Política Externa e Desonestidade Mental
Francisco César Pinheiro Rodrigues*
Se há algo que me impressiona extraordinariamente é a capacidade do ser humano de mentir deslavadamente. E o que é pior, porque aí já vira insulto: presumir estupidez na pessoa que ouve. E, aumentando ainda mais o grau de virulência dessa quase doença cerebral: mentir tanto que acaba convencendo a si mesmo. É sobre estes estágios — o pior é o último — que faremos aqui algumas considerações. O esforço hercúleo para se auto enganar, por vezes bem sucedido.
Aí já é preciso chamar o psiquiatra, se acredita que ele é exceção… Mas, pensando melhor, pode chamá-lo, porque mesmo sendo, eventualmente, inconfiável em alguma coisa —ninguém é perfeito —, profissionalmente será confiável no item específico de tentar localizar o problema na mente do cliente, uma vez que isso beneficiará sua reputação profissional. Quando a verdade se apresenta vantajosa é recebida de peito aberto, não sofre deformações para “enquadrá-la”, à muque, no molde desejado. Não há problemas com a verdade quando ela só nos traz benefícios. O grande teste está na verdade desvantajosa.
É espantoso que embora nosso grau de civilização — refiro-me à espécie humana não a países específicos — tenha chegado ao ponto de condenar, mundialmente, a desonestidade em assuntos de dinheiro, não demonstre a mesma clara aversão à desonestidade mental, ainda muito bem tolerada. Talvez porque todo ser humano reflita, examinando seu íntimo, que “ninguém é de ferro”, não estando em condições de atirar a primeira pedra. Mas não é preciso apedrejar, basta um esforço para melhorar.
Não confundamos os dois tipos de desonestidade. O “material”, digamos, e o mental. Um ladrão de banco, um traficante, um bandido, não obstante extremamente mau, lesivo e desonesto pode, paradoxalmente, ser muito mais “mentalmente honesto” consigo mesmo, do que um presidente da república, um jurista, um professor universitário, um grande empresário ou mesmo um representante de tal ou qual religião. Omiti “um político” porque é da essência da política a necessidade de, em certa medida, falsear a verdade. Do contrário o adversário, menos escrupuloso, leva o prêmio.
O “bandidão’, quando preso e para salvar a pele, mente na frente do juiz, alegando inocência, mas talvez não minta para si mesmo. Dirá a seus botões, ou esposa: “Fiz, sim, tais e quais crimes; não me arrependo — ou me arrependo — mas não vou dourar a pílula. Sou marginal, não vejo outro caminho rápido para ganhar aquele dinheiro de que me julgo merecedor, mas não luto contra essa constatação. Pelo menos sou honesto comigo mesmo”. Já o homem de grande projeção na sociedade dificilmente terá tal franqueza consigo próprio, quando faz o que não deve ou omite-se quando devia agir. Isso porque a honestidade mental, sem subterfúgios, seria uma pedra no sapato de sua alma orgulhosa. Torná-lo-ia infeliz porque ninguém mente impunemente frente ao espelho. Ninguém gosta de sentir-se mau interiormente. Assim, “em busca da felicidade” — um direito assegurado pela Constituição americana — é previsível que a verdade, quando incômoda, seja escondida. Suma da vista ou, melhor ainda, sofra um engenhoso reprocessamento que a transfigure em “verdade”. Salvo engano, urina de astronautas com longa permanência no espaço transforma-se em água potável. Todo ser humano, assim como todo bicho — cada um a seu modo — busca o máximo de felicidade.
Lendo o artigo de Condoleezza Rice no jornal “O Estado de S. Paulo”, edição de 17-8-06, arrependo-me do artigo que, em seu favor, escrevi alguns poucos meses atrás, para um site de relações internacionais: “Condoleezza, afaste-se de Bush!”
Naquele artigo “aconselhei” — quanta pretensão… — a estudiosa secretária de estado e pianista a não endossar tudo o que faz o seu patrão, pensando que não há outro meio de permanecer na crista da onda — seu cargo é importantíssimo — e assim chegar, quem sabe, à presidência da república. Feito que seria extraordinário para uma mulher negra, um imenso salta qualitativo em favor de sua raça, muito perseguida no passado. Aleguei, no artigo, que não é raro, nos dias de hoje, um político escolher e apoiar, interesseiramente, um negro para com isso conquistar determinadas fatias do bolo eleitoral, desde que assegurado algum domínio sobre o protegido. O político “sabido” estaria mais interessado mais na cor do que nos dons do protegido, mesmo que este tenha muitos dons.
O mencionado artigo de Condoleeza no “Estadão” demonstra que ela resolveu colocar suas ambições pessoais acima de uma verdade que ela não poderá esconder sem grande desconforto íntimo. Ela sabe que nem todos engolirão o que afirmou.
Condoleezza disse que “No último mês, os Estados Unidos trabalharam com urgência para pôr fim à violência que o Hezbollah e seus patrocinadores impuseram ao povo do Líbano e Israel”. Não é verdade. Seu país não teve nenhuma pressa — pelo contrário — em acabar com os bombardeios. E todo o resto do artigo dela é claramente no sentido de apoiar as ações de Israel, “esquecendo-se” — é aí que entra o problema da desonestidade mental — do quadro maior que explica, verdadeiramente, o grande conflito no Oriente Médio. Ela quer convencer seus leitores que o “fenômeno” Hezbollah brotou do nada, é gratuito, mau, reflete apenas a ruindade inata de uns fundamentalistas loucos e não tem relação com a ocupação abusiva de áreas antes ocupadas por palestinos. Finge pensar que a reação israelense — com destruição de pontes, prédios, morte de civis — ao seqüestro de apenas dois soldados judeus foi justa e proporcional. Finge pensar que em povos injustiçados seus respectivos governos têm o poder de controlar todos os indivíduos. Inclusive aqueles mais revoltados com a injustiça que sofre o conjunto da população e a impossibilidade de reação militar de seus governos.
Não custa, aqui, em linguagem telegráfica — infelizmente necessária — resumir o problema palestino e seu consectário libanês: o povo de Israel, após sofrer muito pelo mundo afora, expulso de sua própria terra, a Palestina, resolveu, muitos séculos depois, voltar ao lar. Só que “esqueceu”, desconsiderou, que a área estava ocupada por árabes que, por sinal, não foram os responsáveis pela “diáspora” e poderiam invocar uma espécie de “hiper-usucapião” da área abandonada. Envoltos na merecida simpatia mundial pelas vítimas do Holocausto os judeus ocuparam a região e foram avançando, aproveitando o apoio militar e econômico fornecido pelos EUA e também as impensadas atitudes belicistas de estados árabes que não se conformavam com o “grande retorno/expulsão”. Com o decorrer dos anos, porém, tornou-se fuga da realidade pretender eliminar o Estado de Israel, com mais de seis milhões de habitantes. Seria um segundo e impensável Holocausto.
A maioria palestina se conformou — que jeito? — com sua progressiva sujeição aos que “retornaram”, mas não uma minoria, os mais exaltados, como ocorre com qualquer coletividade. Judeus também foram “terroristas” — Menachen Begin, por exemplo — quando a Palestina esteve sob domínio britânico. Franceses também foram “terroristas” — quando os nazistas ocuparam a França. Apenas tinham o nome de “maquis” ou “Resistência”. Espanhóis degolavam, sorrateiramente, soldados franceses quando Napoleão ocupou a Espanha. Se a União Soviética tivesse — apenas por hipótese — ocupado os Estados Unidos, no tempo da guerra fria, certamente milhares de americanos não aceitariam a submissão e tornar-se-iam ”terroristas”, na nomenclatura soviética. Sempre há os mais aguerridos, que não obedecem a seus próprios governos e muito menos ao governo do país invasor. É o caso daqueles palestinos mais inconformados — Hamas — e seus “irmãos”, o Hezbollah. Os dois problemas são na verdade um único problema.
Agisse Condoleezza com total honestidade mental — ela é uma mulher preparada, sabe das coisas, bem mais do que eu — levaria em conta que os atos mais exaltados de alguns indivíduos do Hezbollah não autorizariam a generalização, com desproporcional agressão à um povo inteiro, o libanês. Este não é culpado por iniciativas de alguns poucos desmiolados que seqüestraram dois soldados. A reação exagerada soa como neurótica: “os judeus jamais se deixarão imolar novamente, iguais a carneiros, como ocorreu no Holocausto!”. Se a justificação está na neurose é o caso de se dizer que o distúrbio precisa ser melhor tratado porque alguns carneiros, na chefia do Estado, se transformaram em leões de costa quente (americana). A opinião pública mundial ficou propensa a acreditar que o seqüestro dos dois soldados foi pretexto para objetivos bem maiores, estratégicos porque Israel precisa de mais espaço e tem ambições de grande nação. Grandes nações subentendem grandes áreas. Seria muita burrice se fosse simples “revide”, mera intenção de “dar uma grande lição” a uma pequena ofensa. Talvez Bush tenha estimulado o exagero porque lhe interessa manter um clima de inquietação prolongada que atemoriza o povo americano e faz crescer o apoio à sua administração
O povo judeu tem a justa reputação de inteligente. Não iria arrasar um país vizinho apenas porque dois soldados foram seqüestrados. Lembre-se que mais de mil e trezentos palestinos estão em prisões israelitas. Se, apenas como comparação, a facção criminosa PCC seqüestrasse dois diplomatas americanos no Brasil teria sentido os EUA bombardear nosso país? O governo brasileiro por acaso “manda” no PCC? Se a Máfia americana decidisse seqüestrar e matar alguns embaixadores estrangeiros nos Estados Unidos, seria razoável um movimento de tais países para, em revide, invadir a América, ou convocar o Conselho de Segurança na ONU pedindo sanções militares contra os EUA?
É impossível que Condoleezza desconheça a proporção dos fatos no cenário internacional. Ela conhece o que se passa na alma de seu patrão e seus dois poderosos amigos. E posso arriscar que não chega ao ponto de enganar a si mesma. Talvez pense que se defendesse a verdade, mostrando onde está a raiz do problema, seria demitida do cargo, dando adeus à chance, raríssima, de uma mulher negra atingir a presidência da república do país mais poderoso do mundo. Talvez pense que, em certas situações, os (bons) fins justifiquem os (maus) meios. Além disso, presume — infelizmente com toda razão — que a maioria daqueles que leram seu artigo são tolinhos, não detectarão jamais a distorção da verdade.
É nisso, porém, que ela se engana e se desprestigia, no “jamais”. Os poucos que percebem a verdade sabem escrever e a imprensa americana desfruta de liberdade. Alertarão a carneirada votante, assustada com o terrorismo. Com seus pronunciamentos mais recentes, Condoleeza praticamente pode esquecer seus sonhos presidenciais. Para manter o cargo perdeu as condições de futuramente conquistar um posto bem maior, tal como aconteceu com Collin Powell que, inibido pela lealdade, só saiu tardiamente do governo Bush. Só escapará desse mesmo destino se tiver a coragem, inovadora, de convencer seu país e o mundo de que o conflito árabe-israelense tem que ser solucionado pela justiça internacional, não através de uma solução negociada entre as partes, algo que se comprovou impossível. É preciso inovar, implantando realmente um Justiça internacional e exigindo sua obediência, como ocorre em todo país ao resolver seus conflitos internos. Se ela conseguisse essa façanha, de convencimento do mundo, aí ela poderia retomar seu sonho inicial. Todos merecem uma segunda chance.
O povo americano, embora devagar, acabará percebendo que a única forma de obter verdadeira tranqüilidade será cultivando a justiça — o maior antídoto contra o terrorismo. Justiça não só no próprio território, mas em todas as regiões inflamadas do planeta.
* Advogado, desembargador aposentado e escritor. É membro do IASP Instituto dos Advogados de São Paulo. Website do autor: http://www.franciscopinheirorodrigues.com.br
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