Política

A última trincheira

A última trincheira

 

 

Ives Gandra da Silva Martins*

 

A absoluta desmoralização do Congresso Nacional, após perdoar uma legião de “mensaleiros” e “usuários de Caixa 2”, segundo definida pela Comissão de Ética da Câmara dos Deputados, está a demonstrar que os hábitos políticos do Brasil, aceitos pelo Presidente Lula, como “costumeiros”, estão a merecer completo reexame.

 

O sério trabalho que o procurador-geral da República, Dr. Antonio Fernando Barros e Silva de Souza, está realizando, ao detectar mais de uma centena de beneficiários ilegais do dinheiro público, assim como a severa e correta presidência do Superior Tribunal Eleitoral, pelo Ministro Marco Aurélio de Mello, representa um fio de esperança que deverá, entretanto, ser necessariamente fortalecido pelos eleitores brasileiros, se desejarem uma real democracia no país, e não uma partilha da coisa pública entre os detentores do poder.

 

É interessante notar como as sucessivas CPIs apenas alargaram o fosso da sordidez política, ao ponto de o deputado Biscaia reconhecer que todo o Parlamento está sob suspeita.

 

Por outro lado, o pivô da crise mensaleira ostenta sua fantástica influência no governo e no Parlamento, sendo visto em contatos permanentes com as lideranças nacionais e internacionais. O próprio partido do presidente, depois de constatar a participação de seus membros, em ações mais graves do que as do governo Collor, admite suas candidaturas e pretende apurá-las apenas “depois das eleições!!!”

 

Em outras palavras, nem o Presidente da República, nem o Partido do Presidente desejam aprofundar o exame daquilo que a mídia denunciou como o maior escândalo de corrupção, peculato, assalto ao dinheiro público da história democrática brasileira.

 

Estou convencido de que a corrupção é inerente ao homem, no poder. Quem deseja o Poder pretende muito mais exercê-lo em benefício próprio do que servir ao povo. São raros os políticos com visão de estadista.

 

No Brasil, todavia, a verdade é que tal deterioração chegou ao máximo e, lamentavelmente, sob a presidência de um homem e de um partido que, nada obstante minha divergência ideológica profunda, sempre considerei símbolos de ética.

 

O certo é que o atual mandato do Presidente Lula está decididamente tisnado. A apropriação de recursos públicos, através da “longa manus” da publicidade, levou o Ministério Público a detectar a prática dos mais variados crimes contra o Erário. Jamais antes um governo, teve, coletivamente, seus principais assessores e dirigentes denunciados por tantos possíveis crimes junto ao STF. Nas duas denúncias apresentadas, mais de uma centena de áulicos governamentais são acusados.

 

É, neste quadro de desolação para o eleitorado brasileiro -e, principalmente, para mim, que sou parlamentarista desde os bancos acadêmicos- há de se realçar, pelo menos, que, enquanto os poderes políticos da democracia brasileira naufragam, o Poder técnico, por excelência, vem lutando, a duras penas, para preservar as instituições. Falo do Poder Judiciário.

 

Estou convencido de que é a Suprema Corte a última trincheira da democracia brasileira, o último esteio de preservação das instituições, a última barricada para que a ordem seja mantida, a última fortaleza de proteção aos direitos individuais. Tem falhas, mas não semelhantes àquelas em que a ética é pisoteada, como ostentam os dois Poderes políticos.

 

Lembro que, certa vez, o Senado Federal instalou CPI para apurar a corrupção no Judiciário e, depois de intenso trabalho, acusou um magistrado e derrubou 3 senadores!!!

 

Os problemas do Judiciário, afogado com o excesso de recursos processuais e de instâncias, além de escassez de recursos materiais e de magistrados, decorrem, ainda, de um texto constitucional extremamente prolixo (344 artigos e 58 emendas em 18 anos, contra os 7 artigos e 26 emendas na Constituição Americana, com seus 219 anos de vida) e suscetível de permanentes modificações. Basta lembrar que, no momento, tramitam, no Parlamento brasileiro, nada menos do que 1.600 projetos de emendas constitucionais, para apreciação!!!!

 

Estive ministrando palestras na Universidade de Coimbra, na 2ª. semana de julho, e visitando a Universidade de Harvard, na 4ª. semana desse mês, e os constitucionalistas de Cambridge e Coimbra (Canotilho, Vital Moreira, Moura Ramos, Dwight Duncan) não entendem como os Tribunais Superiores, no Brasil, podem receber e decidir mais de 100.000 processos/ano. Nem eles e nem nós. Talvez, em virtude de uma excessiva carga de trabalho, é compreensível que ainda não haja uma doutrina definitiva da Suprema Corte sobre muitos institutos fundamentais. É que a Carta da República, ao lado de hospedar princípios constitucionais, constitucionalizou matérias que poderiam ser objeto de lei complementar, lei ordinária, decretos, resoluções administrativas e outras espécies de atos normativos. Nada obstante, a insegurança jurídica ainda existente, após a promulgação da Constituição de 1988 -que os Poderes políticos labutam, magistralmente, por alargar- o Poder Judiciário tem se comportado como um defensor da cidadania e das instituições, corrigindo, não poucas vezes, os fantásticos erros do Legislativo e do Executivo.

 

Apesar das falhas inerentes ao ser humano, é o Poder Judiciário, de rigor, a última trincheira de um país assolado por escândalos políticos, cabendo à Suprema Corte, constituída de 11 dignos e competentes magistrados, não permitir que a tolerância dos violadores da lei abale o alicerce da ainda jovem democracia brasileira.

 

 

* Professor emérito das universidades Mackenzie e UNIFMU e da Escola de Comando e Estado do Exército e presidente do Conselho de Estudos Jurídicos da Federação do Comércio do Estado de São Paulo, do Centro de Extensão Universitária e da Academia Paulista de Letras

 

Compare preços de Dicionários Jurídicos, Manuais de Direito e Livros de Direito.

Como citar e referenciar este artigo:
MARTINS, Ives Gandra da Silva. A última trincheira. Florianópolis: Portal Jurídico Investidura, 2008. Disponível em: https://investidura.com.br/artigos/politica/a-ultima-trincheira/ Acesso em: 11 set. 2024