É curioso o mundo em que vivemos. Nunca se falou tanto em ética –o Congresso Nacional mantém, inclusive, uma Comissão em cada Casa com este título- e nunca tal atributo, que deveria passar despercebido entre homens por inerente a sua natureza, encontra-se tão afastado do cotidiano. A contradição é a marca da nossa era.
No Brasil, os senadores da República atacam seus adversários com palavras de baixo calão precedidas, natural e respeitosamente, do “V.Exa. é ….”. Procuradores da República pretendem excluir de todas as repartições oficiais simbolos religiosos que possam demonstrar respeito a Deus, apesar de serem servidores de um Estado cuja Constituição, segundo seu preâmbulo, foi “promulgada sob a proteção de Deus”. (É de se lembrar que o Conselho Nacional de Justiça já julgou improcedentes pedidos idênticos , em 06/06/87. Pedidos de Providências 1344, 1345, 1346 e 1362).
Mulheres defensoras do direito de matar nascituros, intitulam-se “católicas com o Direito de decidir”, apesar de a Igreja Católica Apostólica Romana considerar inviolável o direito à vida desde a concepção. Há projeto de lei no Congresso Nacional que proíbe que se faça humor envolvendo a homossexualidade, muito embora não haja proibição quanto a qualquer outro assunto ou pessoa, inclusive o Presidente da República. Não sei o que seria dos cartunistas, se a moda pegasse e fosse proibido fazer qualquer tipo de caricatura de pessoas ou charges de situações diuturnas.
No plano internacional, o mundo não é diferente. O presidente deposto de Honduras violou o art. 239 da Constituição de seu país, que não permite reeleições e é cláusula pétrea. Contra decisão do Congresso Nacional e da Suprema Corte convocou plebiscito para aprovar sua reeleição. Foi deposto –em Honduras não há “impeachment”- pelo Poder Judiciário em face do golpe às instituições que pretendeu perpetrar. Imediatamente, a OEA considerou golpistas os que fizeram prevalecer a Constituição e incensou o presidente violador da lei suprema hondurenha. A mesma OEA nada fez quando o presidente Chávez, derrotado em determinadas regiões do país, perseguiu os governadores vitoriosos, inclusive iniciando processos judiciais de duvidosa constitucionalidade, para intimidá-los, obrigando um deles até mesmo a deixar o país. Cortou subsídios, invadiu portos, proibiu comícios da oposição nos mesmos locais em que fazia os seus, fechou rádios, televisões da oposição. E a OEA nada fez.
A Colômbia luta contra um grupo de narcotraficantes, aparentemente apoiado por Chávez e Corrêa -as armas e os documentos apreendidos com tais terroristas vinculam autoridades destes países às FARCS-, tendo deliberado, no exercício de sua absoluta soberania, que os Estados Unidos auxiliariam-na neste combate. O grupo bolivariano, liderado por Chávez, sentiu-se ameaçado, nada obstante nenhum país ter se oposto aos acordos militares que a Venezuela fez com a Rússia, inclusive de recebimento de armamentos sofisticados. E a OEA não só não pediu qualquer investigação sobre as armas e os documentos apreendidos entre os narcotraficantes colombianos que mencionavam o Equador e a Venezuela, como tem mostrado subserviência a todas as iniciativas venezuelanas de intervenção em outros países.
O nosso próprio Presidente, que tão bem se há, quando se relaciona com os países desenvolvidos, fazendo a nossa voz ser ouvida, incorre em contradições inequívocas, ao dizer ser intolerável o golpe hondurenho –estranho golpe em que os poderes constituídos limitaram-se a fazer com que Constituição fosse respeitada-, ao mesmo tempo em que abraça ditadores africanos e chama o tiranete da Líbia “meu irmão”.
A China se diz marxista, mas pratica a mais agressiva economia de mercado do globo e a União Européia diz-se adepta da economia de mercado, mas pratica a mais retrógrada política anti-competitividade no setor da agropecuária.
O governo federal, desde 1990, promete uma reforma tributária, que nem Collor, nem Itamar, nem Fernando Henrique, nem Lula realizaram. É que, tendo o Poder Público da União 70% de toda a arrecadação tributária no Brasil –Estados e Municípios ficam com apenas 30%- à evidência, não tem qualquer interesse em que ela se realize, a não ser que viesse promover um aumento de sua participação no “bolo fiscal”.
Os Estados, por outro lado, defendem a eliminação da guerra fiscal pelo ICMS, propondo a mudança do regime de percepção do imposto da origem para o destino, mas, como a esmagadora maioria deles pratica a “guerra fiscal”, não se esforçam para que a reforma fiscal seja aprovada. A era é de flagrantes contradições.
Norberto Bobbio, em seu “Teoria Geral da Política”, fez menção a que há dois mundos inconciliáveis na política: o “mundo dos valores” e o “mundos dos fatos”. E, no século XXI, a contradição entre os dois mundos é uma realidade cada vez mais evidente. Nem mesmo o país que deu início ao sistema parlamentar de governo, escapa, como os recentes escândalos no Parlamento inglês demonstraram.
Thomas Merton, em seu livro “Sementes de Contemplação”, escreveu que a unidade do mundo, que evolui, apesar dos conflitos entre valores e realidade, é mantida pelo aparecimento, em cada época da história, de algumas pessoas com tal grandiosidade moral, que sua existência mantém o equilíbrio entre o eterno e o temporal, permitindo a sobrevivência das nações.
A humanidade, todavia, nos momentos, em que todos os caminhos pareciam sinalizar a irreversibilidade dos padrões aéticos e o surgimento do caos, encontrou seu próprio caminho, sendo construída a ponte entre a desordem e os novos tempos, por aqueles que ainda acreditavam num mundo de valores e por ele lutaram. Mesmo, que, na aparência, esta luta não surta resultados imediatos, ela vale sempre a pena.
* Ives Gandra da Silva Martins, Professor Emérito das Universidades Mackenzie, UNIFMU e da Escola de Comando e Estado Maior do Exército, Presidente do Conselho de Estudos Jurídicos da Federação do Comércio do Estado de São Paulo e do Centro de Extensão Universitária – CEU.