução como medida alternativa à segregação cautelar, sem produzir violação à Constituição Federal ou mesmo aos tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos[5].
A condução coercitiva, enfim, não obstante ser útil deve ser utilizada como ultima ratio. Ou seja, derradeiro meio.
Há pouco tempo um ex-presidente da República fora conduzido coercitivamente à sede da Polícia Federal de Curitiba, e até os menos avisados logo comentaram que estaria sendo preso.
É conveniente informar que a conduta coercitiva não é espécie de prisão nem visa segregar o indiciado do convívio social. Ao revés, corresponde somente a medida necessária para se obter esclarecimento de alguns fatos que possam ter relação com certo crime, contravenção ou, ainda, qualquer outro acontecimento que seja crucial para a escorreita investigação de relação jurídica civil, trabalhista, consumerista, administrativa, entre outras.
A condução sob vara galgou fama atual em face da patente militar de alguns investigados ou testemunhas, podendo também ser realizada em face de peritos e até mesmo de vítimas seja em processos de natureza criminal ou cível e, também trabalhista.
Sua maior justificativa é a renitente ausência ao chamamento da pessoa seja por intimação ou nomeação, a fim de que seja devidamente colhido seu depoimento ou realizado determinado ato para o qual sua presença seja indispensável. E, nem sempre a prévia intimação se faz indispensável, basta por exemplo, a inexistência de justo motivo para o não comparecimento ou o indiciado passar estar no famoso lugar incerto e não sabido, ou quando o conduzido oculte ou destrua prova relevante e, então para surpreendê-lo, justamente com outros indiciados ou testemunhas, precisa-se de promover um interrogatório simultâneo com o fito de dificultar que se combinem de testemunhar ou depor uma mesma versão combinada que difere do fatos reais ocorridos dentre outras finalidades.
No contexto jurisprudencial o Supremo Tribunal Federal na ocasião do julgamento do Habeas Corpus (HC) 107644/SP ressaltou a legitimidade da autoridade policial para realizar a condução coercitiva de pessoas quando se mostrar necessário para o esclarecimento de algum delito, desde que sejam resguardados os direitos do conduzido.
Nessa linha, o próprio STF tem se posicionado de maneira reiterada no sentido de que a condução coercitiva deve ser medida excepcional, com sua realização autorizada, contanto que, embora regularmente intimado, o conduzido não tenha comparecido sem apresentar motivo justo (HC’s 80530/PA, 114.806/DF, 99.893/AM e 83.757/DF).
Em síntese, a condução coercitiva, apesar de útil, somente deve ser utilizada como última alternativa, na medida em que, embora não se traduza em prisão, ela traz inúmeros constrangimentos ao conduzido, tolhendo temporariamente sua liberdade de locomoção de maneira repentina.
Deve-se conceder à pessoa a oportunidade de comparecer espontaneamente em virtude de intimação, evitando, assim, que para a condução seja necessário o deslocamento de viatura policial, que certamente seria mais útil cumprindo outras atividades.
Aproximadamente há um ano atrás, precisamente em 22.05.2019 o STF publicou acórdão sobre decisão judicial prolatada nas ADPF 395 e 444, nas quais se questionava a constitucionalidade da condução coercitiva para interrogatório.
Em resumo, a ADPF 395 impugnava a condução coercitiva para interrogatório na investigação e, também na instrução criminal, razão porque seu pedido era na declaração de inconstitucionalidade de medida chamada como cautelar autônoma para inquirição de suspeitos, indiciados ou acusados.
Já a ADPF 444, questionava a constitucionalidade da condução sob vara para interrogatório ainda na fase de investigação policial. Acompanhada de pedido subsidiário para que declarasse inconstitucional a extensiva interpretação para a aplicação da condução coercitiva em situações que extrapolassem os limites do artigo 260 CPP.
O STF considerou procedente o pleito em julgamento, cujo acórdão parcialmente cito in litteris:
“1. Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental. Constitucional. Processo Penal. Direito à não autoincriminação. Direito ao tempo necessário à preparação da defesa. Direito à liberdade de locomoção. Direito à presunção de não culpabilidade.
2. Agravo Regimental contra decisão liminar. Apresentação da decisão, de imediato, para referendo pelo Tribunal. Cognição completa da causa com a inclusão em pauta. Agravo prejudicado. 3. Cabimento da ADPF.
Objeto: ato normativo pré-constitucional e conjunto de decisões judiciais. Princípio da subsidiariedade (art. 4º, §1º, da Lei nº 9.882/99): ausência de instrumento de controle objetivo de constitucionalidade apto a tutelar a situação. Alegação de falta de documento indispensável à propositura da ação, tendo em vista que a petição inicial não se fez acompanhar de cópia do dispositivo impugnado do Código de Processo Penal.
Art. 3º, parágrafo único, da Lei 9.882/99. Precedentes desta Corte no sentido de dispensar a prova do direito, quando “transcrito literalmente o texto legal impugnado” e não houver dúvida relevante quanto ao seu teor ou vigência – ADI 1.991, Rel. Min. Eros Grau, julgada em 3.11.2004. A lei da ADPF deve ser lida em conjunto com o art. 376 do CPC, que confere ao alegante o ônus de provar o direito municipal, estadual, estrangeiro ou consuetudinário, se o juiz determinar. Contrario sensu, se impugnada lei federal, a prova do direito é desnecessária. Preliminar rejeitada. Ação conhecida.
4. Presunção de não culpabilidade. A condução coercitiva representa restrição temporária da liberdade de locomoção mediante condução sob custódia por forças policiais, em vias públicas, não sendo tratamento normalmente aplicado a pessoas inocentes. Violação.
5. Dignidade da pessoa humana (art. 1º, III, da CF/88). O indivíduo deve ser reconhecido como um membro da sociedade dotado de valor intrínseco, em condições de igualdade e com direitos iguais.
Tornar o ser humano mero objeto no Estado, consequentemente, contraria a dignidade humana (NETO, João Costa. Dignidade Humana: São Paulo, Saraiva, 2014. p. 84). Na condução coercitiva, resta evidente que o investigado é conduzido para demonstrar sua submissão à força, o que desrespeita a dignidade da pessoa humana.
6. Liberdade de locomoção. A condução coercitiva representa uma supressão absoluta, ainda que temporária, da liberdade de locomoção. Há uma clara interferência na liberdade de locomoção, ainda que por período breve.
7. Potencial violação ao direito à não autoincriminação, na modalidade direito ao silêncio. Direito consistente na prerrogativa do implicado a recursar-se a depor em investigações ou ações penais contra si movimentadas, sem que o silêncio seja interpretado como admissão de responsabilidade. Art. 5º, LXIII, combinado com os arts. 1º, III; 5º, LIV, LV e LVII. O direito ao silêncio e o direito a ser advertido quanto ao seu exercício são previstos na legislação e aplicáveis à ação penal e ao interrogatório policial, tanto ao indivíduo preso quanto ao solto – art. 6º, V, e art. 186 do CPP.
O conduzido é assistido pelo direito ao silêncio e pelo direito à respectiva advertência. Também é assistido pelo direito a fazer-se aconselhar por seu advogado.
8. Potencial violação à presunção de não culpabilidade. Aspecto relevante ao caso é a vedação de tratar pessoas não condenadas como culpadas – art. 5º, LVII. A restrição temporária da liberdade e a condução sob custódia por forças policiais em vias públicas não são tratamentos que normalmente possam ser aplicados a pessoas inocentes. O investigado é claramente tratado como culpado.
9. A legislação prevê o direito de ausência do investigado ou acusado ao interrogatório. O direito de ausência, por sua vez, afasta a possibilidade de condução coercitiva.
10. Arguição julgada procedente, para declarar a incompatibilidade com a Constituição Federal da condução coercitiva de investigados ou de réus para interrogatório, tendo em vista que o imputado não é legalmente obrigado a participar do ato, e pronunciar a não recepção da expressão “para o interrogatório”, constante do art. 260 do CPP.”
Na época do julgamento, em junho de 2018, abordou-se em doutrina, a questão submetida ao STF bem como os votos dos ministros, onde se destacou que a decisão não abrangeu a condição coercitiva de testemunhas, que são obrigadas a depor e cujo silêncio poderá inclusive ensejar punição por falso testemunho, nos termos do artigo 342 do CP, sendo crime também “calar a verdade”.
Assim, no caso da testemunha regularmente intimada não comparecer nem justificar sua ausência, é dado ao magistrado ordenar à autoridade policial sua apresentação ou determinar que, debaixo de vara, seja ele apresentada coercitivamente por oficial de justiça que poderá solicitar também o auxílio da polícia para a materialização final da diligência.
Tudo isso, com devido amparo no artigo 218 CPP, que não foi objeto de ações constitucionais julgada pelo STF, nem faria mesmo sentido que houvesse sido, pois não há comparação entre o interrogatório de investigados ou acusados e o mero depoimento de testemunhas que declaram no mais das vezes o que sabem sobre o fato mas não se comprometem com suas consequências, ao passo que eventuais declarações prestadas por aqueles a quem a quem se imputa o crime pode implicá-los diretamente.
Disso decorre que o direito ao silêncio acoberta o interrogado, mas não aquele que presta depoimento. E, se este indivíduo não pode se furtar ao dever de esclarecer o que sabe sobre o fato, é natural que haja uma ferramenta processual que garanta o cumprimento da obrigação.
No prólogo de seu voto sobre o mérito das ações, o Ministro Gilmar Mendes deixou claro que a condução pode ser utilizada em diversos contextos, mas o julgamento se resumia ao interrogatório in verbis:
“Inicio por um esclarecimento, para que a compreensão da fundamentação não seja reduzida por ambiguidade.
Busca-se o reconhecimento de que investigados e réus não podem ser conduzidos coercitivamente à presença da autoridade policial ou judicial para serem interrogados.
Há outras hipóteses de condução coercitiva que não são objeto desta ação – a condução de outras pessoas como testemunhas, ou de investigados ou réus para atos diversos do interrogatório, como o reconhecimento, por exemplo. Por óbvio, essas outras hipóteses não estão em causa. Serão mencionadas no curso do voto apenas para ilustração e teste das teses jurídicas em conflito.
Para que não paire dúvida, desde logo esclareço que o emprego não especificado da expressão “condução coercitiva” doravante neste voto fará referência ao objeto da ação – condução do imputado para interrogatório.”
Resta, evidentemente, esclarecido que as testemunhas não estão albergadas da limitação. E, nota-se, que nem mesmo os investigados ou acusados estão absolutamente isentos da condução coercitiva, pois é possível, por exemplo, que sejam conduzidos à força para realização de simples reconhecimento por vítimas ou testemunhas, ou peritos, situação em que, não se cogita a máxima oposição nemo tenetur se detegere porque o indivíduo não produz nenhuma prova contrária a si, tendo em vista que assume uma postura completamente passiva, na qual apenas se submete a um ato em que são conferidas as suas características físicas exteriores e são analisadas por outras pessoas.
A presente ação não trata de outras hipóteses de condução coercitiva, como a de testemunhas e peritos, ou de indiciados ou acusados, para identificação ou qualificação ou outros atos diversos do interrogatório, tal como reconhecimento, dentre outros.
Nota-se que não seja possível determinar tal condução na qualidade de testemunhas apenas no sentido de evitar consequências jurídicas decorrentes da condição ilegal:
“Sobre a condução coercitiva de testemunhas, abro um parêntese para consignar que investigados não devem ser tratados como testemunhas, como forma de burlar a presente decisão.
(…)
“É certo que há dificuldade inicial de definir a posição de algumas pessoas frente à investigação, como suspeitos ou testemunhas. São inúmeros os casos de comissões parlamentares de inquérito que convocam investigados na qualidade de testemunha, havendo intervenção judicial para assegurar o direito ao silêncio. Mas, se a investigação se volta contra a pessoa, apontando-se sua colaboração para os fatos e adotando-se medidas probatórias com grande considerável probabilidade de levar a sua responsabilização, ela deve ser tratada como investigada.”
Igualmente não se impede a condução sob vara de vítimas. Apesar de que esta, não tenha mesmo tratamento jurídico da testemunha, tanto que não é previamente compromissada, e caso, venha a mentir, não responderá pelo crime de falso testemunho, mas pode vir a responder pelo delito de denunciação caluniosa ou de falsa denunciação de crime ou contravenção, conforme os artigos 339 a 340 CP.
E, sobre o assunto, dispõe o artigo 201, parágrafo único do CPP que autoriza expressamente a condução coercitiva do ofendido que, apesar de regularmente intimado, se ausenta, sem apresentar escusa razoável.
Isto ocorre porque, embora não se trate de testemunha, não se ignora o caráter de relevante meio de prova de suas declarações, e, por essa razão, o legislador pátrio considerou importante sua oitiva, dedicando-lhe inclusive um capítulo próprio na parte referente à prova.
Finalmente, reforçamos que a vedação à condução coercitiva para o interrogatório abrange tanto os investigados como também aos acusados, isto é, incidindo na fase de inquérito, fase investigativa como também na instrução processual. Mesmo em juízo, o indiciado ou acusado é informado expressamente que tem direito de permanecer em silêncio[6], conforme reza o artigo 186 CPP.
Existe debate acalorado sobre a natureza jurídica do interrogatório, se em verdade, trata-se de meio de prova ou de defesa. Mas, ultimamente a doutrina mais contemporânea, aderiu a uma posição intermediária, conferindo um caráter misto ou híbrido à natureza do interrogatório enquanto ato processual.
As reformas introduzidas pela Lei 10.792 de 2003 no interrogatório vêm a confirmar essa natureza dúplice, basta ver a situação na qual o réu, perante o juiz, confessa a prática do crime. Conquanto se façam muitas restrições ao caráter absoluto da confissão, que não é mais a rainha das provas de outrora, parece evidente, na prática que jaz grande valor probatório na admissão judicial formulada perante o juiz do delito praticado.
Cumpre esclarecer, por derradeiro, que não mais se cogita em condução forçada para realização de audiência de instrução e julgamento. E, nesse sentido, Nestor Távora deixou claro sua posição contrária à condução de coercitiva, mesmo que o indiciado ou acusado seja militar:
“Nas hipóteses que ainda sobejaram de citação para o interrogatório ou mesmo de intimação para que o militar compareça à audiência de instrução e julgamento, onde se dará o seu interrogatório, entendemos que sua presença não deve ser tida por obrigatória, não se impondo ao acusado condução coercitiva para o fim de ser interrogado. Todavia, prevalece a posição de que o réu pode ser conduzido coercitivamente, embora se lhe assegure o direito ao silencio. Quanto à especificidade de ser o acusado militar, se a sua falta ao ato processual tiver ocorrido por culpa do chefe do serviço, poderá haver, conforme a hipótese, responsabilidade criminal, não existindo revelia do réu em tal caso” (In: TÁVORA, Nestor. ALENCAR, Rosimar Rodrigues. Curso de Direito Processual Penal. Juspodvm, 8ª ed., revista, ampliada e atualizada, Salvador/BA, 2013.).
Lembremos que existem vozes na doutrina que não admitem a condução coercitivas para peritos, testemunhas e vítimas pois não sejam partes no processo, e não tiveram participação no delito e, por isso, não deveriam sofrer o constrangimento em sua liberdade de ir e vir. Assim, defende-se o direito de não ser conduzido, mas caso o seja, que tenha respeitado integralmente o seu direito ao silêncio.
Referências:
ARAS, Vladimir. Debaixo de vara: a condução coercitiva como cautelar pessoal autônoma. 2013. Disponível em:< https://vladimiraras.blog/2013/07/16/a-conducao-coercitiva-como-cautelar-pessoal-autonoma/ . Acesso em: 20 out. 2018.
AVENA, Norberto Cláudio Pâncaro. Processo Penal esquematizado. Rio de Janeiro: Forense; São Paulo: Método, 2014.
BORGES, Thaísa da Silva. A utilização da condução coercitiva para interrogatório do réu: posicionamento do Supremo Tribunal Federal no julgamento das arguições de descumprimento de preceito fundamental 395 e 444. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/70378/a-utilizacao-da-conducao-coercitiva-para-interrogatorio-do-reu-posicionamento-do-supremo-tribunal-federal-no-julgamento-das-arguicoes-de-descumprimento-de-preceito-fundamental-395-e-444 Acesso em 2.5.2020.
FRANCISCANO, Bruno A. Algemas no Direito Penal Brasileiro. Disponível em: https://juridicocerto.com/artigos/brunoamaro/a-aplicabilidade-do-uso-de-algemas-no-direito-penal-brasileiro-1307>a Acesso em 14.5.2020.
GRECO. Rogério. Curso de direito penal, parte geral vol. 1,16ª Ed. Rio de Janeiro: Impetus, 2014.
GUSMÃO, Mônica Cavalcanti. Debaixo de vara. Disponível em: https://monitormercantil.com.br/debaixo-de-vara Acesso em 14.5.2020.
SANTOS, Rosemary Pereira. Condução coercitiva no processo penal: abordagem sob o prisma constitucional. Disponível em: https://www.jurisway.org.br/v2/dhall.asp?id_dh=15723 Acesso em 13.5.2020.
STF publica acórdão sobre inconstitucionalidade de condução coercitiva para interrogatório. Disponível em: https://meusitejuridico.editorajuspodivm.com.br/2019/05/27/stf-publica-acordao-sobre-inconstitucionalidade-de-conducao-coercitiva-para-interrogatorio/ Acesso em 13.5.2020.
Autora:
Gisele Leite, professora universitária há quatro décadas, mestre de Direito, mestre de Filosofia e doutora de Direito. Pesquisadora-Chefe do Instituto Nacional de Pesquisas Jurídicas. Possui 29 obras jurídicas publicadas. Articulista e colunista dos sites e das revistas jurídicas como Jurid, Portal Investidura, Lex Magister, Revista Síntese, Revista Jures, JusBrasil e Jus.Com, Editora Plenum e Ucho.Info.
[1] No antigo direito português, a vara era a insígnia dos juízes ordinários e dos juízes de fora. Era o símbolo de sua autoridade: “E os juízes ordinários trarão varas vermelhas e os juízes de fora brancas continuadamente, quando pella Villa andarem, sob pena de quinhentos réis, por cada vez, que sem ella forem achados” (Ordenações Filipinas, Liv. 1, Título LXV).
[2] A Operação Lava Jato é a maior investigação sobre corrupção conduzida até hoje no Brasil. Ela teve início no Paraná, em 17 de março de 2014, unificando quatro ações que apuravam redes operadas por doleiros que praticavam crimes financeiros com recursos públicos. O nome Lava Jato era uma dessas frentes iniciais e fazia referência a uma rede de postos de combustíveis e lava a jato de veículos, em Brasília, usada para movimentação de dinheiro ilícito de uma das organizações investigadas inicialmente. Desde então, a operação descobriu a existência de um vasto esquema de corrupção na Petrobras, envolvendo políticos de vários partidos e algumas das maiores empresas públicas e privadas do país, principalmente empreiteiras. Os desdobramentos não ficaram restritos à estatal e às construtoras. As delações recentes da JBS e braços da operação espalhados pelo Brasil e exterior são exemplos das novas dimensões que a investigação ainda pode atingir. A duração permanece imprevisível. (In: http://arte.folha.uol.com.br/poder/operacao-lava-jato/#capitulo1 ).
[3] O Supremo Tribunal Federal, na sessão plenária de 13 de agosto de 2008, aprovou, por unanimidade, a Súmula Vinculante nº 11, disciplinando as hipóteses que seria cabível o uso de algemas dizendo: Só é lícito o uso de algemas em casos de resistência e de fundado receio de fuga ou de perigo à integridade física própria ou alheia, por parte do preso ou de terceiros, justificada a excepcionalidade por escrito, sob pena de responsabilidade disciplinar, civil e penal do agente ou da autoridade e de nulidade da prisão ou do ato processual a que se refere, sem prejuízo da responsabilidade civil do Estado. O Supremo Tribunal Federal, ao tentar pôr um fim nas polemicas na regulamentação sobre o uso de algemas, editou esta súmula, porem ao invés de chegar a uma solução, gerou diversas controvérsias. Paulo Rangel faz críticas a este advento: Com a súmula vinculante a Polícia só poderá algemar o detido quando este oferecer resistência, ameaça fugir no momento da prisão ou tentar agredir os agentes de polícia ou a si próprio. Dessa forma, ausentes os requisitos acima o suspeito deve ser preso sem algemas, sob pena de o Estado ser processado civilmente e os agentes responderem administrativamente, civil e penalmente. Além disso, o APF ou o ato processual da prisão pode ser anulado. (RANGEL, 2008, p. 628-629. Apud GRECO 2014, p. 527)
[4] Decisão Divergente: Durante o julgamento do HC 91.952 , em 7 de agosto de 2008, em oposição ao Superior Tribunal de Justiça e ao Ministério Público Federal, o Supremo Tribunal Federal anulou a sessão de julgamento do Tribunal do Júri que condenou um homem por homicídio triplamente qualificado, ao argumento de que a manutenção do réu algemado perante os jurados, a despeito das outras circunstâncias, influenciou na condenação, o que configuraria violação ao princípio da dignidade da pessoa humana. (STF – HC: 91952 SP, Relator: MARCO AURÉLIO, Data de Julgamento: 07/08/2008, Tribunal Pleno, Data de Publicação: DJe-241 DIVULG 18-12-2008 PUBLIC 19-12-2008 EMENT VOL-02346-04 PP-00850).
[5] A Convenção Americana sobre Direitos Humanos em seu artigo 7º, item 2, prevê que “ninguém pode ser privado de sua liberdade física, salvo pelas causas e nas condições previamente fixadas pelas constituições políticas dos Estados-Partes ou pelas leis de acordo com elas promulgadas.
[6] Sua positivação foi bastante influenciada pelo direito norte-americano, especialmente a partir do caso Miranda versus Arizona, de 1966, no qual se consignou a tese de que nenhuma serventia pode ser conferida às declarações feitas por uma pessoa à polícia sem que o envolvido tenha sido informado acerca, simplesmente, de seu direito a não responder. Ainda no plano internacional, impende destacar as previsões do Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos (14, 3, “g”), da Convenção Americana sobre Direitos Humanos (8, §2º, “g), da Convenção Contra a Tortura e Outros Tratamentos Cruéis, Desumanos ou Degradantes, da ONU, e da Convenção Interamericana para Prevenir e Punir a Tortura, da OEA, avenças convergentes no sentido da consagração do direito a calar-se em hipóteses passíveis de um autoprejuízo. A titularidade do direito é atribuída não somente ao preso, como o texto constitucional brasileiro e alguns diplomas referidos parecem sugerir, mas também ao solto e a qualquer indivíduo posicionado como objeto de procedimento investigatório. Da mesma forma, protegem-se as testemunhas e as vítimas chamadas a depor nas fases inquisitiva e processual, porquanto é incabível imaginar que possam ser forçadas a responder a perguntas que, de alguma maneira, revelem-se idôneas a incriminá-las, entendimento aplicável às searas das Comissões Parlamentares de Inquérito e dos processos disciplinares, numa interpretação lógico-sistemática propensa a prestigiar tal direito fundamental.