Os grandes acontecimentos da História do Brasil decorrem de causas mais fortuitas e banais: “quizilas de cama e mesa”, como dizia o saudoso Nelson Rodrigues. Por exemplo: a origem da brilhantíssima idéia de construir uma cidade-escritório chamada Burocratópolis, perdão: Brasília, a Ilha da Fantasia.
Como eu já disse, Affonso Heliodoro, Presidente do Instituto Histórico e Geográfico do Distrito Federal, conviveu bem de perto com JK e, aos novent’anos, concedeu uma reveladora entrevista à Agência Estado. Segundo ele, JK decidiu começar sua campanha para Presidente no interior de Goiás, mais especificamente em Jataí, que em 1955 era uma cidade de 10.000 habitantes. Na hora do comício desabou um aguaceiro daqueles de cachorros e gatos sumirem das ruas e aparecerem logo camelôs vendendo guarda-chuvas made in Taiwan, mas o determinado JK não se avexou…
“Juscelino Kubitschek não se fez de rogado e trepou na carroceria de um ca-minhão estragado. Toniquinho se espremeu nas primeiras filas (…) Juscelino então encheu o peito fez uma analogia de suas palavras com o Sermão da Montanha. (obs. minha: Como se Cristo fosse!). Aplausos. Jurou respeitar a Constituição. Tinha um enorme compromisso com a Constituição. JK se inflamava, o povo também. Toniquinho estava encafifado. Lembrava-se de suas leituras da Constituição. Ao final do discurso, Juscelino decidiu ouvir o povo. Quem quisesse podia fazer perguntas.”
Como costuma ocorrer em momentos como este, fez-se um silêncio sepulcral parecido com aquele que costuma acontecer quando um professor encerra um tópico, faz uma breve pausa e pergunta aos seus alunos: “Alguma dúvida?”. Em casos como esses, é preciso um estímulo adicional, para acabar com a inibição geral.
“Vamos, não se acanhem”. Silêncio. Tentando evitar o vexame, José Feliciano Ferreira, então Secretário Estadual de Educação, tomou a palavra e falou das di-ficuldades enfrentadas pela pecuária. Mas Juscelino queria ouvir o povo. Já Toniquinho, que afinal era povo, queria fazer uma pergunta. Faltava coragem. “Pergunte Toniquinho”, provocava uma amiga, a Diva, de pé ao seu lado. Pergunte, eu estou aqui ao seu lado se precisar de ajuda”.
Era justamente este o estímulo que faltava para Toniquinho se desinibir e soltar a franga, êpa! perdão: soltar o verbo… “Toniquinho levantou a mão e disparou: “Se eleito for, o senhor irá transferir a capital para o Planalto Central, como prevê a Constituição?” Silêncio. Juscelino tinha jurado cumprir a Constituição. Mas essa barra era pesada…Ele estava todo cheio de si em cima do caminhão e murchou de repente…Olhou para seus assessores e disse que a pergunta era difícil, mas oportuna. E que, com as graças e a bênção de Deus, iria cumprir a Constituição e transferir a capital para o Planalto Central. O galpão veio abaixo.”
E foi assim, meus queridos netinhos, que, para não passar um vexame num comício na cidadezinha de Jataí – pra lá de onde Judas perdeu as botas – e dar a impressão que não era um homem sem palavra que o Dr. Juscelino Kubitschek viu-se compelido a abandonar a assim-chamada-na-época Belacap e construir no meio do nada a assim denominada Feiacap, perdão: Novacap. Eu eu estava com a estorinha de A Bela e A Fera na cabeça, não sei por que. Mas eu sei que vocês têm uma perguntinha que não quer se calar, não é mesmo? Quem foi essa ilustre personagem,Toniquinho, o verdadeiro causador da coisa?!
“Juscelino mesmo provocou aquela pergunta. Eu não tinha nada planejado, não saí de casa pensando em fazer aquilo”, relativiza o Toniquinho. “Juscelino falou o tempo todo em cumprir a Constituição. Como eu tinha estudado a lei, quando fiz um curso para diretor de cartório, sabia que desde a primeira Constituição, de
…Somente porque ele e Juscelino não atentaram para o fato de que, se por acaso um governante deste Brasil varonil tomasse a insensata decisão de cumprir a risca tudo o que qualquer uma das várias Constituições manda, ter-se-ia, na melhor das hipóteses, um manicômio, e na pior: um manicômio falido.
Parece que o primeiro a ter a idéia de transferir a Capital para o interior do Brasil tinha sido José Bonifácio de Andrada e Silva. Homem de ego maior do que o gigante adormecido. Para dar uma idéia do tamanho de seu ego, basta citar um de seus mais conhecidos ditos antológicos: “Do Brasil, São Paulo; de São Paulo, os Andradas, e dos Andradas, eu.” Narciso encontrou um competidor à sua altura!
Mas a verdadeira causa da transferência da Capital para Brasília foi mesmo o Toniquinho ter lido todas as Constituições que este país sofreu até o Annus Mirabilis de 1955 e não saber o que perguntar para JK. E, por sua vez, JK ter feito o que raramente políticos costumam fazer após ter no papo os votos dos otários: cumprir uma promessa. Quando teria sido muito melhor para todos nós que ele a tivesse descumprido.
E assim nasceu a Ilha da Fantasia que não produz xongas, a não ser quadrilhas e corrupção, mas tem uma renda per capita maior do que São Paulo!!! Como se explica isto? Ora, Max Weber já explicou: é o que ele chamou de Estado patrimonialista em que tudo é propriedade do Governante, seu estamento e seus cupinchas.
* Mário Antônio de Lacerda Guerreiro, Doutor em Filosofia pela UFRJ. Professor Adjunto IV do Depto. de Filosofia da UFRJ. Ex-Pesquisador do CNPq. Ex-Membro do ILTC [Instituto de Lógica, Filosofia e Teoria da Ciência], da SBEC [Sociedade Brasileira de Estudos Clássicos]. Membro Fundador da Sociedade Brasileira de Análise Filosófica. Autor de Problemas de Filosofia da Linguagem (EDUFF, Niterói, 1985); O Dizível e O Indizível (Papirus, Campinas, 1989); Ética Mínima Para Homens Práticos (Instituto Liberal, Rio de Janeiro, 1995). O Problema da Ficção na Filosofia Analítica (Editora UEL, Londrina, 1999). Ceticismo ou Senso Comum? (EDIPUCRS, Porto Alegre, 1999). Deus Existe? Uma Investigação Filosófica. (Editora UEL, Londrina, 2000) . Liberdade ou Igualdade? ( EDIPUCRS, Porto Alegre, 2002). Co-autor de Significado, Verdade e Ação (EDUF, Niterói, 1985); Paradigmas Filosóficos da Atualidade (Papirus, Campinas, 1989); O Século XX: O Nascimento da Ciência Contemporânea (Ed. CLE-UNICAMP, 1994); Saber, Verdade e Impasse (Nau, Rio de Janeiro, 1995; A Filosofia Analítica no Brasil (Papirus, 1995); Pré-Socráticos: A Invenção da Filosofia (Papirus, 2000) Já apresentou 71 comunicações em encontros acadêmicos e publicou 46 artigos. Atualmente tem escrito regularmente artigos para www.parlata.com.br,www.rplib.com.br , www.avozdocidadao.com.br e para www.cieep.org.br , do qual é membro do conselho editorial.