O Consultor Jurídico, na edição de 12/08/2006, publicou um artigo de IVES GANDRA SILVA MARTINS intitulado A última trincheira – É o Judiciário, defensor da cidadania e das instituições.
Transcrevo, abaixo, um trecho para comentário:
… os constitucionalistas de Cambridge e Coimbra (Canotilho, Vital Moreira, Moura Ramos, Dwight Duncan) não entendem como os tribunais superiores, no Brasil, podem receber e decidir mais de 100 mil processos/ano. Nem eles nem nós. Talvez em razão da excessiva carga de trabalho, é compreensível que ainda não haja uma doutrina definitiva da Suprema Corte sobre muitos institutos fundamentais. É que a Carta da República, ao lado de hospedar princípios constitucionais, constitucionalizou matérias que poderiam ser objeto de lei complementar, lei ordinária, decretos, resoluções administrativas e outras espécies de atos normativos. Nada obstante a insegurança jurídica ainda existente após a promulgação da Constituição de 1988 – que os Poderes políticos labutam, magistralmente, por alargar -, o Poder Judiciário tem-se comportado como defensor da cidadania e das instituições, corrigindo, não poucas vezes, os fantásticos erros do Legislativo e do Executivo.
Apesar das falhas inerentes ao ser humano, é o Poder Judiciário, de rigor, a última trincheira de um país assolado por escândalos políticos, cabendo à Suprema Corte, constituída de 11 dignos e competentes magistrados, não permitir que a tolerância dos violadores da lei abale o alicerce da ainda jovem democracia brasileira.
Dividirei o texto em partes, que comentarei isoladamente:
1) os constitucionalistas de Cambridge e Coimbra (Canotilho, Vital Moreira, Moura Ramos, Dwight Duncan) não entendem como os tribunais superiores, no Brasil, podem receber e decidir mais de 100 mil processos/ano. Nem eles nem nós.
Realmente, o Supremo Tribunal Federal, Corte Suprema do nosso país, deveria ser encarregado apenas das grandes questões jurídicas, ou seja, apenas aquelas essencialmente constitucionais.
Há algum tempo atrás escrevi um artigo intitulado Supremo Tribunal Federal: Corte Constitucional etc. etc., cujo teor transcrevo abaixo:
Não é novidade para ninguém que o Supremo Tribunal Federal é nossa Corte Constitucional. Constitucional etc. etc.
Pergunta-se: – A quantidade e diversidade de competências não será uma impropriedade, não representa uma sobrecarga absurda para 11 magistrados?
Para comparação, conheçamos o Conselho Constitucional francês, com competência exclusiva sobre constitucionalidade.
Segue um trecho do meu livro A Justiça da França – um modelo em questão, LED, 2001:
Na França, a hierarquia das normas obedece o seguinte esquema (conf. Maurice Duverger, em Le système Politique Français, puf, 1996, p. 418): – Constituição e princípios constitucionais, – tratados internacionais, – leis orgânicas, – leis, – ordenanças, – princípios gerais de direito, – decretos do presidente da República, – decretos do Primeiro ministro, – portarias ministeriais, – portarias dos chefes de serviços centrais, – portarias dos chefes de serviços particulares (reitores de Universidades, etc.), – portarias de diversas autoridades territoriais.
Mais adiante, o ilustre jurista (p. 419) classifica as normas legais em: constitucionais, legislativas e regulamentares.
Quanto ao Conselho Constitucional, foi criado pela Constituição de 1958.
O Conselho decide sobre a constitucionalidade dos textos não-regulamentares aos tratados, à Constituição e aos princípios constitucionais, eleições a nível nacional e situações que colocam em jogo determinadas disposições constitucionais. Exemplos das 3 situações: declaração de inconstitucionalidade de leis, anulação de eleições para deputado, declaração de vacância do cargo de Presidente da República).
O Conselho é formado por 9 membros nomeados por 9 anos, possível a recondução: 3 escolhidos pelo Presidente da República (dentre os quais o presidente do Conselho), 3 pelo Presidente da Assembléia Nacional e 3 pelo Presidente do Senado.
Uma crítica que se faz ao Conselho Constitucional é a de ser composto através de indicações políticas.
Há os membros-natos do Conselho, que são os ex-Presidentes da República.
Declarada a inconstitucionalidade de um texto pelo Conselho Constitucional, não será ele promulgado.
No entanto, quanto às leis em vigor, não é possível a declaração de sua inconstitucionalidade, pois baseia-se, na França, no princípio da soberania do cidadão, consubstanciada nas leis editadas pelos seus representantes eleitos.
Mauro Cappelletti, ob cit., p. 78, diz que a jurisprudência constitucional francesa evoluiu, nos últimos tempos, menos que a da Itália, da Alemanha e dos Estados Unidos.
Vejamos as competências do Supremo Tribunal Federal, enumeradas no art. 102, da Constituição Federal:
Compete ao Supremo Tribunal Federal, precipuamente, a guarda da Constituição, cabendo-lhe:
I – processar e julgar, originariamente:
a) a ação direta de inconstitucionalidade de lei ou ato normativo federal ou estadual e a ação declaratória de constitucionalidade de lei ou ato normativo federal;
b) nas infrações penais comuns, o Presidente da República, o Vice-Presidente, os membros do Congresso Nacional, seus próprios Ministros e o Procurador-Geral da República;
c) nas infrações penais comuns e nos crimes de responsabilidade, os Ministros de Estado e os Comandantes da Marinha, do Exército e da Aeronáutica, ressalvado o disposto no art. 52, I, os membros dos Tribunais Superiores, os do Tribunal de Contas da União e os chefes de missão diplomática de caráter permanente;
d) o habeas corpus, sendo paciente qualquer das pessoas referidas nas alíneas anteriores; o mandado de segurança e o habeas data contra atos do Presidente da República, das Mesas da Câmara dos Deputados e do Senado Federal, do Tribunal de Contas da União, do Procurador-Geral da República e do próprio Supremo Tribunal Federal;
e) o litígio entre Estado estrangeiro ou organismo internacional e a União, o Estado, o Distrito Federal ou o Território;
f) as causas e os conflitos entre a União e os Estados, a União e o Distrito Federal, ou entre uns e outros, inclusive as respectivas entidades da administração indireta;
g) a extradição solicitada por Estado estrangeiro;
h) (Revogada).
i) o habeas corpus, quando o coator for Tribunal Superior ou quando o coator ou o paciente for autoridade ou funcionário cujos atos estejam sujeitos diretamente à jurisdição do Supremo Tribunal Federal, ou se trate de crime sujeito à mesma jurisdição em uma única instância;
j) a revisão criminal e a ação rescisória de seus julgados;
l) a reclamação para a preservação de sua competência e garantia da autoridade de suas decisões;
m) a execução de sentença nas causas de sua competência originária, facultada a delegação de atribuições para a prática de atos processuais;
n) a ação em que todos os membros da magistratura sejam direta ou indiretamente interessados, e aquela em que mais da metade dos membros do tribunal de origem estejam impedidos ou sejam direta ou indiretamente interessados;
o) os conflitos de competência entre o Superior Tribunal de Justiça e quaisquer tribunais, entre Tribunais Superiores, ou entre estes e qualquer outro tribunal;
p) o pedido de medida cautelar das ações diretas de inconstitucionalidade;
q) o mandado de injunção, quando a elaboração da norma regulamentadora for atribuição do Presidente da República, do Congresso Nacional, da Câmara dos Deputados, do Senado Federal, da Mesa de uma dessas Casas Legislativas, do Tribunal de Contas da União, de um dos Tribunais Superiores, ou do próprio Supremo Tribunal Federal;
r) as ações contra o Conselho Nacional de Justiça e contra o Conselho Nacional do Ministério Público;
II – julgar, em recurso ordinário:
a) o habeas corpus, o mandado de segurança, o habeas data e o mandado de injunção decididos em única instância pelos Tribunais Superiores, se denegatória a decisão;
b) o crime político;
III – julgar, mediante recurso extraordinário, as causas decididas em única ou última instância, quando a decisão recorrida:
a) contrariar dispositivo desta Constituição;
b) declarar a inconstitucionalidade de tratado ou lei federal;
c) julgar válida lei ou ato de governo local contestado em face desta Constituição.
d) julgar válida lei local contestada em face de lei federal.
§ 1º A argüição de descumprimento de preceito fundamental, decorrente desta Constituição, será apreciada pelo Supremo Tribunal Federal, na forma da lei.
§ 2º As decisões definitivas de mérito, proferidas pelo Supremo Tribunal Federal, nas ações diretas de inconstitucionalidade e nas ações declaratórias de constitucionalidade produzirão eficácia contra todos e efeito vinculante, relativamente aos demais órgãos do Poder Judiciário e à administração pública direta e indireta, nas esferas federal, estadual e municipal.
§ 3º No recurso extraordinário o recorrente deverá demonstrar a repercussão geral das questões constitucionais discutidas no caso, nos termos da lei, a fim de que o Tribunal examine a admissão do recurso, somente podendo recusá-lo pela manifestação de dois terços de seus membros.
Com essas portas de acesso, um pouco de habilidade e insistência, muita gente faz chegar ao STF muitos casos de nenhuma importância, mais congestionando a Justiça e contribuindo para a morosidade dos processos…
Por isso tudo, alguém não acha que as competências têm de ser racionalizadas?
2) Talvez em razão da excessiva carga de trabalho, é compreensível que ainda não haja uma doutrina definitiva da Suprema Corte sobre muitos institutos fundamentais. É que a Carta da República, ao lado de hospedar princípios constitucionais, constitucionalizou matérias que poderiam ser objeto de lei complementar, lei ordinária, decretos, resoluções administrativas e outras espécies de atos normativos.
Realmente, julgando essa quantidade e variedade de matérias (a maioria que é constitucionalizada indevidamente), poucas condições tem nossa Corte Suprema de desempenhar a contento sua função primordial de formular uma doutrina definitiva[…] sobre muitos institutos fundamentais.
3) Nada obstante a insegurança jurídica ainda existente após a promulgação da Constituição de 1988 – que os Poderes políticos labutam, magistralmente, por alargar -, o Poder Judiciário tem-se comportado como defensor da cidadania e das instituições, corrigindo, não poucas vezes, os fantásticos erros do Legislativo e do Executivo.
Os Poderes Executivo e Legislativo têm procurado alargar a insegurança jurídica por várias formas, inclusive pela edição de diplomas legais despropisitados…
O Judiciário tem procurado corrigir esses erros, transformando-se em verdadeiro defensor da cidadania e das instituições.
Na minha monografia A Justiça e o Direito da Índia, transcrevi uma observação francesa sobre a Índia que se aplica também à nossa realidade:
Em um contexto institucional de frágil separação de poderes e carência das instituições políticas, os Tribunais são os únicos em condições de atender as exigências da sociedade.
(Institut des Hautes Études sur la Justice, França)
4) Apesar das falhas inerentes ao ser humano, é o Poder Judiciário, de rigor, a última trincheira de um país assolado por escândalos políticos, cabendo à Suprema Corte, constituída de 11 dignos e competentes magistrados, não permitir que a tolerância dos violadores da lei abale o alicerce da ainda jovem democracia brasileira.
País assolado por escândalos políticos… tolerância dos violadores da lei… ainda jovem democracia brasileira…
Fundadas as esperanças nacionais (representadas na voz abalizada de IVES GANDRA) basicamente na atuação desassombrada do Judiciário, deve este último realmente encarar de frente sua missão e cumpri-la a contento. Não deve se corromper com troca de favores nem esperar que os outros Poderes cumpram seus respectivos mandatos. Para o cumprimentos de sua missão, o Judiciário deve aceitar como salutares e necessárias as correções de suas próprias falhas, sem importar os caminhos pelos quais elas cheguem. Essas correções visam aumentar sua credibilidade e suas condições de autêntico defensor da cidadania e das instituições.
* Luiz Guilherme Marques, Juiz de Direito da 2ª Vara Cível de Juiz de Fora (MG).