Preferência de julgamento conforme o valor da causa
Francisco César Pinheiro Rodrigues *
Poucos dias atrás escrevi um artigo — “A solução possível para a impunidade do colarinho branco” —, já divulgado na internet, propondo uma modificação legislativa, de ordem processual penal, que poderia ter um imenso significado no que se refere à diminuição da sensação coletiva de impotência ante os desvios de enormes somas de dinheiro público. O texto pode ser encontrado no meu site, www.franciscopinheirorodrigues.com.br
Em resumo, o artigo procurava demonstrar que um crime financeiro no valor de dez mil reais não acarreta as mesmas conseqüências, sociais e econômicas, de um desvio de dez ou cem milhões de reais, merecendo este último um tratamento privilegiado em termos de preferência de tramitação, mesmo aguardando o réu, em liberdade, a decisão final.
Com a preferência na designação de audiências — na primeira instância —, e também no julgamento de todos os recursos, nesses casos de grande valor econômico, os réus seriam julgados com muito mais brevidade, desaparecendo o atual conflito entre aqueles que querem mais punição efetiva contra os criminosos economicamente poderosos e aqueles, mais formalistas, apegados à tradicional regra da presunção de inocência, defensores da idéia de que somente após o “trânsito em julgado da condenação” — geralmente do STF — é que será possível privar alguém da sua liberdade. Pouco importando que, com a atual demora, muitos crimes acabam prescrevendo, o réu morrendo, ou fugindo quando confirmada a condenação. Demora que, além do mais, acaba se refletindo na impossibilidade de se trazer o dinheiro público de volta, porque pode estar em qualquer parte do mundo.
Essa proposta de modificação legislativa prevê que o promotor, ao oferecer a denúncia, constatando que os valores desviados são vultosos, pediria ao juiz a preferência de tramitação e julgamento. Se deferida pelo juiz, seu despacho seria irrecorrível. Irrecorrível, para o promotor, porque seria contraditório ele pedir a preferência e depois voltar atrás. Para a defesa porque, em tese — na sua pureza teórica —, todo réu tem interesse em provar logo sua inocência, desde que a preferência não prejudique seu direito de defesa — o que não ocorrerá se as audiências e sessões de julgamento forem mais próximas. Com um julgamento mais rápido, limparia sua reputação, pessoal e profissional, seriamente abalada com a pecha de réu criminal. E, possivelmente — não me lembrei de mencionar esse aspecto no artigo em questão — o réu que reconhece, intimamente, sua culpa ficaria mais propenso a fazer um acordo com a acusação, devolvendo o dinheiro desviado — ou parte dele — em troca de uma pena mais leve.
Pois bem, pronto aquele artigo, enviei-o — lobista irrelevante e sem remuneração… — a alguns sites da internet, endereços eletrônicos de legisladores federais e também a um magistrado recentemente aposentado no STJ, o Min. José Delgado. Jurista e intelectual de excepcional visão jurídica — constatável em poucos minutos de conversa — ele aventou, de imediato, para estudo — considerando a evidente analogia de situações —, igual proposta legislativa para a cobrança de dívidas fiscais e previdenciárias também vultosas.
Realmente, por que não se estudar, também na área não-penal, essa prática solução legislativa — a única que realmente funciona porque suplanta discussões teóricas infindáveis — para o problema das dívidas tributárias e previdenciárias imensas? A preferência procedimental da cobrança de dívidas fiscais avultadas operaria maravilhas.
Segundo entrevista do Dr. José Toffoli, Advogado Geral da União, a um jornal paulista, vários meses atrás — tenho guardado o recorte, mas não o localizei neste momento — a dívida ativa da União, apenas da União, gira em torno de seiscentos bilhões de reais. Isso mesmo, “bi”, não “mi”. Se pelo menos metade dessa verba chegasse aos cofres públicos com certa brevidade, qual não seria o imenso benefício para o país? Diminuiria a dívida pública interna, possibilitaria uma grande melhoria do sistema público de saúde, atualizaria o valor das pensões do INSS e tudo o mais que se poderia fazer com tanta riqueza. Dinheiro atualmente “encalhado” em processos judiciais sem fim — porque o nosso sistema de recursos parece ter sido concebido para eternizar as demandas.
Com essa preferência de tramitação das grandes dívidas tributárias e previdenciárias haveria justiça fiscal para as empresas que cumprem regularmente suas obrigações. Elas, hoje, só se prejudicam financeiramente com o cumprimento pontual de suas obrigações. Como pagam os pesados impostos, taxas e contribuições com regularidade, levam desvantagem em relação aos concorrentes mais “espertos”, que não pagam nada e por isso podem vender seus produtos por preço mais barato. Os sonegadores, claro — “um dia…”, em um enevoado futuro —, poderão ter sua dívida enormemente aumentada, mas o acúmulo gigantesco de processos na Justiça é um estímulo direto para a sonegação, desde que haja verba mensal para remunerar o “esticamento” do término da demanda. E os habituais sonegadores, percebendo o emperramento quase invencível da máquina judiciária — que não pode delegar aos computadores o julgamento dos recursos judiciais — sabem que, cedo ou tarde, aparecerá um “Refis”, ou coisa equivalente, que permitirá enorme redução da dívida e seu pagamento com término das prestações na segunda ou terceira geração do contribuinte omisso.
Com a preferência de tramitação — um sugestão para estudo, vinda do Min. José Delgado — das grandes cobranças fiscais no judiciário, algo que não cerceia o direito de defesa, estaríamos pondo em prática aquela antiga sabedoria, no campo do Direito: os desiguais têm que se tratados de forma desigual. Inclusive na esfera processual. Insista-se: para a nação, e seu povo, é muito mais lesiva a sonegação de centenas de milhões de reais do que uma grande quantidade de pequenas dívidas. “Justiça concentrada, por atacado”, sem cercear o direito de defesa. Com aprovação ética dos pobres, da classe média e mesmo dos ricos que cumprem suas obrigações, mesmo reclamando contra o exagero da carga fiscal brasileira. E, velho refrão de verdade inegável: se todos pagassem seus tributos todos pagariam menos.
Não se alegue que esse tratamento preferencial de tramitação “para os ricos” (devedores) seria antidemocrático, um privilégio. Os habituais grandes devedores do fisco não gostariam, nem um pouco, desse amargo “privilégio”.
Finalmente, resta saber quem definiria a “relevância” da cobrança, em termos quantitativos, para gerar a preferência de tramitação. Seria o procurador da União ou a própria lei?
Parece-me que melhor seria atribuir à lei essa fixação. Do contrário, o representante da União poderia ver-se tentado a rotular quase todas as cobranças como “urgentes”, o que seria um desvirtuamento desse novel instituto processual. Aí, sim, haveria um “privilégio” injustificável em favor da dívida ativa da União. Outros litigantes sofreriam ainda mais atraso no julgamento de seus recursos.
A solução mais acertada, ”prima facie”, seria a lei estabelecer a preferência de tramitação para as dívidas fiscais acima de “x” salários mínimos. Digamos 400 salários-mínimos — R$166.000,00 — mas cabe ao legislador, melhor informado sobre a conveniência quantitativa, fixar o que seria mais relevante para justificar a preferência em questão.
Aguardemos, pois, a reação dos nossos representantes no legislativo. E se a idéia “pegar”, provavelmente o fisco estadual tentará o mesmo caminho. Com fundamento.
A “repercussão geral” já foi prestigiada — com lógica e bom senso — pelo legislador, permitindo ao tribunal máximo escolher o que deve ou não julgar, conforme a importância econômica, social ou jurídica do conflito. Se encara-se como virtude essa seletividade no fim do processo, depois de longa espera, com mil razões a mais se justifica que tal seleção ocorra logo no início da demanda, evitando-se a imensa e lesiva perda de tempo no julgamento de causas de grande relevância econômica — e conseqüentemente social. Nas finanças estatais, o social depende do econômico.
(6-10-2008)
* Escritor – Desembargador aposentado. Site: www.franciscopinheirorodrigues.com.br
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