A teoria da arrancada
Ricardo Bergamini*
A ciência econômica, a despeito de catadura severa, é peculiarmente vulnerável a “modas”. A começar pelo próprio jargão econômico. Quando, após a Segunda Guerra Mundial, eclodiu o interesse na cooperação internacional para o desenvolvimento econômico, os países não industrializados eram chamados “países pobres”, refletindo uma visão estática, quase fatalista, do subdesenvolvimento. Subseqüentemente, passamos a uma era de “pessimismo dinâmico”, mudando-se a apelação para “países retardados” (o que pelo menos implicava a possibilidade de recuperação pelo avanço), e depois para “países subdesenvolvidos e menos desenvolvidos. Mais recentemente, atingimos uma fase de otimismo dinâmico, em que a expressão usada era a de “países em desenvolvimento” e, finalmente, a atual de “países emergentes”.
Outra irresistível moda foi a “teoria da arrancada” (take-off”), imaginosamente formulada por Walt Rostw, como uma resposta à fraseologia obsoleta do manifesto comunista. Ao invés da evolução do feudalismo para burguesia mercantil, o capitalismo industrial e o socialismo, teríamos, com aplicação muito mais genérica, independentemente de sistema ideológico, a transmutação da sociedade a “arrancada” para o desenvolvimento, passando-se em seguida à sociedade industrial madura e à civilização de alto consumo.
Os requisitos econômicos da arrancada seriam, principalmente, a criação de uma infra-estrutura, principalmente no setor de transportes; em segundo lugar, um surto na produção agrícola capaz de financiar a industrialização; em terceiro lugar, um nível de poupança de no mínimo 10% a 12% ao ano; em quarto lugar, a existência de capacidade de importar, seja mediante exportações, seja mediante o influxo de capital, para aquisição de equipamentos e matérias-primas industriais; em quinto lugar, a emergência de setores de vanguarda “que deflagrem o processo de modernização”. Pressupõe-se ainda a existência de um núcleo empresarial capaz de absorver tecnologia. Em determinadas situações, a arrancada pode ainda ser estimulada por um nacionalismo reativo, quando a população se solidariza face a ameaças externas.
A vantagem dos estágios de crescimento de Rostow sobre a formulação marxista é que aquele admite e incorpora variáveis não econômicas, enquanto no modelo marxista os interesses de classe e as ideologias são estritamente função das técnicas de produção.
A força que presidiu ao desenvolvimento ocidental nos últimos duzentos anos foi o credo “individualista e utilitário”. Mas como o fizeram notar Myrdal, Robbins e o próprio Rostw, esse credo não se concentrou exclusivamente na promoção de motivação lucrativa e na defesa da propriedade privada, conforme a acusação, marxista. Ao longo do tempo, o credo individualista e utilitário evoluiu no sentido da defesa da liberdade política e do voto unitário; implantou o controle dos monopólios, desenvolveu uma legislação social que moderou o incentivo do lucro e tornou respeitável, senão dominante, a motivação do bem-estar; e finalmente, criou o imposto de renda progressivo, como poderoso instrumento redistributivo e moderador da absorção da mais valia pelo capitalista..
Há várias objeções à “teoria da arrancada”. A evidência histórica parece inconclusiva. Os estágios são imprecisamente definidos, os fatos são duvidosos e em vários casos as datas assinaladas por Rostow como “limiar crítico da arrancada” são questionáveis, indicando um processo de crescimento mais ou menos contínuo e não uma “arrancada dramática”. Mas sem dúvida alguma, pela sua amplitude de concepção e pela caracterização do processo de desenvolvimento como um processo societário global, contrastando com a estreita ênfase marxista sobre técnica de produção, a teoria da arrancada merece lugar de destaque no pensamento econômico moderno.
Tendo-se, entretanto, transformado em “moda”, a manipulação incauta da teoria rostowiana apresenta alguns perigos, entre os quais cabe ressaltar o do “tratamento analógico” e o da “hipótese linear”.
Conquanto Rostow tenha admitido motivações não econômicas, há subjacente à sua idéia uma espécie de “universalidade de motivações econômicas”. Ora, existem casos bizarros de civilizações que sistematicamente degradam a motivação econômica. A revolução cultural refletiu muito mais uma preocupação de pureza ideológica do que de eficiência econômica.
ambém questionável é a hipótese linear, isto é, que a “arrancada” leve a um desenvolvimento cumulativo e contínuo, pela admirável mecânica dos juros compostos. Na realidade, a história registra inúmeros casos de “recaída”. E esses exemplos são particularmente freqüentes na América do Sul. A Argentina já havia atingido ao início da Segunda Guerra Mundial um nível de renda capaz de lhe dar velocidade autopropulsora. Fora na América Latina o primeiro país a dispor de eletricidade e telefones, e Buenos Aires construiu seu “metrô” em 1913. Na década dos vinte, sua produtividade agrícola rivalizava a dos Estados Unidos. A instabilidade política, entretanto, resultante da cisão do corpo político entre o “peronismo” e os partidos tradicionais, provocou dez anos de estagnação, seguidos de um crescimento até hoje incerto e hesitante. Em menor escala, o Uruguai e o Chile pareciam ter transposto as barreiras do subdesenvolvimento para depois sofrerem a estagnação. E o Brasil na primeira parte da década dos anos sessenta perdeu também, por desastres políticos, o ímpeto desenvolvimentista que exibira nos anos cinqüenta, e somente após a “Revolução de 1964” retomou um caminho firme de crescimento, na média histórica de 6,22% ao ano no período de 1964/84. Posteriormente, após implantação da Democracia Meia-Sola em 1985 tivemos nova recaída, entrando em nova fase de decadência, amargando medíocres taxas de crescimento econômico, na média de 2,71% ao ano no período entre 1985 e 2000. Indicador responsável pelo atual estado de putrefação econômica, financeira, política e social do Brasil.
Faz-se assim necessária, paralelamente à “teoria da arrancada”, uma “teoria da recidiva”, uma espécie de versão do colapso das civilizações. Essa teoria tem que se assentar nos impasses e círculos viciosos, característicos do subdesenvolvimento. É menos uma questão de variáveis econômicas que de contexto político e social em que opera a sociedade.
Longe, portanto, de ser um processo constante e retilíneo, o desenvolvimento é uma aventura ameaçada por impasses.
* Economista, formado em 1974 pela Faculdade Candido Mendes no Rio de Janeiro, com cursos de extensão em Engenharia Econômica pela UFRJ, no período de 1974/1976, e MBA Executivo em Finanças pelo IBMEC/RJ, no período de1988/1989. Membro da área internacional do Lloyds Bank (Rio de Janeiro e Citibank (Nova York e Rio de Janeiro). Exerceu diversos cargos executivos, na área financeira em empresas como Cosigua – Nuclebrás – Multifrabril – IESA Desde de 1996 reside em Florianópolis onde atua como consultor de empresas e palestrante, assessorando empresas da região sul.
Compare preços de Dicionários Jurídicos, Manuais de Direito e Livros de Direito.