O direito de defesa implodido
Ives Gandra da Silva Martins*
Ulisses Guimarães, em cinco de outubro de 1988, denominou a Constituição Brasileira de “Constituição Cidadã”, pois pela primeira vez, na história, o povo participara, em audiências públicas, através de seus representantes e pela mídia, do processo constitucional.
Considerava entre as grandes conquistas da nova Carta – segundo confidenciou-me, nos inúmeros contatos que mantivemos objetivando a revisão constitucional de 1993, quando pensava em constituir uma comissão de juristas para elaborar um pré-projeto, se fosse indicado para presidente da revisão – o fato de constar, no rol de direitos fundamentais, o direito de defesa assegurado amplamente na esfera administrativa e judiciária.
Como sempre declarou, o direito de defesa é o que distingue os regimes democráticos dos totalitários e a Constituição Brasileira, ao consagrar a ampla defesa, tanto na esfera administrativa, quando na judicial, no inciso LV do artigo 5º, assim redigido: “aos litigantes, sem processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes”, firmara de forma inconteste o caráter democrático de nosso Estado de Direito.
Quanta falta faz ao Brasil um democrata como Ulisses! Quanta falta fazem ao país governantes que reconheçam e assegurem tal direito com símbolo e instrumento maior da democracia, visto que, nas ditaduras, este direito praticamente inexiste.
Ocorre que, desde aquela época, nossos governantes – com reticências e conveniências do Poder Judiciário— tem reduzido esta cláusula pétrea, imodificável, que é o direito de defesa, a sua expressão quase nenhuma, quando se cuida de tributos.
Como os governos gastam mal e desperdiçam recursos do povo –o avião presidencial e as indenizações milionárias que se auto-outorgam por supostas lesões a direitos pessoais, sofridas nos tempos do regime militar são apenas alguns exemplos— há necessidade cada vez maior de se elevar a carga tributária, que não retorna em serviços públicos adequados. Buscam-se, pois, legal ou ilegalmente, recursos ditos tributários para atender ao “moloque” estatal e às ambições dos detentores do poder.
Por esta razão, apesar de o nível de arrecadação colocar-se em torno de 38% do PIB, e, se considerarmos as penalidades fiscais incluídas assim como a carga legal– isto é, a carga real se todos pagassem tributos e não houvesse sonegação – situar-se acima dos 50% do PIB, o país continua com péssima performance social, valendo dizer que o avião presidencial custou a nação mais do que seus projetos de saneamento básico !
Neste quadro, é de se compreender os atentados perpetrados pelo Governo e tolerados pelo Judiciário ao direito de defesa dos contribuintes, e a resistência governamental a que se tenha –como ocorre em todos os países civilizados— um Código de Defesa do Contribuinte.
Nada obstante a lei suprema fale em “ampla defesa administrativa”, o seu espectro tem sido cada vez mais reduzido, com crescente violação de direitos fundamentais do contribuinte, tais como: exigência, antes inexistente, de depósito como condição para ofertar recursos à 2ª. instância administrativa, de início fixado em 30% do valor do suposto débito relativo a contribuições sociais; de arrolamento de bens para oferecimento de recurso relativo a tributos exigidos pela Receita Federal que, embora segundo a lei não implique indisponibilidade do patrimônio, na prática, o fisco impugna a alienação de qualquer item, ainda quando substituído por outro de maior valor; eliminação do direito de recurso administrativo para débitos considerados de baixo valor, o que afeta diretamente pequenos e médios contribuintes; transferência de depósitos judiciais para o Erário antes do julgamento definitivo da ação; penhoras “on line”; execuções fiscais de débitos já pagos, sem que a prova de pagamento seja sequer examinada, tanto pelos agentes fiscais quanto por Procuradores da Fazenda Nacional; processos penais iniciados sem encerramento do processo administrativo; palpites fiscais transformando-se em lei, à luz de uma elástica visão da norma anti-elisão, que fere o princípio da estrita legalidade, tipicidade fechada e reserva absoluta da lei formal e tantas outras formas de redução do direito de defesa. Hoje, pode-se dizer –sem risco de errar— que os governos, com a conivência de alguns magistrados, revogaram o artigo 5º, inciso LV, no que concerne ao processo administrativo tributário.
No meu programa “Conheça a Constituição”, pela Rede Vida, tenho dito que nós, os constitucionalistas, somos uns poetas porque acreditamos naquilo que os governos não acreditam. Embora tomem posse jurando observar a Constituição, cada vez mais a desrespeitam, tornando-se, cada vez menos, representantes do povo que os elegeu.
Não fosse assim, não haveria o “reveillon tributário”, com o golpe letal, ao contribuinte, na calada da noite de 31 de dezembro, porque teriam consultado o povo sobre o nível da carga que ele pode suportar, assim como o nível de desperdício que não deseja tolerar, como compras de equipamentos inúteis, supérfluos e de mero exibicionismo governamental.
O elenco diabólico das variadas medidas que atingiram todos os contribuintes brasileiros no seu direito de defesa, gerando um inferno tributário e afastando o fundamental “princípio da não surpresa”, de rigor, evidencia que estamos entrando na típica “ditadura fiscal socialista”, própria dos governos que não acreditam na sociedade, a não ser como fonte escrava de produção de recursos para os detentores do poder.
De mais em mais, convenço-me de que a tese que defendi por ocasião de meu doutoramento (Teoria da Imposição Tributária) – o tributo é uma norma de rejeição social, porque a carga tributária é sempre desmedida – é realidade cada vez mais presente no Brasil. Para assegurar que se perpetue, o governo, de um lado, impõe penalidades fantásticas e sempre maiores, atribuindo peso confiscatório aos tributos; de outro, elimina direito de defesa dos contribuintes, que os sustentam.
Parece-me, pois, mais do que nunca, necessário que o Poder Judiciário deixe de ser reticente em relação a todos estes atentados a esse direito fundamental e restabeleça essa conquista maior da democracia, assegurando a efetividade do amplo direito de defesa, nas instâncias administrativa e judicial. Só isso salvará a Constituição e resgatará a memória do grande cidadão, indiscutível idealista -e meu particular amigo – Ulisses Guimarães, que, certamente, muito sofreria se vivo fosse, com a desfiguração da Carta por que tanto batalhou.
* Advogado tributarista, professor emérito das Universidades Mackenzie e UniFMU e da Escola de Comando e Estado Maior do Exército, é presidente do Conselho de Estudos Jurídicos da Federação do Comércio do Estado de São Paulo, do Centro de Extensão Universitária e da Academia Paulista de Letras.
Compare preços de Dicionários Jurídicos, Manuais de Direito e Livros de Direito.