O caseiro e os mensaleiros
Ives Gandra da Silva Martins*
Lamento, na minha coluna quinzenal, voltar ao tema do último artigo (”Pobre cidadania”), mas a evolução dos acontecimentos tem revoltado tanto meus alunos e as pessoas que me circundam, que insistiram para que escrevesse, mais uma vez, sobre a ”Casa de Tolerância” em que se converteu a Câmara dos Deputados, com direito, inclusive, a espetáculos de danças carnavalescas, para celebrar absolvições dos denominados ”mensaleiros” – adequada denominação que a imprensa atribuiu aos sonegadores não só de informações à Receita Federal e à Justiça Eleitoral, mas também de dinheiro de origem não explicada, recebido de fontes espúrias.
O tema proposto por diversas pessoas que assistem ao meu programa Conheça a Constituição (Rede Vida, aos domingos, das 20h30 às 21h), é discutir por que o governo, a Polícia Federal e a Receita Federal até agora não agiram para apurar a origem e as responsabilidades pela omissão destas fantásticas receitas, por parte de tais parlamentares, e, em contrapartida, continuam agindo, com o máximo rigor, contra os contribuintes que sustentam o Estado e geram empregos, ao menor sinal de alguma irregularidade, levando-os, inclusive, a detenções provisórias, antes mesmo da lavratura de autos de infração.
Por que, apesar de incontestáveis evidências e comprovados recebimentos de recursos não declarados, os ”representantes do povo” – que representantes o povo escolheu! – limitam-se a criticar, olimpicamente, tais práticas, apenas ”em tese”, exibindo sua alienação relativamente ao que está acontecendo em manifestações de descontração, alegria e desenvoltura perante a nação, em festas, reuniões sociais ou mesmo em reuniões congressuais?
Por que, por outro lado, um modesto caseiro, que recebeu de seu possível pai, para não ajuizar medida judicial, modestíssimos R$ 25 mil – ínfima importância, se comparada às estupendas verbas recebidas pelos parlamentares que foram absolvidos -, mereceu farta investigação por parte do aparato estatal, inclusive com a quebra de seu sigilo bancário irregularmente, do mesmo governo que tudo fez – e conseguiu – impedir, como o aval da Justiça, que o amigo do presidente tivesse seu sigilo bancário quebrado, quando contou aquela estranha história de haver pago dívida do chefe do Executivo (em valor maior do que aqueles R$ 25 mil do caseiro) junto ao PT?
A contradição maior é que este governo, que se diz ”governo popular”, protege, com variada gama de artifícios todos aqueles parlamentares acusados de procedimentos, no mínimo, aéticos, e ataca um pobre caseiro, pelo simples fato de ter testemunhado que viu um dos então integrantes do governo visitar a casa em que servia.
Hart, em seu livro The concept of Law, declara que, nas democracias, as leis têm por finalidade proteger a todos, governantes e governados; mas, por serem feita pelos governantes, protegem mais eles próprios, do que os governados. Vou além do notável jusfilósofo inglês, que tem merecido, no mesmo nível de Hans Kelsen, a reflexão de operadores de direito, no mundo inteiro. Para mim, muito além das leis, os governantes tentam legitimar tudo o que de aético praticam, nutrindo, entretanto, contra as atividades dos governados as mais absurdas suspeitas, a ponto de, muitas vezes, considerarem aéticas, com inequívoco intuito publicitário, atitudes absolutamente normais.
Ao poder tudo é permitido. Ao povo, nada. O Brasil não é uma democracia. Tobias Barreto dizia que, num país em que ”o povo não é tudo, o povo não é nada”. E, no Brasil dos ”mensaleiros”, o povo – isto é, o caseiro – não é nada. Nenhuma segurança jurídica. Nenhuma preocupação com a adoção de comportamentos políticos éticos, por parte das autoridades. Nenhum drama de consciência na agressão aos princípios morais básicos. Jeremy Bentham dizia que toda a sociedade deve ter ”um mínimo ético”. De rigor, no mundo dos governantes brasileiros, sequer esse mínimo existe.
Ruy Barbosa lamentava a perda de valores da sociedade política da época, e, de presidencialista ardoroso que era – compôs a Comissão que redigiu a Constituição de 1981-, tornou-se parlamentarista, no fim da vida, por entender que, no presidencialismo, todos os vícios humanos são potencializados. Se compararmos a sociedade política da época àquela em que hoje vivemos, certamente, todos aqueles homens públicos seriam hoje ”monges trapistas”, ao lado dos acusados pelo Conselho de Ética e perdoados por seus pares, nesta Passárgada, nesta ”pátria governamental”.
Em face do ”auto-perdão” que mutuamente se outorgaram os acusados de recebimento de recursos não declarados à Receita Federal e à Justiça Eleitoral através de segmentos privados da sociedade, beneficiários de contratos governamentais, é de se perguntar se é este o país que Stephen Zweg visualizou como ”o país do futuro”?
Infelizmente, não. Este é o país em que, ao ”caseiro”, tudo é tirado e, ao ”mensaleiro”, tudo é devido. Estranha democracia a nossa, em que o povo não é nada e o poder é tudo!
* Professor Emérito das Universidades Mackenzie, UNIFMU e da Escola de Comando e Estado Maior do Exército, Presidente do Conselho de Estudos Jurídicos da Federação do Comércio do Estado de São Paulo e do Centro de Extensão Universitária – CEU. Site: www.gandramartins.adv.br
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