Poder judiciário em crise
Kiyoshi Harada*
1. Introdução
A insatisfação dos consumidores da Justiça é geral. A sociedade toda clama por uma Justiça mais ágil, eficiente e adequada. A nossa Justiça vive e convive com problemas de toda ordem: freqüentes protestos e greves de seus servidores; elevado custo operacional; excesso de burocracia; despreparo dos servidores subalternos; lentidão que gera revoltas, injustiças e que se constitui em principal fator multiplicador de lides temerárias. O seu crescente desprestígio perante a comunidade salta aos olhos.
A liberalização política, seguida do nível de conscientização da população, que compõe a pluralista sociedade brasileira, gerou uma implosão de litigiosidade, que a nossa Justiça tradicional não tem condições de responder prontamente, tornando-se incapaz de cumprir, com a desejável regularidade, a missão que lhe cabe: a de compor as lides, isto é, a de resolver os conflitos sociais, que crescem e se diversificam dia a dia.
Por isso, a Justiça atravessa uma conjuntura da maior gravidade, em que o seu questionamento, veiculado pela imprensa escrita, falada e televisionada, assume proporções perigosamente alarmantes. Pela constatação desses fatos, pode-se afirmar que a Justiça está mergulhada em uma crise profunda. Convém lembrar, desde logo, que a noção de crise, como bem ensina Edmundo Lima de Arruda Jr., não pressupõe um estágio anterior de ‘equilíbrio ideal'(1).
A distribuição da Justiça no Brasil é feita exclusivamente pelo Estado, por meio de um de seus Poderes. E essa distribuição se resume na composição dos conflitos sociais pela aplicação do direito positivo, dentro da tradicional cultura jurídica monista, assentada em um sistema lógico-formal, legalista(2), cuja produção transforma o Direito e a Justiça em monopólios estatais, isto é, em manifestações exclusivas do Estado. Por isso, a crise da Justiça confunde-se com a própria crise do Poder Judiciário e de seus integrantes.
A crise do Judiciário tem raízes tão profundas que alguns estudiosos chegam a comparar com a crise que GRAMSCI definia como uma situação em que o velho está morrendo e o novo, ainda, não tem condições de nascer. As reformas de Códigos, a reforma institucional do Poder Judiciário não serão suficientes para superar essa situação de impotência e inadequação, que tomou conta desse aparelhamento estatal, encarregado de administrar a Justiça no País, em regime de monopólio estatal. E isso, porque essa crise não se circunscreve ao âmbito do Poder Judiciário apenas. É fruto, em grande parte, de uma crise maior que solapa as instituições político-sociais, que atinge a sociedade como um todo. É resultado de uma sociedade pluralista, estigmatizada por contradições sociais visíveis, confrontações políticas de natureza classista e profundas desigualdades econômicas, decorrentes de uma concentração de rendas em mãos de uma minoria dominante. Enfim, é fruto do abismo que separa o Estado da Nação.
À medida em que as classes oprimidas vão se conscientizando de seus naturais direitos, dando conta da profunda injustiça social reinante, a ordem jurídica vai sendo questionada, principalmente aquela voltada para o direito de propriedade, espinha dorsal do direito civil, resultando em crescentes transgressões de natureza coletiva(3) e em explosões de litigiosidade, para as quais o nosso Judiciário não está preparado para responder adequadamente, mesmo porque, a aplicação da cultura legalista, no caso, não superaria esses problemas. Aliás, o Judiciário sequer consegue realizar a chamada ‘justiça formal’, por meio da aplicação de textos normativos, com a celeridade necessária e desejada.
Daí, o crescente movimento em busca de um novo modelo de Direito, onde os pressupostos de legitimidade se dissociam dos tradicionais critérios da efetividade formal e da legalidade positivista, possibilitando o agasalhamento de outras fontes informais do direito, decorrentes de uma sociedade participativa. Os movimentos participativos da sociedade civil, por estarem em contato direto com a realidade social, têm melhores condições não só de aferirem, por consenso comunitário, o que é ‘justo’, como também de manter um dinamismo constante no processo de elaboração de ‘novos’ direitos.
(1) ‘A noção de crise, para nós, não pressupõe um estágio anterior de ‘equilíbrio ideal’, pois, sob relações sociais de produção capitalista, a organização social sofre, de forma orgânica, os efeitos de seu princípio fundante – a imoral exploração da força de trabalho alheia, a extração da mais-valia – a alienação do ser humano. A instância jurídica não tem história isolada desse movimento’.
(2) Não cabe ao juiz substituir-se no critério de justiça do legislador. Daí porque, às vezes, a aplicação da lei conduz a uma injustiça social. Nem sempre o justo e o legal são coincidentes.
(3) Invasões de terras agricultáveis, de terrenos para construção de moradias populares, saques de alimentos nas estradas são exemplos dessas transgressões em massa, sem contar um número infindável de leis rejeitadas pela consciência coletiva da sociedade, as chamadas ‘leis que não pegaram’.
2. Causas da crise
A crise do Judiciário tem origem em inúmeros fatores. Inúmeras fontes concorrem em maior ou menor grau na produção dessa crise; às vezes esses fatores apresentam-se imbricados, outras vezes apresentam-se isoladamente. Assim, existem a crise decorrente da falta de democratização da Justiça; a crise de natureza estrutural; a crise decorrente de atuação inadequada dos operadores do direito; a crise decorrente do ensino jurídico, a crise de natureza política, a crise de natureza financeira, etc.
2.1. Da falta de democratização
Democratização da Justiça não quer dizer apenas a reforma estrutural do aparelhamento judiciário do Estado, para colocar os seus serviços ao alcance de todos, com agilização, barateamento de custos operacionais, desburocratização etc. Democratizar é coisa bem mais difícil e complexa. Além de outros aspectos, a democratização da Justiça envolve a maneira de recrutar os seus membros e compor os tribunais superiores e, acima de tudo, a busca de nova forma de sua legitimidade, que não pode ser confundida com legalidade.
Clito Fornaciari Júnior critica a composição dos tribunais, que não seja por meio de promoção dos que compõem a carreira de juizes concursados. Na sua visão, o ‘quinto constitucional, tanto da classe dos Advogados, como do Ministério Público, não traz aquele arejamento para a Magistratura que se usa para justificá-lo. Quem quiser ser juiz deve fazer concurso e, no modelo ora preconizado, antes cursar a escola'(4). Não há como deixar de reconhecer que o critério de investidura de advogados e membros do Ministério Público não é justo em relação aos juizes de carreira.
O Judiciário brasileiro tem sido disciplinado, em sucessivas Cartas Políticas, sem maiores preocupações com qualquer forma de legitimidade no sentido de subordinação a uma soberania popular, apesar de o parágrafo único do art. 1º da Carta Magna vigente prescrever que ‘todo poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente'(5). Por isso, toda atividade jurisdicional, com exceção da atuação dos tribunais do júri, onde impera a soberania popular, se desenvolve presa a uma sistema de legalidade, que nem sempre é condizente com a realidade social, em transformação contínua.
Uma Justiça projetada no plano teórico-abstrato, uma Justiça idealista não consegue cumprir, a contento, o seu papel na sociedade. Há necessidade de se libertar um pouco e aos poucos dessa cultura jurídica monista, elaborada exclusivamente pelo Estado, que tende misturar legitimidade e legalidade(6), reduzindo a questão da Justiça à simples questão de validade e aplicação de normas legais(7). Daí a quebra da estrutura legalista com movimentos coletivos de rebeldia, transgressões em massa, sem que o Judiciário consiga resolver, adequadamente, tais conflitos, quando levados a sua apreciação. Muitas vezes, o Judiciário sequer é provocado. Inúmeras leis são diariamente desrespeitadas ‘n’ vezes sem que as autoridades constituídas ou os seus agentes tomem qualquer tipo de providência. Os milhares de conflitos diários, de pequena expressão econômica, sequer são levados ao Judiciário como decorrência de um sentimento generalizado de que a Justiça é cara, lenta, burocrática e complicada. Os prejudicados renunciam aos direitos de que são titulares, engrossando o fenômeno que Kazuo Watanabe denomina de ‘litigiosidade contida’, que coloca em risco a estabilidade social(8).
(4) Do provimento dos cargos de juiz. Revista do Advogado, nº 56, setembro/99, p. 30.
(5) Cartas Políticas anteriores prescreviam que ‘todo poder emana do povo e em seu nome é exercido’.
(6) Filosoficamente a legitimidade sempre precedeu a legalidade. Só é duradoura, produzindo efeitos concretos, a lei respaldada na legitimidade.
(7) Forçoso reconhecer, entretanto, que julgados existem dando prevalência à questão da legitimidade. Por exemplo, no RE n. 81.729-SP, Trib. Pleno, Rel. Min. Oswaldo Trigueiro a ‘ilegitimidade da acumulação dos proventos da inatividade com os vencimentos do cargo que exerce’ conduziu ao indeferimento do pedido de segurança (RTJ-71/10). O parágrafo único do art. 519 do CPC, com a redação dada pela Lei n. 8.950/94, por sua vez, permite ao juiz o exame da legitimidade do ato. Porém, não se sabe ao certo se, nesses dois casos, não houve a confusão entre a ilegitimidade e a inconstitucionalidade, e entre a legitimidade e a legalidade, respectivamente.
(8) ‘…. É o que podemos chamar de ‘litigiosidade contida’, fenômeno extremamente perigoso para a estabilidade social, pois é um ingrediente a mais na ‘panela de pressão’social, que já está demonstrando sinais de deteriorização de seu sistema de resistência ( ‘quebra-quebra’ao atraso dos trens, cenas de violência no trânsito e recrudescimento de outros tipos de violência).Alguns desses conflitos são solucionados de modo inadequado, em Delegacias de Polícia, ou por atuação de ‘justiceiros’, ou mesmo pela prevalência da lei do mais forte, etc…'( Juizado Especial de Pequenas Causas, obra coletiva sob coordenação de Kazuo Watanabe, Ed. Revista dos Tribunais, p.2).
2.2. Da crise estrutural
O Poder Judiciário, a exemplo de outros Poderes, peca pelo tamanho de sua estrutura gigantesca, encimada pelo STF, que não mais consegue exercer o seu controle sobre tantos órgãos superpostos. É um equívoco muito grande supor que o Estado intervencionista, característica dos dias atuais, exige uma gigantesca estrutura material e pessoal. O tamanho da estrutura pouco tem a ver com a eficiência e a produtividade. É preciso que os agentes públicos tenham vontade política de produzir e estejam capacitados para bem produzir. Do contrário, o maior Parlamento do Planeta deveria ser o mais eficaz e veloz na produção legislativa. E todos nós sabemos que é exatamente o contrário.
A proliferação de juízos e tribunais nas esferas estadual e federal, cada qual fechado em sua estrutura peculiar e ‘imexível’, a ponto de inviabilizar a informatização da Justiça como um todo, acaba por tornar os seus serviços lentos, caros e deficientes, acarretando um distanciamento cada vez maior entre o Judiciário e seus usuários.
Não tem sentido, por exemplo, cada tribunal adotar um indexador diferente, se a lei de regência é federal. Menos sentido tem os entraves à agilização da prestação jurisdicional, decorrentes de discussões estéreis em torno da competência judicante(9). Não raras vezes, o mérito de uma demanda só começa a ser examinado após anos e anos de discussão em torno da definição do juízo ou do tribunal competente para apreciação do caso(10), isso quando a decisão de mérito não for anulada pelo Supremo Tribunal Federal, sob a alegação de ter sido prolatada por tribunal incompetente, tudo contribuindo para o descrédito e desmoralização da Justiça.
É preciso que se faça uma reengenharia do Poder Judiciário, que é uno, com adoção de estruturas modernas e ágeis, enxugando os diferentes órgãos dispersos. A convivência de uma dupla Justiça, sem que nem uma, nem outra tenha condições de desenvolver, com regularidade, a atividade jurisdicional do Estado, está a merecer uma reflexão em termos de custo-benefício para a sociedade em geral. É claro que o mais importante é a vontade política de agilizar. O centro de toda e qualquer reforma é o homem. Não existe e jamais existirá um sistema que opere por si próprio. Levar seis meses para expedição do mandado de levantamento do montante da condenação, depositado pelo réu, que esgotou todas as vias processuais de defesa, nada tem a ver com a estrutura do Judiciário. Levar três meses para distribuir uma simples carta precatória, como vem acontecendo, também, não é problema a ser sanado pela reengenharia do Judiciário. O fato de um determinado Cartório contar com apenas dois servidores por um longo tempo, também, não é matéria que demande reformas. A triagem prévia da enorme quantidade de processos, que dão entrada, diariamente, nos diferentes tribunais(11), poderia separar grande parte deles para serem submetidos às rápidas decisões monocráticas, o que desestimularia os sempre combatidos ‘recursos protelatórios'(12). Enfim, uma série infindável de pequeninas coisas, que não demandam custos elevados, nem exigem reformas estruturais, poderiam ser objetos de maior atenção para descongestionar o Judiciário.
Para contornar ou minimizar a crise estrutural do Poder Judiciário várias providências foram tomadas, vêm sendo tomadas ou deverão ser tomadas em níveis constitucional e infraconstitucional. Essas providências consistem em:
a) Gradativa deformalização do processo com vistas à agilidade na prestação jurisdicional, como a instituição do procedimento sumário(13), o processo trabalhista caracterizado pela simplicidade, os Juizados de Pequenas Causas e os Juizados Especiais para causas cíveis de menor complexidade e para infrações penais de menor potencial ofensivo. Com o mesmo objetivo de tornar possível a imediata prestação jurisdicional, livre de regras burocratizantes, vêm sendo feitas modificações no Código de Processo Civil com a remoção ou substituição de textos, que representam pontos de estrangulamento da prática processual. Com idêntica finalidade vem sendo elaborados e estudados vários projetos de lei no âmbito do Código de Processo Penal, com a reforma de preceitos obsoletos e inovação de outros tantos, a fim de ajustar o estatuto às necessidades dos dias atuais, sem prejuízo da ampla defesa.
b) Instituição de tutela antecipatória representou um grande avanço em prol da efetividade da jurisdição, ainda que, com limitações várias introduzidas pelo legislador ordinário, na verdade, inconstitucionais por interferir no poder cautelar, inerente ao juiz.
c) Instituição de ações judiciais de natureza coletiva ou de efeito ‘erga omnes’ como a ação direta de constitucionalidade, a ação direta de inconstitucionalidade, a ação popular, a ação civil pública, o mandado de segurança coletivo. Essas providências visam evitar a multiplicação de lides da mesma natureza, concorrendo para o descongestionamento do Judiciário.
d) Redefinição do papel do Ministério Público, dispensando-se a sua intervenção nas causas cíveis, também, contribuiria para a celeridade processual(14). Nada justifica a produção de pareceres em primeira e em segunda instâncias, a título de ‘fiscal da lei’ neste ou naquele feito em que haveria interesse público, ‘evidenciado pela natureza da lide ou qualidade da parte’, como diz a lei processual, se o juiz é a única autoridade competente para interpretar e aplicar a lei.
e) Criação e/ou implementação de órgãos extrajudiciais com a função de dirimir conflitos de interesses, por meio de conciliação prévia: Juizados e Conselhos de Conciliação, Justiça da Paz, Procons, Defensorias Públicas e Ministério Público(15). A implantação das Cortes de Arbitragens, uma vez superada essa mentalidade arcaica dos operadores do direito, também, seria um bom sucedâneo da deficiente prestação jurisdicional.
f) A criação do contencioso administrativo em matéria tributária contribuiria em muito para aliviar a pressão exercida sobre o Judiciário(16). Se bem aparelhados os órgãos administrativos singulares e colegiados, com a incorporação de bons profissionais, como vem ocorrendo, paulatinamente, nas esferas estadual e federal esse órgãos poderiam se encarregar da justiça tributária, reservando ao Judiciário tão só o exame da legalidade do procedimento administrativo, vedada a apreciação do mérito. É que os Tribunais ou Conselhos Administrativos são compostos de profissionais especializados (tanto os representantes da Fazenda como os dos Contribuintes), que só lidam com a matéria tributária, ao contrário de juizes, obrigados a decidir sobre todas as questões das mais diversas, com a agravante de permanência temporária em cada Vara. É preciso, ousar e inovar ao invés de ficar assistindo a desmoralização da Justiça, que de há muito vem emitindo sinais de saturação nessa área de conflitos.
(11) Afinal, não existe exigência constitucional para julgamento dentro da ordem cronológica de entrada como acontece com a fila para pagamento de precatórios.
(12) É claro que providência legislativa se impõe para restringir as hipóteses de agravo, que tomou conta da segunda instância. Entretanto, é preciso tomar cuidado para não suprimir o agravo que objetive a efetiva prestação jurisdicional por meio de seu efeito ativo, pois, isso seria o mesmo que conspirar contra a agilidade da justiça.
(13) Nunca foi possível a prolação de sentença no prazo de noventa dias, a contar da propositura da ação, como prescrevia o art. 281 do CPC em sua redação anterior à Lei nº 9.245/95. Na prática, só o nome inserido na capa do processo o distingue de um procedimento ordinário.
(14) Tem-se conhecimento de decisão judicial favorável ao menor, mas que foi anulada em segunda instância, porque descobriu-se que a intervenção do Ministério Público só ocorreu após prolatada a decisão recorrida.
(15) O Ministério Público, tradicionalmente, sempre desempenhou, nas Comarcas do interior, o papel de órgão de conciliação e de orientação das pessoas mais humildes.
(16) As questões de natureza fiscal tomam espaços consideráveis nas Varas das Fazendas Públicas que, para evitar o comprometimento de suas atividades tiveram que criar os chamados ‘Anexos Fiscais’, os quais, funcionam em dependências apartadas, com infra-estrutura material e pessoal própria.
2.3. Da crise dos operadores do direito
É voz corrente que a Justiça se assenta em um tripé: Juiz, Ministério Público e Advogados, os principais operadores do direito. A adequada distribuição da Justiça depende, pois, do preparo técnico-intelectual e da postura desses operadores.
Juizes e promotores públicos se sujeitam a um número certo de cargos e são recrutados por meio de concursos públicos de títulos e provas. O mesmo não acontece com os advogados. Os bacharéis submetem-se a um ‘Exame de Ordem’ para se inscreverem no Quadro de Advogados, cujo número é ilimitado(17). Esse ‘Exame’, entretanto, nem de longe se equipara a um concurso público, não tendo condições de aferir sequer a formação dos candidatos em termos de cultura jurídica dogmática, muito menos em termos críticos, para avaliar a sua aptidão como operador jurídico no contexto atual, em que se exige muita habilidade e sensibilidade no enfrentamento de questões sociais complexas. Se o advogado é indispensável à administração da Justiça (art. 133 da CF), prestando serviço público e exercendo função social em seu ministério privado ( § 1º, do art. 2º da Lei n. 8.906/94), deveria ser submetido a um concurso público, a fim de que apenas os mais capacitados, dentre os milhares e milhares de bacharéis, egressos, anualmente, dos mais diferentes cursos jurídicos espalhados pelo território nacional, sejam acolhidos nos Quadros da OAB. Enquanto isso não for viável, resta aos dirigentes continuar estimulando os abnegados profissionais, que vêm atuando nesses ‘Exames de Ordem’, visando seu aperfeiçoamento cada vez maior. Estranhas forças tentam acabar com esse legítimo e indispensável instrumento de seleção.
Esses dois fatores – o número ilimitado(18) de advogados e a não submissão destes a um concurso público – já começa a comprometer o equilíbrio da Justiça, com a trincagem em uma das colunas do tripé.
No Japão, por exemplo, os três operadores do direito prestam um único e idêntico concurso público de ingresso na Escola de Preparação da Carreira Jurídica. Os candidatos aprovados fazem um estágio remunerado de dois anos, no fim do qual, pela ordem de classificação, escolhem a carreira de sua preferência: Magistratura, Ministério Público ou Advocacia com um número certo de advogados. Essa Escola tem, ainda, por função acompanhar o desempenho profissional desses operadores jurídicos, que são submetidos a cursos de reciclagens, periodicamente.
Entre nós existe uma Escola para cada carreira jurídica. Todavia, nenhuma delas desempenha a função de acompanhar o exercício profissional de seus membros com a ministração de cursos de reciclagem e atualização. Más, já é um bom começo. Seria desejável que as Escolas da Magistratura, do Ministério Público e da Advocacia, em níveis nacional e regional, a par das atribuições atuais se incumbissem de acompanhar o exercício profissional de seus membros. Claro que em relação aos advogados o acompanhamento direto não seria possível em vista da numerosidade de seus membros.
E aqui, é preciso proclamar o que todos sabem, mas que todos se omitem com receio de ferir susceptibilidades. A solução da crise de postura dos operadores do direito, depende mais do juiz que, efetivamente, exerce a nobre função jurisdicional com autonomia e independência(19), do que da atuação de outros profissionais.
No nosso entendimento, o critério tradicional de seleção de candidatos, onde apenas o conhecimento jurídico aprofundado de todas as disciplinas de Direito é levado em conta, não mais atende às exigências da atualidade. Um juiz não precisa, necessariamente, ter um notável conhecimento jurídico, nem ser um doutor em Ciência Jurídica. Juízos e tribunais não são, de regra, foros adequados para discussões de grandes teses jurídicas que, muitas vezes, só servem para atrapalhar a efetividade da jurisdição. Na maioria dos casos, a solução da demanda está na aplicação de regras jurídicas simples, fundadas no bom senso. Já dizia Cícero que direito é a arte do bom senso, frase que todos deveriam ter em mente, antes de partir para sofisticação do direito. Nunca cansei de admirar magistrados, que na minha intimidade, os consideravam como ‘juiz da roça’, isto é, aquele magistrado simples, humilde, porém, altamente vocacionado e operoso(20), que conseguiu desenvolver uma sensibilidade jurídica fora do comum, graças à sua inteligência, experiência de vida e conhecimento da realidade que o cerca, aliados, evidentemente, aos seus conhecimentos básicos de direito, notadamente, princípios gerais e noções sobre hierarquia das normas. O ‘juiz da roça’ não perde tempo; vai direto ao âmago da questão e a resolve com maior facilidade e rapidez, entregando a prestação jurisdicional do Estado a quem tem direito. Dificilmente se equivoca. Suas decisões, sempre enxutas e objetivas, invariavelmente timbradas pela lógica do razoável, são difíceis de serem contrariadas por meio de recursos.
Na mesma linha de pensamento Clito Fornaciari Júnior, quando assevera que o tradicional concurso público, apesar de representar uma forma democrática e justa de ingresso, tem sido responsável ‘pelo ingresso na Magistratura de recém-formados em Direito, certamente conhecedores dos conceitos jurídicos, mas sem nenhuma experiência jurídica e, muito mais grave, sem nenhuma experiência de vida’. Por isso, propõe que ‘os concursos de ingresso na Magistratura deveriam ficar restritos àqueles que estivessem cursando a escola da magistratura’, que seria remunerada. Com isso, teríamos ‘juizes mais velhos e, logicamente, com experiência maior que só da idade e a vivência trazem'(21).
Seja como for, há necessidade de a Magistratura, como um todo, fazer um esforço para se adequar à ordem jurídica dos dias atuais, seguindo as passadas de notáveis e dinâmicos magistrados, que não são poucos, perfeitamente sintonizados com a nova ordem política, econômica, social e cultural reinantes. É preciso suplantar esse muro de separação que ainda existe, decorrente de uma cultura jurídica predominantemente legalista, assimilada ardentemente nos bancos acadêmicos, em confronto com a realidade social efervescente e em contínua mutação, não acobertada pela ordem liberal superada. O magistrado há que estar ciente e consciente de que está investido em novas funções, ditadas pela realidade de nossos dias, para assumir o papel de árbitro das diferentes controvérsias de dimensões políticas e sociais. Não se pode perder de vista que o juiz, queira ou não, está inserido num contexto, onde há um descompasso entre a ordem jurídica e a ordem social(22) a exigir muita sensibilidade no enfrentamento dos desafios, que brotam no dia a dia, reclamando respostas imediatas. A administração da Justiça nos tempos atuais requer do juiz uma postura diferente daquela tradicional, requer uma sensibilidade para captar a realidade social em contínua transformação, bem como implica, necessariamente, o manuseio de instrumentos processuais antes inexistentes como é o caso de tutelas antecipatórias. A intensidade do uso da antecipação de tutela, que não deixa de ter sua matriz no art. 5º, XXXV(23), in fine da CF, está na razão direta da experiência do magistrado. Prova inequívoca e periculum in mora são situações que mais se situam no campo da inteligência e da experiência, e menos no campo técnico do conhecimento do direito.
Sem a mudança de postura, de mentalidade por parte dos juizes os novos instrumentos jurídico-processuais, como o mandado de segurança coletivo, o mandado de injunção, o ‘habeas data’, trazidos pela ordem constitucional vigente jamais sairão do papel(24).
Uma das formas de provocar a mudança de postura dos juizes é a de transformar as Escolas de Magistratura em um centro permanente de debates e estudos de matérias relacionadas direta ou indiretamente com a função judicante, com características multi e interdisciplinares, além de promover o acompanhamento e avaliação do desempenho funcional de seus integrantes não só para efeitos de promoção, como também e principalmente para orientar o processo de integração dos magistrados no novo contexto social(25), onde se exige muita sensibilidade política para o desarmamento dos espíritos e solução dos conflitos de massa. Outrossim, as Associações de magistrados, em níveis estadual e nacional, poderiam secundar e complementar os trabalhos e objetivos das Escolas.
O mito da neutralidade e da imparcialidade da Justiça que decide acima das situações históricas, atualmente, acha-se bastante questionado(26). E isso porque o próprio instrumento principal de solução dos conflitos – a lei – apesar de sua generalidade e abstração não é neutra(27), pois é fruto de elaboração e aprovação pela maioria parlamentar da Casa Legislativa integrada pelos mais diferentes partidos políticos. Daí o caráter político-ideológico das leis e dos Códigos(28). José Eduardo Faria e J. Reinaldo de Lima Lopes, versando sobre a função política exercida, consciente ou inconscientemente pelos juizes fazem a seguinte indagação: ‘Afinal, o que são as jurisprudências dominantes senão programas políticos vitoriosos no âmbito dos tribunais?'(29)
Apesar de bastante controvertida a questão da busca de um novo modelo de Direito, o que se pode dizer, com certeza, é que a cultura jurídica de hoje não se exaure naquela bem elaborada nas academias, invariavelmente, balizada pela dogmática tradicional, nem na cultura dos Códigos. É forçoso reconhecer a existência de movimentos assentados no princípio da cidadania, que formam grupos de pressões transformando-se em sujeitos coletivos, empenhados na construção de ‘novos direitos’ numa perspectiva em que se privilegia a legitimidade em detrimento da legalidade. Exemplo típico desses movimentos, em sua concepção radical, é o fenômeno da ocupações de terras(30) nas zonas agricultáveis e nos grandes centros urbanos, por meio das quais se pretende criar um ‘direito novo’, a partir do fato consumado.
(17) Edmundo Lima de Arruda Jr., abordando a questão da decadência do ensino jurídico no Brasil, marcado por conservadorismo, pelo dogmatismo exacerbado e pela ausência de pesquisas, refere-se à formação do ‘exército de bacharéis de reserva’ (ob. cit., p. 37).
(18) É claro que não se cogita em limitar o número de advogados ao número de juizes ou de promotores públicos, mas, respeitadas as proporções há que se impor um limite máximo, de sorte a evitar a implosão do ‘exército de bacharéis de reserva’. A limitação conduzirá ao natural enxugamento dos candidatos a ingresso em cursos jurídicos, com a consequente retração das Escolas de Direito, seguida da natural melhoria do ensino jurídico.
(19) O Regime Militar, inaugurado em 1964, colocou uma mordaça no Judiciário subtraindo de sua apreciação matérias relacionadas com a segurança nacional ou com a economia popular. A reforma do Judiciário, imposta pela ‘Emenda Constitucional’ n. 7, de 13 de abril de 1977, promulgada durante o recesso do Parlamento Nacional, introduziu a figura da avocatória (já extirpada) para que o Executivo pudesse controlar as causas de seu interesse, por intermédio do STF, então atrelado àquele Poder. O arbítrio que abateu a Magistratura, como de resto, a sociedade como um todo, importou no desprestígio da Justiça e, ao mesmo tempo, foi o responsável pela geração de operadores jurídicos sem perspectivas críticas.
(20) Vocação e operosidade são duas palavras que se completam.
(21) Ob. cit., p. 29.
(22) Esse descompasso resulta numa sociedade não-legalista, caracterizada pela habitual rejeição parcial da ordem jurídica, fundada na legalidade, por parte de classes e setores da sociedade com desígnios distintos e conflitantes nos planos ético-moral e econômico-social.
(23) A lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito.
(24) As primeiras decisões dos tribunais acerca desses remédios jurídicos inovadores, com raríssimas exceções, têm sido decepcionantes. Nenhuma das ações de natureza coletiva, por exemplo, para desbloqueio de cruzados novos retidos, não passou pela barreira da preliminar, obrigando cada um dos milhares de poupadores e correntistas a ingressar com ação individual. Era de se esperar que a Justiça Federal entrasse em colapso, do qual, ainda, não se recuperou e nem emite sinais de possível recuperação, quer a médio, quer a longo prazo.
(25) Nunca é demais repetir que já existe uma parcela ponderável de magistrados perfeitamente conscientes do novo papel, que a sociedade hodierna está a exigir deles.
(26) Aliás, a função política da Suprema Corte é reconhecida e proclamada em qualquer País. Em episódio não muito antigo, que culminou com o confronto entre os Poderes Executivo e Legislativo, ambos legitimados pelo voto popular, o Supremo Tribunal Federal atuou como árbitro político dessa contenda.
(27) Se a lei fosse neutra deveria representar sempre um ponto de equilíbrio entre os interesses conflitantes. E todos sabem que não é bem assim. Dentre milhares de leis em vigor quantas delas representam, efetivamente, a vontade média da população votante, para não dizer da sociedade em geral?
(28) Tanto isso é verdade que, quando se fala na instituição de pena capital para combater a criminalidade, logo certos setores da sociedade reagem com o argumento de que será uma penalidade destinada aos mais humildes.
(29) O Magistrado e sua sindicalização, Folha de São Paulo do dia 17/6/87, ps. A3/A5.
(30) Não estamos concordando com essas invasões indiscriminadas, normalmente dirigidas pelos radicais de sempre, por isso mesmo sem respaldo na legitimidade, pois seria o mesmo que pregar a dissolução da ordem jurídica e a consequente desorganização total da sociedade.
2.4. Da crise do ensino jurídico
A política do ensino superior, implantada pela Reforma Passarinho de 1968, para superar o impasse decorrente dos ‘excedentes’ no vestibular de 1967, também, não pode ser desprezada na avaliação da crise profunda que atingiu o Judiciário/Justiça.
A Reforma abriu um leque de ampliação de instituições de ensino e de vagas a cargo da iniciativa privada, ainda que prescrevendo, formalmente, o critério da carência geográfica por determinado curso, bem como, o critério de preferência pelas áreas técnicas. Esses critérios, porém, não foram obedecidos, ensejando a proliferação das faculdades de direito, por serem menos onerosas em termos de infra-estrutura (algumas delas funcionando apenas nos finais de semana), partindo para a política do fato consumado para, só ao depois, no decorrer dos anos letivos, cuidar do seu reconhecimento oficial(31).
Assim, aconteceu o que já era previsível ou o previsto pela Reforma Passarinho. A ‘universidade de elite’ foi substituída por ‘universidade massificada’, com sensível queda na qualidade de ensino. Anualmente, milhares de formados são despejados no escasso mercado de trabalho contribuindo para engrossar o chamado ‘exército de bacharéis da reserva’. Não é desejável que continue saindo milhares de bacharéis, no dizer do saudoso Cid Vieira, ‘carregando consigo os miasmas tenobrosos da pior das endemias, o desconhecimento dos rudimentos da lingua materna'(32).
Não só a incorporação de bacharéis deficientes, em sua formação acadêmica, nos vários ramos da atividade jurídica (Magistratura, Ministério Público e Advocacia, pública e privada) contribui para o desprestígio da Justiça/Judiciário, como também essa imagem de ‘exército de bacharéis da reserva’ à cata de serviços em portas de cadeia, que tende a se generalizar na opinião do povo(33).
Urge, pois, reformular a política de ensino superior com a reestruturação do ensino jurídico em seu aspecto acadêmico, administrativo e curricular.
(31) Muitas foram reconhecidas definitivamente somente por ocasião da formação da primeira leva de bacharéis.
(32) Trecho do discurso proferido por Cid Vieira, então Presidente da OAB, Secção de São Paulo, por ocasião da solenidade de instalação do 2º Tribunal de Alçada Civil.
(33) Essa generalização é injusta para grande parcela dos advogados competentes e atuantes, verdadeiros artífices do direito.
2.5. Da crise política
De tempos em tempos, o nosso Judiciário se vê mergulhado em uma crise político-institucional, que lhe retira a autonomia e a independência acarretando o seu profundo desprestígio. O longo Regime Militar inaugurado em 1964 é exemplo vivo de uma crise sem precedentes, cujos efeitos danosos, ainda, vão se prolongar por muito tempo. Não só se colocou uma mordaça no Judiciário, subtraindo da apreciação judicial várias matérias elencadas nos instrumentos normativos, unilateralmente impostos à sociedade, como os Atos Institucionais, Atos Complementares, como também por meio do arbítrio se impediu a investigação de graves casos de violação de direitos humanos, a ponto de gerar protestos da comunidade internacional; não confiante na Justiça comum, criou-se uma especial, a Justiça Federal, para defender os interesses do Executivo da União, que centralizava os Poderes do Estado, e assim mesmo, atrelada a um Ministério Público forte e politicamente atuante; decretou-se o recesso parlamentar para impor à Nação uma reforma estrutural do Judiciário de forma dissociada das reais necessidades(34). Pelo mesmo critério do arbítrio, o Regime alçou vôo em direção às instituições educacionais decretando a Reforma Passarinho de 1968, que inaugurou um novo ciclo de ensino superior massificado, principalmente na área do ensino jurídico, formador do ‘exército de bacharéis da reserva’ de que já falamos.
É claro que o longo domínio do arbítrio produziu e continua produzindo, numa sucessão de causas e efeitos, crises na Justiça/Judiciário, quer pelo seu desprestígio popular acarretado, quer por roubar aos operadores do direito o exercício de uma visão crítica da realidade social, quer enfim, por ter desviado o ensino jurídico da rota certa.
E aqui é oportuno esclarecer que não somos contra aumento de vagas no ensino jurídico, pois, forçoso é reconhecer que todos devem ter direito a um lugar no sol. E a área do direito, neste País, é incontestavelmente, a mais privilegiada em termos de oportunidades, de carreiras, e de independência financeira para os bens preparados. Porém, é preciso exigir maior qualidade de ensino, maior responsabilidade do corpo docente e do corpo discente, maior rigor no reconhecimento de novas faculdades de direito.
(34) De quebra criou-se a figura do ‘senador biônico’ como sucedâneo da errônea e inadequada escolha pelo sufrágio universal, com o fito de melhorar o nível da composição daquele importante órgão do Poder Legislativo.
2.6. Da crise financeira
Não há e nem pode haver autonomia administrativa do Judiciário sem a imprescindível autonomia financeira, que não se confunde com a autonomia orçamentária, conquistada pela Carta Magna vigente(35). É claro que a existência de dotação própria a partir de projeto orçamentário, elaborado por seus órgãos de cúpula já é um bom começo. Entretanto, a ausência de fonte própria de receita pública não permite ao Judiciário o reaparelhamento adequado de sua infra-estrutura e nem a definição de uma política salarial de seus servidores que se aproxime aos níveis, por exemplo, dos integrantes do Poder Legislativo(36). Mas, essa crise financeira está intimamente ligada à atual conjuntura econômica nacional e internacional e só poderá ser superada com o fortalecimento do Poder Nacional em sua expressão econômica, o que exigirá do setor privado, muito trabalho e produtividade e do setor público, uma política de austeridade e priorização no que tange aos gastos públicos, além de muita competência administrativa, baseada em um quadro estável de servidores públicos, compondo os segundo e terceiro escalões do poder(37), como forma de evitar soluções de continuidade administrativa.
Enquanto o Estado não retomar o crescimento econômico há que melhor distribuir seus gastos entre os diferentes órgãos dos três Poderes. Não nos parece que essa distribuição esteja obedecendo as reais prioridades da sociedade. A multiplicação de órgãos superpostos, senão antagônicos têm crescido bastante, ultimamente, até mesmo sem previsão orçamentária originária.
Examinando-se as leis orçamentárias anuais da União dos exercícios de
Nota-se que houve uma involução de despesas a partir do exercício de 1998, culminando com uma queda brusca em 2001, cujas despesas corresponderam a 63,81% a menos do que as verbas consignadas no exercício de 1996, início desta pesquisa.
Mesmo reconhecendo que as necessidades públicas a serem satisfeitas pelo poder público são sempre maiores do que os recursos financeiros disponíveis, há que melhor direcionar os ‘cortes’ das despesas públicas, de sorte a não atingir os órgãos vitais ao cumprimento das finalidades do Estado, dentre os quais, aqueles destinados à prestação jurisdicional do Estado.
Uma das soluções, a curto e médio prazos, para a crise financeira do Poder Judiciário seria a de regulamentar, com urgência, o disposto no art. 165, § 9º(40), inciso II, in fine da CF, a fim de possibilitar a instituição de Fundo Judiciário. Por falta de vontade política, apenas a primeira parte desse inciso II foi disciplinada pela Lei Complementar nº 101/00, Lei de Responsabilidade Fiscal.
Uma vez regulado o inciso constitucional em questão, o produto da arrecadação da taxa judiciária poderia compor o Fundo Judiciário, que teria fundamento no art. 99 da CF, o qual, assegura a autonomia administrativa e financeira do Poder Judiciário. Enquanto isso não ocorrer, a proclamada autonomia financeira fica reduzida à mera autonomia orçamentária.
Na prática, o Executivo vem criando inúmeros ‘minifundos’, independentemente de prévia disciplina, em nível de norma geral de direito financeiro, das condições para instituição e funcionamento de fundos. Somente a instituição ou prorrogação de ‘fundão’, que movimenta bilhões de reais, vem sendo autorizada por sucessivas Emendas Constitucionais, dispensando-se a observância do inciso II, do § 9º, do art. 165 da CF. O último deles está previsto no art. 2º da Pec 41/03, que cuida da Reforma Tributária, correspondendo a 20% da arrecadação tributária da União, para vigorar no período de
Se o Poder Executivo, que exerce a função co-legislativa, por conta de sua omissão, vem instituindo fundos diversos, sem prévia regulamentação em nível de norma geral, não nos parece destoante do bom direito, em face do princípio da simetria, a instituição de Fundo Judiciário pelo Poder Judiciário, com fundamento no art. 99 da CF, que lhe assegura autonomia administrativa e financeira.
(35) O Ministério Público, que em tudo é equiparado ao Judiciário, também, logrou a sua autonomia orçamentária.
(36) O decantado princípio da isonomia de vencimentos nunca saiu do papel. Acabou sendo revogado pela Emenda nº 19, de 4-6-1998.
(37) O critério introduzido pelo Regime Militar, que se aliou à tecnocracia, de recrutar para os cargos de segundo e terceiro escalões pessoas estranhas ao quadro de funcionalismo, muitas vezes, pessoas que nenhuma familiaridade ou conhecimento têm, quer dos fatos, quer das atribuições dos órgãos que irão dirigir, constitui o maior entrave no desempenho sadio e regular dos órgãos públicos. Esse nefasto e despótico critério, que invariavelmente descamba para o nepotismo, é o maior responsável pela crise administrativa em que se acham mergulhadas as Administrações em geral. Existe uma tremenda má vontade política na discussão desse canceroso critério, que nasceu no ventre da Ditadura. Preferem alardear que existem dificuldades na contratação de pessoas competentes, devido ao baixo nível salarial, sem jamais se preocuparem em procurá-las dentro de seus quadros funcionais, como se proibido fosse ao servidor de carreira (concursado) prestar serviços públicos relevantes. Todos sabem que é impossível cogitar-se de uma burocracia efeciente e dinâmica com um quadro em permanente desorganização, decorrente de mudanças constantes, nos escalões intermediários, ao sabor dos interesses políticos momentâneos. Somente uma burocracia estável, formada de servidores efetivos e com direitos e prerrogativas constitucionalmente assegurados, poderá assegurar a transição regular entre um governo e outro. Do jeito que está, o governo que entra destrui tudo o que o anterior fez, porque não sabe o que foi feito.
(38) Planejamento.gov.br; fazenda.gov.br; camara.gov.br; senado.gov.br etc.
(39) Não estão computadas as despesas no âmbito estadual, incluindo-se, porém, as despesas com o Judiciário do Distrito Federal.
(40) § 9º – Cabe à lei complementar:
II – estabelecer normas de gestão financeira e patrimonial da administração direta e indireta, bem como condições para instituição e funcionamento dos fundos.
3. Conclusões
De todo o exposto podemos extrair as seguintes conclusões:
1.- A crise do Judiciário/Justiça, a par dos aspectos negativos, apresenta, também, seus aspectos positivos, à medida em que conduz os estudiosos e a sociedade em geral a uma reflexão sobre a forma de superá-la, abrindo um leque de opções que vão desde o aperfeiçoamento da ordem jurídica vigente, caracterizada por uma estrutura legalista, até a substituição por um novo modelo de Direito.
2.- A substituição do modelo tradicional vigente por um outro não se pode dar de um momento para outro, sob pena de ocasionar um efeito oposto ao desejado, isto é, a desorganização total da sociedade.
3.- Outrossim, a pluralista sociedade brasileira, que tem na ‘Lei do Gerson’ o modelo comportamental não pode, ainda, prescindir de uma ordem jurídica fundada no positivismo estatal, onde as normas jurídicas se encontram preestabelecidas de forma genérica e abstrata, fato que não conflita com o desejável dinamismo legislativo.
4.- Não foram, ainda, esgotadas em níveis constitucional e infraconstitucional as medidas e as providências que poderiam aperfeiçoar o modelo tradicional, sem prejuízo de incorporação de algumas práticas jurídicas pluralistas, dependendo do grau de legitimidade do poder de regular de que se acha investida a comunidade participativa.
5.- Essas medidas e providências, restritas ao âmbito das temáticas abordadas no presente trabalho, podem ser assim resumidas:
5.1.1.- No aspecto da democratização da Justiça seria de grande importância a criação de um órgão de controle do Judiciário, em níveis nacional e regional. Esses órgãos nacionais e regionais seriam compostos exclusivamente por membros da Magistratura, eleitos por seu pares, para um mandato certo.
5.1.2.- Sendo inconteste a função política do Supremo Tribunal Federal seria desejável que os seus integrantes fossem eleitos para um mandato certo.
5.1.3.- O atual critério de antigüidade para a composição dos Órgãos Especiais dos Tribunais Estaduais, que representam os respectivos Plenários, está a merecer mudança para que possibilite o ingresso de outros magistrados, igualmente experientes e competentes. O desejável seria a implantação de um critério misto: por antigüidade e por eleição.
5.1.4.- O critério do quinto constitucional para preenchimento das vagas dos Tribunais, assim como a incorporação de juristas na esfera da Justiça Eleitoral, constituem, sem dúvida alguma, práticas democráticas salutares. Contudo, o processo de seleção e indicação precisa ser aprimorado.
5.2.1.- No âmbito estrutural é preciso diminuir o tamanho da máquina judiciária, com o enxugamento de órgãos e tribunais, para agilizar a prestação jurisdicional, colocando-se um ponto final nas estéreis discussões em torno da competência judicante. É preciso fazer uma reengenharia do Poder Judiciário.
5.2.2.- Deve-se uniformizar os procedimentos administrativos na esfera dos diferentes órgãos judiciários a fim de possibilitar o uso adequado das modernas conquistas tecnológicas no campo da informática, bem como criar serviços de protocolos centralizados e integrados, quer para agilizar os serviços judiciários, quer para economizar os custos operacionais.
5.2.3.- Difundir e incentivar o uso intensivo de instrumentos jurídicos de natureza coletiva para substituir, no que for possível, as ações de natureza individual.
5.2.4.- Prosseguir nos trabalhos de deformalização dos processos em curso e de implementação de outros órgãos extrajudiciais, ao lado dos já existentes, para solução de conflitos, tais como a instalação das Cortes de Arbitragens, Agências de Orientação e Conciliação.
5.2.5 – É desejável a criação de contencioso administrativo na área tributária, desafogando o Poder Judiciário que, só interviria nos processos de natureza tributária para exigir respeito às formalidades legais.
5.3.1.- No que diz respeito à crise desencadeada pelos operadores do direito há que se exigir um concurso público de títulos e provas para os pretendentes ao ingresso nas carreiras da Magistratura, do Ministério Público e da Advocacia Pública, porém, mediante adoção de um critério mais amplo, que não se limite à aferição do conhecimento jurídico. Em relação aos Advogados, o ‘Exame de Ordem’, que muitos querem acabar, não só deve continuar, como também deve merecer um aprimoramento com vistas à efetiva seleção dos futuros integrantes do Quadro de Advogados.
5.3.2.- Transformação das Escolas de Magistratura, de Ministério Público e de Advocacia em centros permanentes de estudos e debates de questões, direta ou indiretamente ligadas às respectivas funções exercidas, priorizando estudos e discussões de natureza multi e interdicisplinares. As Escolas de Magistratura e de Ministério Público poderiam, ainda, acompanhar e avaliar o desempenho funcional de seus integrantes não só para efeitos de promoção, como também para orientar o processo de sua integração no novo contexto social.
5.4.1.- No que tange à crise decorrente do ensino superior impõe-se urgente reestruturação do ensino jurídico no Brasil em seus aspectos acadêmico, administrativo e curricular, adequando-o às necessidades dos dias atuais.
5.5.1.- O aprimoramento das instituições políticas, com adoção de medidas que tornem mais representativa a composição do Parlamento Nacional como, por exemplo, a instituição do voto distrital misto, refletirá na elaboração de leis mais justas e legítimas, concorrendo para a melhoria da Justiça.
5.6.1.- Por fim, à autonomia orçamentária conquistada na Constituição de 1988, deve corresponder a efetiva disponibilidade de recursos financeiros para melhoria de sua infra-estrutura material/pessoal, o que só se pode conseguir com o fortalecimento do Poder Nacional em sua expressão econômica. Urge, pois, a adoção de medidas para implementação de uma duradoura política de crescimento econômico não só para fazer face ao democrático crescimento populacional, como também e, principalmente, para gerar recursos excedentes, que levem o Estado a um estágio de desenvolvimento e de progresso.
5.6.2. – Mesmo dentro de um quadro econômico estagnado, é indispensável que os ‘cortes’ de despesas públicas não recaiam sobre os órgãos vitais ao cumprimento das finalidades do Estado Democrático de Direito, dentre os quais, aqueles destinados à prestação jurisdicional do Estado.
5.6.3 Uma alternativa para superar essa crise financeira, que acomete o Judiciário, seria a imediata instituição de um Fundo Judiciário, formado com o produto de arrecadação da taxa judiciária, tornando efetiva a autonomia administrativa e financeira, prevista o art. 99 da CF.
4. Bibliografia
1.- Uma Introdução à Sociologia Jurídica Alternativa. Edmundo Lima de Arruda Jr. – Ed. Acadêmica, ed. 1993.
2.- Pluralismo Jurídico. Antonio Carlos Wolkmer – Editora Alfa Omega, ed. 1994.
3.- Juizado Especial de Pequenas Causas – Obra coletiva sob coordenação de Kazuo Watanabe – Editora Revista dos Tribunais, ed. 1985.
4.- O Magistrado e sua Sindicalização. José Eduardo Faria e J. Reinaldo de Lima Lopes – Folha de São Paulo, de 17.6.87.
5.- Do provimento dos cargos de juiz. Clito Fornaciari Júnior. Revista do Advogado, nº 56, setembro/99.
SP, 20.08.03.
* Especialista em Direito Tributário e em Ciência das Finanças pela FADUSP. Professor de Direito Tributário, Administrativo e Financeiro. Presidente do Centro de Pesquisas e Estudos Jurídicos. Conselheiro do Instituto dos Advogados de São Paulo. Ex Procurador-Chefe da Consultoria Jurídica do Município de São Paulo.
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