A prisão civil do devedor na alienação fiduciária em garantia
Ravênia Márcia de Oliveira Leite*
Alienação fiduciária em garantia é um contrato de eficária real, por meio do qual, uma das partes, devedor (fiduciante) transfere a propriedade resolúvel do bem móvel ao credor (fiduciário), o qual permanecerá com essa garantia até o cumprimento total da obrigação.
O instituto foi criado pela Lei n.º 4.728/65 (lei de mercado de capitais) e modificado pelo Decreto Lei n.º 911/69 com o propósito de criar um processo de busca e apreensão do bem móvel dado em garantia, medida que poderá ser convertida, nos mesmos autos, em ação de depósito.
Barbosa Moreira assevera que o contrato de depósito é questão definida tecnicamentem que não pode ser confundida com a alienação fiduciária em garantia.
Por outro lado, as instituições financeiras, proprietárias do bem móvel dado em depósito, não admitem sua perda, já que, em ocorrendo a mesma, apesar da regra geral res perit domino, não admitem tais efeitos; mas buscam junto ao judiciário os benéficios da prisão do depositário infiel.
Conforme Villaça as instituições financeiras argumentam contraditoriamente, já que, consideram se proprietárias para os fins de prisão do alienante fiduciário ou depositário infiel, com desejam. No entanto, não admitem ser a proprietária para os efeitos gerados pelo risco de possuir a coisa.
O Superior Tribunal de Justiça, em vários julgados, tem considerado inconstitucional a prisão civil nos casos de alienação fiduciária. No entanto, o Supremo Tribunal Federal, durante largo período, a admitia (HC 755.127/SP).
A venda do bem alienado em garantia configura, em tese, o crime de apropriação indébita, infração penal de médio potencial ofensivo cabendo suspensão condicional do processo ou pena substitutiva, nos termos da lei. O Direito penal afasta a prisão, no entanto, o direito civil a admitia até recentemente.
Entrento, conforme o informativo n.º 449, do STF, verifica se o início do processo de mudança, assaz importante, de posicionamento daquele orgão de superposição. Senão vejamos:
“O Tribunal iniciou julgamento de recurso extraordinário no qual se discute a constitucionalidade da prisão civil do depositário infiel nos casos de alienação fiduciária em garantia (DL 911/69: “Art. 4º Se o bem alienado fiduciariamente não for encontrado ou não se achar na posse do devedor, o credor poderá requerer a conversão do pedido de busca e apreensão, nos mesmos autos, em ação de depósito, na forma prevista no Capítulo II, do Título I, do Livro IV, do Código de Processo Civil.”). O Min. Cezar Peluso, relator, negou provimento ao recurso, por entender que a aplicação do art. 4º do DL 911/69, em todo o seu alcance, é inconstitucional. Afirmou, inicialmente, que entre os contratos de depósito e de alienação fiduciária em garantia não há afinidade, conexão teórica entre dois modelos jurídicos, que permita sua equiparação. Asseverou, também, não ser cabível interpretação extensiva à norma do art. 153, § 17, da EC 1/69 – que exclui da vedação da prisão civil por dívida os casos de depositário infiel e do responsável por inadimplemento de obrigação alimentar – nem analogia, sob pena de se aniquilar o direito de liberdade que se ordena proteger sob o comando excepcional. Ressaltou que, à lei, só é possível equiparar pessoas ao depositário com o fim de lhes autorizar a prisão civil como meio de compeli-las ao adimplemento de obrigação, quando não se deforme nem deturpe, na situação equiparada, o arquétipo do depósito convencional, em que o sujeito contrai obrigação de custodiar e devolver.
Em seguida, o Min. Gilmar Mendes acompanhou o voto do relator, acrescentando aos seus fundamentos que os tratados internacionais de direitos humanos subscritos pelo Brasil possuem status normativo supralegal, o que torna inaplicável a legislação infraconstitucional com eles conflitantes, seja ela anterior ou posterior ao ato de ratificação e que, desde a ratificação, pelo Brasil, sem qualquer reserva, do Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos (art. 11) e da Convenção Americana sobre Direitos Humanos – Pacto de San José da Costa Rica (art. 7º, 7), não há mais base legal para a prisão civil do depositário infiel. Aduziu, ainda, que a prisão civil do devedor-fiduciante viola o princípio da proporcionalidade, porque o ordenamento jurídico prevê outros meios processuais-executórios postos à disposição do credor-fiduciário para a garantia do crédito, bem como em razão de o DL 911/69, na linha do que já considerado pelo relator, ter instituído uma ficção jurídica ao equiparar o devedor-fiduciante ao depositário, em ofensa ao princípio da reserva legal proporcional. Após os votos dos Ministros Cármen Lúcia, Ricardo Lewandowski, Joaquim Barbosa, Carlos Britto e Marco Aurélio, que também acompanhavam o voto do relator, pediu vista dos autos o Min. Celso de Mello.
RE 466343/SP, rel. Min. Cezar Peluso, 22.11.2006. (RE-466343)”
Entretanto, somente em dezembro de 2008 o STF consolidou tal posição decidindo por maioria, o Recurso Extraordinário (RE) 349703 e, por unanimidade, negou provimento ao RE 466343, supra citado, que discutiam a prisão civil de alienante fiduciário infiel. O Plenário estendeu a proibição de prisão civil por dívida, prevista no artigo 5º, inciso LXVII, da Constituição Federal (CF), à hipótese de infidelidade no depósito de bens e, por analogia, também à alienação fiduciária, tratada nos dois recursos.
Assim, a jurisprudência da Corte evoluiu no sentido de que a prisão civil por dívida é aplicável apenas ao responsável pelo inadimplemento voluntário e inescusável de obrigação alimentícia. O Tribunal entendeu que a segunda parte do dispositivo constitucional que versa sobre o assunto é de aplicação facultativa quanto ao devedor – excetuado o inadimplente com alimentos – e, também, ainda carente de lei que defina rito processual e prazos.
Também por maioria, o STF decidiu no mesmo sentido um terceiro processo versando sobre o mesmo assunto, o Habeas Corpus 87585. Para dar conseqüência a esta decisão, revogou a Súmula 619, do STF, segundo a qual “a prisão do depositário judicial pode ser decretada no próprio processo em que se constituiu o encargo, independentemente da propositura de ação de depósito”.
Ao trazer o assunto de volta a julgamento, depois de pedir vista em março de 2008, o ministro Carlos Alberto Menezes Direito defendeu a prisão do depositário judicial infiel. Entretanto, como foi voto vencido, advertiu que, neste caso, o Tribunal teria de revogar a Súmula 619, o que acabou ocorrendo.
* Delegada de Polícia Civil em Minas Gerais. Bacharel em Direito e Administração – Universidade Federal de Uberlândia. Pós graduada em Direito Público – Universidade Potiguar. Pós-graduada em Direito Penal – Universidade Gama Filho.