Processo Civil

As decisões monocráticas do art. 557 do CPC

As decisões monocráticas do art. 557 do CPC

 

 

Maria Berenice Dias*

 

 

O aumento cada vez maior de demandas que aportam na Justiça leva à necessidade de buscar formas mais expeditas para a solução dos conflitos. Para assegurar a garantia de um resultado conforme com o Direito, imperiosa a mantença dos meios impugnativos, pois há maior probabilidade de acerto, quando os pronunciamentos judiciais estão sujeitos ao crivo da revisão.[1] Entretanto, a consagração do princípio do duplo grau de jurisdição não pode continuar a subjugá-lo à tradição de que todos os recursos merecem julgamento por órgãos coletivos.

 

Desde a edição do Código de Processo Civil, existe a possibilidade de manifestações monocráticas no segundo grau[2], mas sempre houve uma postura acanhada dos integrantes dos tribunais, restringindo-se o relator a proferir singularmente meros despachos ordinatórios, apreciar pedidos liminares e decidir algumas questões de caráter incidental. Ainda que sem previsão legal, tais manifestações acabam dando ensejo a possibilidades revisionais, por meio dos nominados agravos regimentais – que têm previsão apenas nos regimentos internos das Cortes Julgadoras, como se tais estatutos dispusessem de legitimidade para legislar sobre matéria restritamente de feição processual.

 

O sistema recursal brasileiro sempre foi fiel ao critério do julgamento colegiado, verdadeiro fetichismo, que não permitia sequer se atentasse em que o art. 557 do CPC[3], desde sua redação originária, já outorgava ao relator a possibilidade de indeferir o recurso de agravo por despacho quando manifesta a improcedência.

 

Mesmo diante da significativa abrangência introduzida pela Lei nº 9.139/95[4] ao indigitado dispositivo legal, a inovação não mereceu a devida atenção, em nada alterando a rotina de levar ao colegiado todos os recursos, ainda que para deles não conhecer por carência de pressuposto de admissibilidade ou mesmo quando manifestamente prejudicados.

 

Essa nova dimensão, além de autorizar o julgamento unipessoal em todo e qualquer recurso – e não só no recurso de agravo –, veio em sua redação atender à queixa da doutrina, que questionava a possibilidade do julgamento singular por manifesta improcedência – ou seja, julgamento de meritis ­­– sem conceder tal faculdade para a apreciação dos requisitos de admissibilidade dos recursos ou para negar-lhes seguimento quando prejudicados.

 

Assim, o legislador, além de albergar as hipóteses em que se verificava ausência de pressuposto de admissibilidade ou causas de prejudicialidade, de modo expresso permitiu a rejeição do recurso manifestamente improcedente ou contrário à súmula do respectivo tribunal ou tribunal superior. [5] De maneira mais clara foi assegurada a apreciação singular do mérito do próprio recurso, para julgá-lo improcedente. Somente o acolhimento do recurso persistia como prerrogativa exclusiva do colegiado.

 

Nem sequer o maior alargamento dos poderes do relator, concedido pela Lei nº 9.756/98, que cunhou a atual redação do art. 557 do CPC, entusiasmou os julgadores. Persiste a velha praxe de levar todos os recursos à mesa para apreciação conjunta. O novo dispositivo, além de ter autorizado o acolhimento in limine do recurso (dizendo: o relator poderá dar provimento ao recurso), não outorga ao relator, simplesmente, a faculdade de negar seguimento ao recurso (dizia: o relator poderá indeferi-lo), mas impôs-lhe o dever de assim agir, dizendo agora: o relator negará seguimento ao recurso…

 

Além dessas duas profundas alterações, foram corrigidas algumas impropriedades remanescentes dos textos anteriores. A manifestação do relator passou a ser nominada de decisão, e não mais de despacho. Foi fixado o prazo de 5 dias  para a possibilidade recursal, que agora adquiriu o nome de agravo, ainda que sem qualquer identificação ou especificidade.[6] O equívoco na numeração dos seus parágrafos[7] e a adoção generalizada da expressão negativa de seguimento [8] – quando o reconhecimento da improcedência do recurso tecnicamente dá ensejo ao seu desacolhimento – em nada compromete a compreensão e o alcance das alterações havidas. Como refere Athos Gusmão Carneiro, não se cuida, a rigor, de negativa de ‘seguimento’ ao recurso, mas negativa de ‘provimento’, eis que o relator não apenas deixa de encaminhar o recurso ao órgão colegiado ao qual em princípio é dirigido, mas declara que não procede a própria pretensão recursal, decidindo ele, monocraticamente, com a mesma eficácia e amplitude de que se revestiria a decisão colegiada.[9]

 

De forma lúcida assevera Adroaldo Furtado Fabrício: a evolução recente da legislação processual civil brasileira caminha decididamente para uma progressiva relativação do princípio da colegialidade no julgamento dos recursos.[10]

 

A resistência de alguns magistrados a tão eficiente forma de julgar um recurso, alegando que a parte tem o direito de ver sua irresignação apreciada por órgão colegiado,[11] revela exacerbado conservadorismo que não dispõe de respaldo legal. A crescente opção pelo julgamento singular, ampliando os poderes do relator, representa uma legítima tentativa de inovar sistematicamente na luta contra a lentidão do julgamento nos tribunais[12] e sequer permite que se questione a constitucionalidade de tais permissivos. O processo se presta à concreção do direito à jurisdição, com estrita observância dos regramentos ínsitos ao denominado ‘due process of law’, no dizer de Rogério Lauria Tucci e José Rogério Cruz e Tucci, ou seja, importa a possibilidade de inarredável tutela de direito subjetivo material objeto de conhecimento, satisfação ou assecuração, em Juízo.[13]

 

Facultado o julgamento monocrático, quando a decisão recorrida se afasta do pensamento uniforme da corte julgadora, não há como reputar infringido qualquer direito da parte. A diretriz política de adotar o sistema colegiado de julgar, quando a lei impõe o singular, não cria exceção ao princípio, dando origem a uma interpretação restritiva de tal faculdade. Ao contrário. Nessa hipótese, o julgamento coletivo não é simples abrir mão de uma faculdade legal, mas, sim, o descumprimento de um dever decorrente de lei. O fato de a lei ter adotado uma nova modalidade de julgamento não violenta o princípio do devido processo legal. Vale ainda sublinhar, como bem observa Athos Gusmão Carneiro, que o relator, em casos tais, não estará decidindo por ‘delegação’ do colegiado a que pertence, mas sim exerce poder jurisdicional que lhe foi outorgado por lei.[14]

 

As alterações pontuais introduzidas no estatuto processual acabaram produzindo verdadeira reforma no mecanismo dos procedimentos, imprimindo notável dinamismo ao processo e acentuando seu caráter instrumental.[15]

 

Com certeza, a mais profunda reforma foi a que atingiu o agravo de instrumento. O deslocamento do juízo de interposição do primeiro para o segundo grau, a possibilidade de concessão de efeito suspensivo à decisão atacada, a faculdade de o agravante buscar liminarmente antecipação de tutela, pelo chamado efeito ativo, emprestaram tal agilidade e rapidez a esse remédio recursal, que verdadeira avalanche de recursos assaltou os tribunais e sufocou os julgadores.

 

Transferiu-se para a instância superior o encargo de, no momento da interposição do agravo, examinar os requisitos de sua admissibilidade e apreciar o pedido liminar – que em regra é formulado, mesmo quando nada justifica a antecipação pretendida. Esse fato leva o relator, não raro, já na primeira vista d’olhos, a verificar que muitos dos recursos não merecem sequer ser processados. Certamente, foi tal realidade que levou à releitura do art. 557 do CPC para entender sua real dimensão e utilidade.

 

A manifesta inadmissibilidade do recurso, seja por ausência de condições de procedibilidade, seja por clara afronta a uniforme entendimento dos órgãos julgadores superiores, faculta o julgamento de forma antecipada, tanto para acolhê-lo, quanto para rejeitá-lo. O alargamento particularmente atual e notável[16] dos poderes do relator impõe-lhe uma verdadeira triagem dos recursos endereçados ao julgamento conjunto. Essa possibilidade veio com a salutar função de desobstruir a Justiça, ensejar a possibilidade de decisões mais céleres e propiciar, a par da resposta muito mais eficiente, a significativa redução de tempo, com acentuada repercussão econômica. Necessário se considere, além do dispêndio de tempo, o custo de toda a tramitação do recurso, quando possível, desejável e recomendável seja ele apreciado imediatamente.

 

Também descabe ver na possibilidade de julgamento monocrático uma restrição ao exame de questões de ordem processual, o que seria inadmissível quando envolver questão de prova. O simples fato de o direito buscado ter por fundamento algo que exija comprovação não prejudica a possibilidade de reconhecer a pretensão como flagrantemente procedente ou improcedente. Se a lei não impõe restrição ao conteúdo, espécie ou natureza do recurso, não pode o intérprete dar-lhe caráter de excepcionalidade para limitar seu uso.

 

Outro aspecto a considerar é a abrangência inerente a tal permissivo legal. Não há como restringi-lo ao recurso de agravo de instrumento. Essa limitação já está afastada desde a anterior reforma, datada de 1995. Assim, quer se trate de apelação, quer de embargos de declaração, agravo regimental ou até de embargos infringentes, dispõe o relator da faculdade de acolhê-lo liminarmente ou o dever de negar-lhe seguimento. Dispensável referir que, no caso de embargos infringentes, tal possibilidade alcança apenas a admissibilidade ou prejudicialidade, e não o mérito do recurso.

 

Os Procuradores de Justiça, em particular, têm argüido de inconstitucional o § 1º do art. 557 do CPC, alegando estar comprometida a indispensável manifestação do agente ministerial previamente ao acolhimento do recurso. Ora, se, no primeiro grau, quando a petição inicial traz pedido liminar ou de tutela antecipada, não se obriga ao juiz ouvir previamente o Ministério Público, o que ocorre também no julgamento conforme o estado do processo, por igual ou maior razão deve o mesmo ocorrer nos tribunais.

 

Outro fato digno de atenção é que o agravo previsto no § 2º se limita ao caso em que a apreciação liminar põe fim ao recurso, por qualquer motivo: quer negando-lhe seguimento por manifestamente inadmissível ou prejudicado, quer dando-lhe ou negando-lhe provimento, vale dizer, julgando-o procedente ou não.

 

A possibilidade de atribuir efeito suspensivo ao agravo de instrumento (inc. II do art. 527 do CPC) foi ampliada para ensejar o que se chama de efeito ativo: possibilidade de rever a decisão do juiz que indeferiu o pedido da parte. Ambos os efeitos nada mais são do que concessão de tutela antecipada. Nada disso – efeito suspensivo ou ativo ou, mesmo, qualquer forma de tutela antecipada – nada autoriza o uso do dito agravo, que se limita às hipóteses de estancamento da tramitação do recurso.

 

Igualmente descabe pretender revisar a decisão liminar fazendo uso do agravo regimental. Feliz a expressão de Araken de Assis: o silêncio eloqüente do legislador evidencia que a decisão que aprecia o pedido liminar não se sujeita a recurso.

 

Assim, incabível qualquer recurso contra decisão que indefere o pedido liminar, mas determina o processamento do recurso. O relator deve rejeitar liminarmente o recurso, qualquer que seja, por manifesto descabimento. Isso é possível agora, fazendo uso do art. 557 do CPC.

 

Uma última observação é pertinente.

 

A faculdade recursal outorgada pelo § 2º do dispositivo legal em exame não pode ser usada como via revisional, com a só finalidade de buscar a reapreciação do julgamento singular pelo órgão colegiado. Não se presta o agravo para repristinar toda a linha argumentativa que deu ensejo ao recurso que mereceu inicial apreciação. Esse é o sentido da Sumula 182 do STJ[17], que cabe ser invocado. Busca-se em um primeiro momento a retratação do relator e, de forma alternativa, o julgamento colegiado. Mas o objeto da irresignação deve-se restringir em apontar error in procedendo do relator ao negar seguimento ao recurso por falta de condições de admissibilidade ou por tê-lo reconhecido como prejudicado. De outro lado, se houve o julgamento de mérito, quer acolhido o recurso, quer improvido, o uso do remédio recursal está limitado à demonstração de que a decisão singular não guardou consonância com alguma súmula ou jurisprudência predominante.

 

Se tem o juiz a função de julgar, o fato de integrar o segundo grau de jurisdição não o esquiva de cumprir a lei. Não lhe permite escudar-se em um dogma que a lei afastou e, assim, omitir-se em contribuir para minimizar os sérios e graves problemas que assolam o Poder Judiciário. As ácidas críticas de que a Justiça é alvo, principalmente de morosidade, aconselham a seus membros o uso de um ágil, eficiente e célere instrumento, que tem como escopo desobstruir as pautas dos tribunais, a fim de que as ações e os recursos que realmente precisam ser julgados por órgão colegiado possam ser apreciados o quanto antes possível, conforme reiteradamente vem afirmando o Superior Tribunal de Justiça.[18]

 

Não se justifica a resistência ainda existente nos tribunais frente a um procedimento legítimo, conveniente e necessário, além de determinado por lei. Todos devemos cumprir a função de dar a cada um o que é seu. Mas o bem da vida buscado em juízo deve ser entregue enquanto ainda tenha valor, e que seu titular ainda o receba em vida.

 

É mister deixar velhos hábitos, ainda quando mais cômodo seja repartir a responsabilidade de julgar.

 

 

 

 

 

 

[1] BARBOSA MOREIRA, José Carlos. Comentários ao Código de Processo Civil. v. V, Rio de Janeiro: Forense, 1974, p. 195).

 

[2] Cabe trazer como exemplo o § 2º do art. 138 do CPC, que outorga ao relator o processamento e julgamento da argüição de suspeição ou impedimento.

 

[3] Art. 557: Se o agravo for manifestamente improcedente, o relator poderá indeferi-lo por despacho. Também por despacho poderá convertê-lo em diligência se estiver insuficientemente instruído.

 

[4] Art. 557: O relator negará seguimento a recurso manifestamente inadmissível, improcedente, prejudicado ou contrário a súmula do respectivo tribunal ou tribunal superior.

 

[5] A redação é inspirada na igual possibilidade que o Regimento Interno do Superior Tribunal de Justiça concede ao relator para garantir a aplicação uniforme de interpretação da lei federal (art. 34, inc. XVIII).

 

[6] Considerado quase um tertium genus, por não se identificar com qualquer das modalidades de agravo existentes, passou a ser chamado de agravo interno, inominado ou de lei. Expressões todas, no entanto, sem significativo coerente.

 

[7] Os dois primeiros parágrafos restaram sob o número 1, o que tem levado os códigos a grifar o primeiro como § 1º A.

 

[8] Terminologia adequada tão-só quando a decisão é terminativa, ou seja, há o reconhecimento da falta de pressuposto de admissibilidade ou se constata presença de causa de prejudicialidade.

 

[9] Poderes do Relator e Agravo Interno – artigos 557, 544 e 545 do CPC. Revista  AJURIS. Porto Alegre, v.79, p. 27.

 

[10] FABRÍCIO, Adroaldo Furtado. Tutela Antecipada: Denegação no 1º Grau e Concessão pelo Relator do Agravo. Revista AJURIS, v. 76, p. 20.

 

[11] Embargos Infringentes nº  70002113850, 4º Grupo Cível do TJRGS, julgado em 20.4.2001, Relator Des. Sérgio Fernando S. de V. Chaves.

 

[12] DINAMARCO, Cândido Rangel. O Relator, a Jurisprudência e os Recursos. In Aspectos Polêmicos e Atuais dos Recursos Cíveis de acordo com a Lei 9.756/98. Coord. Tereza Arruda Alvin Wambier e Nelson Nery Jr. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1999, p. 131).

 

[13] Constituição de 1988 e Processo. São Paulo: Saraiva, 1989, p. 17.

 

[14] Poderes do Relator e Agravo Interno – artigos 557, 544 e 545 do CPC. Revista  AJURIS. Porto Alegre, v. 79, p. 24.

 

[15] Não se pode deixar de atribuir aos Ministros Athos Gusmão Carneiro e Sálvio de Figueiredo Teixeira os méritos destes resultados. Uma série de leis acabaram produzindo, de forma inteligente e pragmática, significativas reformas, que resolveram muitas questões, emprestando ao processo uma maior celeridade.

 

[16] FABRÍCIO, Adroaldo Furtado. Tutela Antecipada: Denegação no 1º Grau e Concessão pelo Relator do Agravo. Revista AJURIS, v. 76, p. 20.

 

[17] Súmula 182 do STJ: É inviável o agravo do art. 545 do CPC que deixa de atacar especificamente os fundamentos da decisão agravada.

 

[18] REsp. 156.311 e REsp 224.968.

 

 

 

 

* Desembargadora do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul. Vice-Presidente Nacional do Instituto Brasileiro de Direito de Família – IBDFAM

 

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Como citar e referenciar este artigo:
DIAS, Maria Berenice. As decisões monocráticas do art. 557 do CPC. Florianópolis: Portal Jurídico Investidura, 2000. Disponível em: https://investidura.com.br/artigos/processo-civil/as-decisoes-monocraticas-do-art-557-do-cpc/ Acesso em: 06 dez. 2024