Política

O FMI e a Tríplice Tática de Reforma do Estado

O FMI e a Tríplice Tática de Reforma do Estado

 

 

Eduardo Feld *

 

           

”L´État, c´est moi” (“O Estado sou eu”).

Louis XIV

 

“Não tem Congresso Nacional nem Poder Judiciário. Só Deus pode  impedir as reformas”.

Luís Inácio Lula da Silva

 

 

            O BRASIL E O “ESTADO MODERNO”

 

            Estamos assistindo a talvez um dos episódios mais tristes para a democracia no Brasil. Assistimos a um governo impor ao país exatamente o modelo político que ele próprio combatia. Tal modelo vem a ser justamente aquele imposto pelo FMI e “organismos do mercado internacional”.

 

            É preciso ressaltar que, a princípio, não se trata de fazer um juízo de valor sobre esta política. Há quem entenda que é necessário curvar-se às recomendações de tais organismos, que isto é o melhor para o país. É uma opinião a ser discutida, apesar de dela discordarmos frontalmente. O problema é que o eleitor, ao optar por tal governante, optou também por uma plataforma de independência e democracia que foi simplesmente esquecida. Basta ver a postura do partido governista, que expulsa ou processa num “conselho de ética” quem discorda da política do Executivo. Tal conselho serve para punir delitos de consciência ou de opinião, delitos contra uma ética caolha, de um poder absoluto.

 

            Neste contexto, a separação de poderes parece ter realmente caído por água abaixo. “O Estado sou eu”, diz o governante. O poder desse modo concebido é divino e o que foi outorgado por Deus não pode, evidentemente, sofrer limitações. Por isso, a existência de outros poderes (Legislativo e Judiciário) não pode ser óbice para que o Executivo faça aquilo que quer, da forma que quer. Só Deus pode destruir aquilo que ele criou.

 

            A incrível semelhança entre o modelo chamado pela história de “Estado moderno” (séculos XVI e XVII) e o Brasil da atualidade não pára por aí. Naquela época, prevalecia a teoria de Maquiavel, segundo a qual os fins justificam os meios. A idéia vigente era que valia tudo, na política (a ética do vale-tudo). Não há  máxima mais atual, se olharmos para o episódio que estamos analisando.

 

            Nos países mais avançados institucionalmente, existem mecanismos para garantir que políticos não se desviem da linha de ação prometida em campanha. O governante que fala uma coisa e faz outra pode ser destituído pelo mesmo povo que o elegeu. Inclusive, um político que afirma que os poderes legitimamente constituídos não podem demovê-lo de sua pretensão, que apenas Deus pode fazê-lo, num desses países, poderia ser submetido a um processo de destituição. Infelizmente, ainda vivemos num país “em desenvolvimento”.

 

 

            OS “MERCADOS” E A TRÍPLICE TÁTICA

 

            Recentemente, temos assistido a uma atuação muito mais ativa e construtiva do Judiciário em face da Sociedade e do Estado. Surge uma nova Magistratura, renovada e muito mais consciente de seu papel social. Neste contexto, questões em que, anteriormente, o Judiciário se omitia, sob o argumento de que se tratava de “mérito administrativo”, são enfrentadas com coragem por esta nova Magistratura. Um exemplo pode ser dado: as recentes ações judiciais em que pessoas pobres conseguiram o direito de receber medicamentos do Estado.

 

            A postura ousada da nova Magistratura causa certo mal-estar entre governantes, que gostariam de decidir, com a maior liberdade possível, por exemplo, entre fornecer remédios aos pobres e gastar com propaganda institucional. Pode-se dizer, até mesmo, que o novo modelo de atuação do Judiciário causa certa “insegurança”, na ótica do Executivo. Entretanto, na decisão entre a insegurança democrática e a insegurança ditatorial, a Sociedade opta pela primeira; tal opção foi feita por ocasião da Carta de 1988. A política baseada nos chamados “mercados internacionais”, entretanto, opta pela segunda.

 

            A política imposta pelo FMI, seguida muito comportadamente pelos governantes brasileiros, tem como destinatários principais os serviços públicos, o funcionalismo público e, mais especificamente, o Judiciário. A razão é simples: numa terra sem direito, é mais fácil prevalecerem os interesses dos mais fortes, leia-se, do “mercado”. O Judiciário, como garantidor da presença do direito, é o primeiro a ser atacado. Talvez por isso seja tão importante para o FMI impor uma súmula vinculante, um controle externo do Judiciário e a redução dos salários dos juízes estaduais, já que o maior pesadelo dos chamados “organismos de mercado” é que um juiz de uma comarca do interior possa impor a um grande banco estrangeiro o cumprimento de normas legais e constitucionais. Usa-se, então, uma tática tríplice: impõe-se uma norma repressora da liberdade (“súmula vinculante”), pune-se severamente quem descumpri-la (“controle externo”) e, finalmente, massacra-se o inimigo, acabando com suas forças (“sub-teto”).

 

            “Ora, mas o sub-teto é para os três poderes!”, afirmariam alguns. Certo? Errado. Formalmente, a norma chamada “sub-teto” será estabelecida para os três poderes, mas o juiz, infelizmente, é o único membro de poder que vive efetivamente do vencimento, sem auxílio-moradia, auxílio-avião e outros auxílios (deixo bem claro que estou falando dos juízes estaduais). Ao contrário dos que recebem auxílios, o juiz estadual, em muitos casos, auxilia o Estado, usando de seu próprio vencimento para inúmeras finalidades estatais, como transporte de material de escritório. Portanto, o estabelecimento de um limite máximo de vencimento, para membros do Legislativo e Executivo, é uma obra de ficção, só sendo realmente efetivo para o Judiciário.

 

            A justificativa apresentada, de que esta reforma é socialista e visa fazer justiça social, se não fosse hipócrita, seria ingênua. E por que será que, entre todos os profissionais brasileiros, são justamente os juízes estaduais que precisam ter os seus salários reduzidos, em prol da justiça social? Pois existe uma “caixa-preta” nas justiças estaduais. É sabido, porém, que existem caixas-pretas no Executivo, no Legislativo, nos bancos, na imprensa e na OAB e nem por isso sugere-se redução de salários para os agentes e profissionais destas instituições, muito menos que elas sejam controladas externamente. A verdadeira razão pela qual se pretende massacrar o Judiciário e principalmente os judiciários estaduais é que eles representam o que existe de pior para os “mercados”: a descentralização. Não há, aliás, no plano do FMI judiciários estaduais. Há, sim, um Judiciário federal, bem remunerado e obediente às “súmulas vinculantes” sob pena de demissão.

 

            É preciso notar que o grito do Judiciário contra este modelo de reforma não é uma defesa de interesses pessoais. Estaríamos muito satisfeitos se se estivesse realmente buscando a justiça social sem hipocrisias, realmente uma justiça social universal, à moda “Robin-Hood”, tirando os privilégios dos ricos para dar aos pobres. Estaríamos inclusive dispostos a dar nossa quota de sacrifício em prol da Sociedade. Mas, para isso, teriam de ser incluídos nessa reforma os políticos, os banqueiros e os militares. Entretanto, o Governo não vai tirar os privilégios, nem os seus próprios nem os de seu patrão, muito menos os de quem tem as armas para combatê-lo, preferindo fazer a sua “justiça social” eliminando quem ameaça suas pretensões com a fraca arma da legalidade e da constitucionalidade. Evidentemente, com essa reforma limitada e injusta não podemos concordar.

 

            Do mesmo modo, não podemos concordar com o controle externo, que é defendido apenas para o Judiciário, enquanto ninguém fala em controle externo do Executivo, do Legislativo, do Ministério Público, da OAB, da imprensa e do sistema financeiro.

 

            A tese que queremos defender aqui é muito simples. As reformas que nos são apresentadas são as reformas “deles” e não as “nossas” e seus argumentos não resistem a primárias indagações. É igualmente simples o raciocínio desenvolvido, por absurdo: se assim não fosse, tais reformas seriam mais amplas e não se restringiriam a destinatários muito bem definidos e muito odiados pelos “mercados”.

 

 

            A REFORMA DA PREVIDÊNCIA E SEUS SOFISMAS

 

            É indiscutível que o país precisa de uma reforma da previdência. As pessoas estão vivendo cada vez mais anos e tal fato requer que seja redimensionada a disciplina dos anos de idade e de serviço para aposentadoria, inclusive desconsiderando direitos adquiridos, se necessário, através de emenda constitucional. A reforma, em prol do bem comum, infelizmente, deve ser desagradável a várias categorias dentro da Sociedade. Até aqui, estamos de acordo. Entretanto, para essa reforma, há limites, assim como os há para todo ato praticado pelo Estado. Entendemos que tais limites estão basicamente resumidos a duas questões básicas: o bem comum e a constitucionalidade.

 

            Não se pode, evidentemente, prejudicar o bem comum, já que este é o objetivo final da existência do Estado e de toda e qualquer reforma. Se a reforma, por um lado, visa ao bem comum por visar à garantia de valores (caixa) para recebimento das aposentadorias, tal resultado não pode ser obtido à custa do desmantelamento do Estado, pois neste caso haverá um resultado negativo muito maior que os eventuais benefícios obtidos. Ou seja, o elemento financeiro (caixa) deve ser obtido, sim, mas com muita ponderação, prudência e cuidado pelas conseqüências colaterais que podem advir.

 

            Por outro lado, há também o limite da constitucionalidade, que se confunde com o bem comum, pois é a materialização deste numa norma maior (a Constituição). Sendo assim, as premissas básicas e perenes do Estado, chamadas formalmente de cláusulas pétreas, devem ser observadas, entre elas a separação dos poderes. No momento em que uma reforma trata um dos três poderes como poder menor, tentando despir seus membros de suas prerrogativas, igualando-os a funcionários públicos, esta reforma é flagrantemente inconstitucional.

 

            Note que tais cláusulas são consideradas imutáveis pela Constituição, justamente para evitar o retorno de regimes ditatoriais, centralizados num único poder.

 

            Independentemente da aprovação dos itens da reforma, esta já fez suas principais vítimas: os serviços públicos e os valores democráticos, tais como a separação de poderes e a federação. Foram passadas para a população informações negativas, algumas erradas e outras distorcidas sobre os funcionários públicos e seus benefícios, tidos como privilégios. Além disto, este grupo de profissionais foi apontado como culpado pelo chamado “rombo da previdência”, o que é manifestamente errado.

 

            Em primeiro lugar, é preciso apontar a verdadeira causa do déficit de caixa da Previdência Social: dívidas não cobradas de empresas, além de “empréstimos” tomados pela União, para realizar obras. Em seguida, é preciso apontar, também, a existência de inúmeras soluções para o problema de caixa sem necessariamente desmantelar o Estado e seus serviços. A primeira, e mais óbvia, é a cobrança das dívidas. A segunda, caso a primeira se demonstre inconveniente, é que todos paguem esta dívida, através da tributação, e que fique claro para a Sociedade que ela está pagando dívidas de empresas e de atos irresponsáveis de governos anteriores. Evidentemente, nesta distribuição do ônus, pagaria mais quem tivesse maior capacidade contributiva. Isto poderia ser feito, por exemplo, regulamentando o imposto sobre grandes fortunas, que está previsto na Constituição desde 1988. Mas estas soluções são difíceis, sobretudo porque recaem sobre os verdadeiros privilégios e os verdadeiros privilegiados deste país, que estão justamente no setor privado, e não no serviço público.

 

            Resta-nos, na seqüência, derrubar mais um mito: que os funcionários públicos são privilegiados da previdência. “Funcionários públicos recebem aposentadoria integral e as privadas estão limitadas a um teto”, diz a imprensa. Quem afirma isto não conhece os contracheques dos funcionários públicos. Se conhecesse, ficaria assustado com a “facada” que, a cada mês, é descontada a título de contribuição previdenciária. Perceberiam, então, que o benefício integral não é um privilégio, mas algo pago e muito bem pago pelos próprios funcionários, respeitando o cristalino princípio da proporcionalidade: paga-se mais para ganhar-se mais.

 

 

            MITOS EM TORNO DO FUNCIONALISMO PÚBLICO

 

            Mesmo levando em conta a proporcionalidade custo-benefício previdenciária, pode-se afirmar que a aposentadoria integral é uma vantagem, que o trabalhador privado não tem, além de outras, como por exemplo, a estabilidade. Ao apreciar e impugnar tal afirmação, devemos notar algumas questões muito importantes.

 

Em primeiro lugar, os cargos públicos, no Brasil, ao menos na sua maioria, são acessíveis a todos os brasileiros através de concursos públicos, o que afasta a idéia de privilégio. Cargos públicos não são títulos nobiliárquicos, mas funções relevantes exercidas por cidadãos que provaram ser aptos através de concursos e, justamente por isto, devem sim ser bem pagos e ter muitos benefícios. Para aqueles que se sentirem “desprivilegiados”, a solução é simples: estudar para o próximo concurso.

 

Além disso, funcionários públicos não são “um bando de vagabundos”. São trabalhadores, assim como os das empresas privadas, e merecem uma contraprestação pelo seu trabalho. Em muitos casos, esta contraprestação acaba sendo inferior à de colegas da iniciativa privada que exercem trabalhos de semelhante complexidade. O servidor público, por sua vez, não tem a mobilidade que tem seu colega privado, nem tampouco suas oportunidades de rápida ascensão.  Por causa dessas discrepâncias, são necessárias compensações, como a estabilidade.

 

Mas a estabilidade exerce funções muito mais amplas e relevantes que uma simples compensação por discrepâncias mercadológicas. Vários tipos de servidores públicos necessitam, para realizar um bom trabalho, incomodar pessoas, “fazer o mal” a algumas pessoas, ainda que esse mal seja justo e necessário. Nesses tipos incluem-se o promotor, o policial e o fiscal, entre outros. As pessoas   “incomodadas” podem ser ricas e influentes, mas o agente público deve agir com o mesmo rigor e a mesma tranqüilidade como agiria em face do homem comum. Para isto, ele (o agente) precisa de uma garantia, que se chama estabilidade.

 

            O leitor atento pode afirmar que existem funcionários que não trabalham, que existe corrupção, que existem marajás e que há concursos que são fraudados. É evidente que tudo isto existe, pois não há sociedade que seja perfeita, assim como existem médicos que erram grosseiramente, engenheiros que fazem obras que desabam e advogados que enganam seus clientes. O que não se pode é cometer o pecado da generalização. Se há maus funcionários, são estes que devem ser penalizados, e não o conjunto todo, pois este todo é composto, na sua maioria, de bons funcionários, que trabalham tanto ou mais que os funcionários privados.

 

            Não se pode, portanto, penalizar todo um corpo pela existência de uma “banda podre”. Se esta banda existe, é preciso identificá-la e extirpá-la. Penalizar o todo é penalizar toda a Sociedade, que terá de abrir mão de trabalhadores competentes e seus respectivos serviços.

 

 

            OS MERCADOS E A LEI DO MERCADO

 

            Quem, como nós, conhece profundamente os dois mundos, o público e o privado, sabe que nem todo modelo teórico é confirmado pela prática, principalmente no Brasil. Analisemos, por exemplo, o modelo teórico da privatização. Com ele, prova-se por a+b que serviços privados são mais eficientes que serviços públicos, tendo em vista a concorrência. Prova-se, também, em teoria, que o funcionário da empresa privada, que não tem estabilidade e precisa manter seu emprego, é mais eficiente que o funcionário estável. Entretanto, tudo isto cai por terra, ao verificarmos, na pratica, que, no Brasil, o serviço público é ruim e o serviço privado é pior.

 

            O leitor atento deve estar estupefato. Afinal, veja o caso do Judiciário: os processos demoram anos! Tente, então, resolver algum problema perante uma empresa privada e compare o resultado. Talvez anos nem sejam suficientes, ou seja, dificilmente seu problema será resolvido. Aliás, a maioria dos processos cíveis entre particulares só existe pelo péssimo funcionamento dos serviços privados. Reclama-se, por exemplo, que, em alguns órgãos do Judiciário, é difícil falar com o juiz. Realmente, isto ocorre, em alguns lugares, não muitos. Tente então falar com um diretor de uma empresa privada e compare. Dou os parabéns a quem passar da recepcionista e conseguir falar com a secretária da secretária.

 

            O problema é que somos condicionados pela mídia a pensar de certa forma e ter determinadas opiniões. Uma mentira difundida e repetida várias vezes torna-se uma verdade. A sociedade acostumou-se a pensar que o serviço privado é melhor e que a solução é a privatização. Entretanto, isto não é uma verdade. Os serviços públicos realmente são ruins e devem melhorar – com funcionários cada vez mais bem pagos e com muitos benefícios. Com base numa forma errada de pensar, o governo vai privatizando a previdência e agradando ao seu patrão – o “mercado”, a quem evidentemente agrada tomar conta de mais um nicho e arrecadar um dinheiro seguro, e pelo qual não será obrigado a dar resultados, pois o sistema será o de “contribuição definida”.

 

 

            O SUB-TETO E A FEDERAÇÃO

 

            Perdeu-se a noção de que estamos numa federação, ou seja, num Estado dividido em unidades autônomas. Numa federação, a função da União é mínima e, a rigor, se resume à representação diante de Estados estrangeiros. A federação é a forma de Estado adotada pelo Brasil, constitucionalmente. Isto implica em aceitarmos que o princípio da federação deve ser um valor perseguido pelo Estado na atividade legislativa. Ou seja, deve-se, por princípio constitucional, dar autonomia para as unidades da federação.

 

Diante desta premissa, o que se defende é que cada estado possa autodeterminar-se, nas suas finanças, estabelecendo tetos salariais. O chamado “sub-teto” unificado nacionalmente, neste contexto, é, em nosso entender, uma indevida ingerência da União na autonomia dos estados.

 

            Imagine que, num determinado estado federado, ocorre um crescimento econômico maior que nos demais estados. Entendemos que, neste caso, é legítimo a este estado pagar melhor a seus funcionários. Ou seja, numa federação, cada estado regula suas questões de forma autônoma.

 

O mesmo se diga em relação ao deslocamento de competência dos “crimes contra os direitos humanos” para a Justiça Federal. Ora, o que são direitos humanos? Todo direito é humano. A proposta de retirar competências, ao bel prazer de uma determinada autoridade central, sob o argumento de que os juízes estaduais são menos confiáveis, é mais um dos atentados à democracia que estão ocorrendo à guisa de reforma.

           

 

O JUIZ, OS PODERES E O SERVIDOR PÚBLICO

 

            Parece estar havendo alguma incompreensão, insuflada pela imprensa, em relação ao juiz e seus supostos privilégios. É o que tentaremos desfazer.

 

            Em primeiro lugar, devemos notar que o Estado é composto por três poderes, harmônicos e independentes: o Legislativo, o Executivo e o Judiciário. A harmonia e a independência dos poderes é fundamental para a realização dos fins do Estado, justamente para que o poder não se concentre muito na mão de uma só pessoa ou um só órgão. Assim, os poderes atuam, de modo independente, cada um de acordo com sua função constitucionalmente estabelecida.

 

            Cada um dos três poderes possui os seus membros, ou seja, agentes do Estado que os representam, tendo por função tomar as decisões inerentes aos respectivos poderes, que foram outorgadas em sede constitucional. Os membros do Legislativo são os senadores, deputados federais e estaduais e vereadores. Os membros do Executivo são o Presidente da República, os governadores e os prefeitos. Os  membros do Judiciário os juízes.

 

            Além dos membros dos poderes, que tomam as decisões a eles inerentes, existe uma estrutura administrativa a serviço de cada um dos poderes, necessária para que tais decisões tenham efetividade. Estas estruturas administrativas são compostas por trabalhadores, os chamados servidores públicos.

 

            Dada esta explicação, não é totalmente correto dizer que juízes são servidores públicos. Mais correto é dizer que são membros de poder. Membros de poder possuem regimes jurídicos diferenciados dos servidores públicos, tanto no que tange às prerrogativas, quanto aos benefícios, garantias,  vedações e responsabilidades. Veja que o deputado, para exemplificar, está sujeito a um regime jurídico diverso que os funcionários do Congresso. Isto não se dá por uma razão arbitrária ou elitista. Ao contrário, o membro de poder, que toma decisões a ele outorgadas constitucionalmente, precisa de certa proteção, da qual o funcionário não precisa. Por exemplo, não é admissível que o deputado possa ser, a qualquer momento, “demitido” por uma autoridade que se qualificasse a ele superior. Do mesmo modo, as condições da aposentadoria são diferentes para o membro de poder, já que este não tem condições de exercer outra atividade produtiva que não seja o exercício do poder, ao contrário dos demais profissionais.

 

            A população e os governantes, em geral, parecem compreender claramente a lógica acima detalhada, quando se trata do Executivo ou do Legislativo, mas, curiosamente, não a entendem quando se trata do Judiciário. Ou seja, é muito natural e muito normal que o Presidente da República tenha condições especiais de aposentadoria, mas aposentadorias “especiais” para juízes são um odioso privilégio, a ser retirado por uma reforma que se intitula hipocritamente “socialista”. Qual a razão de tal contradição? Pergunte ao “mercado”. Quem sabe este, se acordar tranqüilo, poderá responder-lhe.

 

 

* Juiz Substituto do Estado do Rio Grande do Norte

Como citar e referenciar este artigo:
FELD, Eduardo. O FMI e a Tríplice Tática de Reforma do Estado. Florianópolis: Portal Jurídico Investidura, 2009. Disponível em: https://investidura.com.br/artigos/politica/o-fmi-e-a-triplice-tatica-de-reforma-do-estado/ Acesso em: 21 abr. 2025