Política

Crise energética

Crise energética

 

 

Kiyoshi Harada*

 

 

Essa crise energética, que abateu sobre a sociedade brasileira, é fruto do velho hábito dos governantes de não realizarem despesas reprodutivas, aquelas destinadas ao aumento da capacidade produtivo do País a longo prazo. Quando não descambam para despesas improdutivas contentam-se, na maior das vezes, com a realização tão somente de despesas úteis, isto é, aquelas indispensáveis à satisfação das necessidades do dia a dia, premidos pela escassez de recursos financeiros mal aplicados. Se não aparecer um estadista, capaz de reverter esse quadro, as gerações futuras ficarão condenadas a um retrocesso cada vez maior, em todos os sentidos, contrastando com as modernas conquistas tecnológicas do mundo inteiro a propiciar qualidade de vida cada vez maior.

    

Como resultado da falta de visão política ou falta de vontade política vem à tona um pacote de medidas, que inclui sobretarifa para quem ultrapassar o limite de consumo de energia estabelecido pelo governo, sem prejuízo da interrupção de seu fornecimento. Como todo remédio amargo vem embutido em meio a um expediente populista, a concessão de bônus que vai favorecer a grande massa da população menos favorecida pela fortuna.

    

Analisemos, em rápidas pinceladas, essas duas medidas sob o ponto de vista estritamente jurídico. Percebe-se, de pronto, a mistura generalizada de normas e conceitos de direito privado com os de direito público. O usuário de energia elétrica e seu fornecedor mantêm uma relação jurídica de direito privado, baseado no princípio da autonomia da vontade. Ao pagamento da tarifa corresponde ao direito de utilização da energia, ou seja, dever da outra parte de fornecer essa energia. Tarifa é sinônimo de preço público, isto é, custo mais margem de lucro razoável, que é fixado pelo poder concedente. Aplica-se o disposto no art. 1.092 do CC (atraso no pagamento da tarifa legitima a concessionária a interromper o fornecimento.

    

A chamada sobretarifa, já batizada de sobretaxa não integra categoria de direito privado. Maior consumo de energia não poderia implicar jamais alteração do conceito de tarifa, por razões óbvias.

    

Logo, o excesso de “tarifa” representa transferência compulsória de recursos financeiros pelo usuário de energia, assumindo feição tributária. Por conseguinte, todos os princípios constitucionais tributários, a começar pelo princípio da discriminação de rendas tributárias, além de inúmeros outros como o da legalidade, o da anterioridade, o da isonomia etc., devem ser observados. Por essas razões o exame do aspecto confiscatório do tributo dispensa a análise sob o enfoque econômico-financeiro, o que facilita a aplicação do preceito previsto no art. 150, inciso IV da CF.

    

E mais, se esse excesso incorporar-se aos lucros da concessionárias, em grande parte já privatizadas, agravar-se-iam as inconstitucionalidades, agora, acrescidas de infrações de normas constitucionais de natureza financeira. A impossibilidade jurídica do corte de energia resulta exatamente da natureza tributária dessa sobretarifa. Não há lugar para aplicação do art. 1.092 do CC, quer por inexistir inadimplemento contratual, quer porque não se cuida de relação de direito privado. Seria pura arbitrariedade com todas as conseqüencias jurídicas. A se considerar a sobretarifa como multa deveria existir previamente uma lei fixando limite de consumo para cada um ou cada categoria cominando penas de multa e de corte de energia àqueles que ultrapassarem o limite estabelecido. É o que prescreve o princípio da legalidade: ninguém é obrigado a fazer ou deixar de fazer senão em virtude de lei (art. 5º, II da CF). E mais, como decorrência dos princípios do devido processo legal e do contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes (art. 5º, incisos, LIV e LV da CF) a Administração Pública deveria estabelecer o procedimento administrativo para a apreciação da impugnação do atingido, bem como do recurso, ambos com efeito suspensivo, sem prejuízo do uso dos meios judiciais após o esgotamento do processo administrativo. A ordem jurídica vigente não permite punição sem prévia defesa do apenado. Porém, ante a realidade concreta – falta de energia – medidas têm que ser tomadas para evitar o caos. Não importa saber quem é o culpado disso tudo; o poder público não pode ficar de braços cruzados. Contudo, as medidas emergenciais não podem ferir os direitos fundamentais e muito menos servir de pretexto para transferir mais recursos do setor privado para o setor público como parece que é o caso.

    

O princípio da razoabilidade, inscrito no art. 37 da CF, a ser aferido de forma ampla, em confronto com exame de outras alternativas para solucionar a crise, está a impedir esse tipo de medida radical.

    

Tivessem os governantes cumprido os mandamentos constitucionais concernentes às três leis orçamentárias (Lei do Plano Plurianual, Lei de Diretrizes Orçamentárias e Lei de Orçamento Anual) esse problema não estaria ocorrendo, com chuvas ou sem chuvas. É o caso de aplicação da Lei de Responsabilidade Fiscal que veio a luz com a promulgação da Lei Complementar nº 101, de 4 de maio de 2000.

 

Quando já havíamos concluído o presente artigo fomos surpreendidos com a publicação da Medida Provisória nº 2.148-1/2001, que suspendeu a aplicação do Código de Defesa dos Consumidor, especialmente, os artigos 12, 14, 22 e 42, enquanto vigorar a Câmara de Gestão da Crise de Energia Elétrica – CCE – criada pelo art. 1º dessa Medida Provisória, para “gerenciar” a crise energética, através de medidas truculentas. Vale dizer, primeiro fere os direitos fundamentais dos cidadãos e, ao depois, suprime os instrumentos legais de defesa dos atingidos. Isso representa um autêntico retrocesso político-institucional regredindo à era do l’état c’est moi. Esse fato, poderá ser interpretado como atentado ao livre exercício do Poder Judiciário, a acarretar a abertura do processo de impeachment (art. 85, II da CF c.c. art. 4º da Lei nº 1.079/51). Como se sabe, os crimes de responsabilidade, ainda que quando simplesmente tentados, ensejam aplicação das penas de cassação do mandato, com inabilitação, até cinco aos, para o exercício de qualquer função pública, nos termos do art. 2º da citada lei. Assim, sob esse prisma a eventual revogação ou alteração da MP nº 2.148/2001 em nada afetará.

 

SP, 23 .05.01

 

 

* Advogado e professor de Direito Administrativo, Financeiro e Tributário, Diretor da Escola Paulista de Advocacia e Ex-Procurador-Chefe da Consultoria Jurídica da

  Procuradoria Geral do Município de São Paulo.

 

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Como citar e referenciar este artigo:
HARADA, Kiyoshi. Crise energética. Florianópolis: Portal Jurídico Investidura, 2008. Disponível em: https://investidura.com.br/artigos/politica/crise-energetica/ Acesso em: 07 dez. 2024