Judiciário

Jurisprudência da igualdade

Jurisprudência da igualdade

Maria Berenice Dias*

Sumário: 1. A mulher na magistratura; 2. A mulher no contexto social; 3. A discriminação legislativa e a postura jurisprudencial; 4. O papel da mulher na magistratura

1. A mulher na magistratura

Ainda não existe nenhuma mulher integrando os Tribunais Superiores, e somente 22 cadeiras dos tribunais de justiça estaduais são ocupadas por representantes do sexo feminino.[1]

Apesar de esses dados revelarem a existência de forte discriminação contra a mulher na órbita do Judiciário, crescente é sua participação nas carreiras jurídicas, podendo-se afirmar que está ocorrendo a feminização não só da magistratura, mas da própria Justiça.

As magistradas, por menos numerosas, são vistas como totens e rotuladas como mais severas ou mais condescendentes que seus pares, ou ainda mais ou menos adequadas para jurisdicionar determinadas varas. Essa estratificação dicotômica, estereotipada pelo gênero, trata-se de percepção freqüentemente inconsciente revestida de conteúdo discriminatório.

2. A mulher no contexto social

Em nenhuma nação do planeta as mulheres vivem em condições de igualdade com o homem.

Há realidades universais: as mulheres de todos os lugares do mundo compõem dois terços dos analfabetos, são vítimas da violência doméstica, recebem remuneração diferenciada e têm dificuldade de acesso a determinados postos. Esses fatores têm levado a afirmar que a mi´seria tem cara de mulher.

Dita realidade é mais marcante no Brasil, pelas suas dificuldades socioeconômicas. A violência doméstica, a mais cruel conseqüência da discriminação, chega a alarmantes números: a cada 4 minutos uma mulher é vítima de agressão.

Comparando esse dado com o pequeno, quase inexistente, número de condenações nesses crimes, é imperioso reconhecer a parcela de responsabilidade do Judiciário pela escalada da violência. A absolvição dos agressores, em nome da preservação da família, acaba fomentando a violência, pois consagra a impunidade.

Recente lei que condiciona a instauração do processo criminal à representação por parte da vítima acaba entregando o controle da violência à mulher, que, fragilizada pela submissão e dependência econômica, acaba desistindo de formalizar a denúncia.

Também um dado assustador é o reconhecimento da legítima defesa da honra como excludente da criminalidade. Quando os autores buscam resgatar a honra matando quem não lhes foi fiel, os crimes são tratados como passionais.

3. A discriminação legislativa e a postura jurisprudencial

O igualitarismo formal vem decantado enfaticamente na Carta Constitucional brasileira de 1988, o que não é suficiente, por si só, para se alcançar a absoluta equivalência social e jurídica de homens e mulheres.

Basta lembrar que os delitos sexuais são considerados crimes contra os costumes, evidenciando que a objetividade jurídica protegida é a sociedade, a parte ofendida é o ente social, e não a mulher.

O argumento da legítima defesa da honra não está na lei, mas vem servindo de motivo para a absolvição do marido traído, o que revela uma atitude preconceituosa contra as mulheres.

O estupro, ainda que pertencente à categoria de crime hediondo, é classificado como crime de ação privada. A abertura do processo depende de provocação da vítima, desonerando-se o Estado da obrigação de punir. Ainda assim, normalmente se exige a evidência de lesões corporais, sob pena de se questionar se efetivamente houve resistência. A vítima que se afasta dos padrões de castidade é tratada como leviana e permissiva, e é muito difícil a condenação quando são estupradas prostitutas ou alguém que mantém uma postura sexual liberada.

Além disso, o estupro praticado pelo marido é considerado como cobrança de uma obrigação. De outro lado, as esposas acham que o exercício da sexualidade é um dever do casamento, o que desestimula denúncias e dificulta investigações.

Essa abordagem discriminatória se faz sentir também na esfera civil. Nos processos envolvendo relações familiares é onde mais se flagra que a profunda evolução legislativa ocorrida nos últimos tempos não bastou para alterar o discurso dos juízes.

Em alguns temas, vê-se com bastante clareza que, ao ser feita uma avaliação comportamental dentro de requisitos de adequação a determinados papéis sociais, é desconsiderada a liberdade da mulher.

É necessária uma revisão crítica e uma nova avaliação valorativa do fenômeno social, para que se alcance a perfeita igualdade. Os operadores do Direito precisam atentar em que não pode persistir essa odiosa diferenciação de gênero, fazendo-se imperioso eliminar qualquer resquício de preconceito contra a mulher.

O Poder Judiciário ainda é uma das instituições mais conservadoras e sempre manteve uma posição discriminatória quanto ao gênero masculino-feminino. Em face de uma visão estereotipada da mulher, exige uma atitude de recato e impõe uma situação de dependência. Os novos valores sociais que emergiram referentes à dignidade da mulher e sua autonomia, liberdade e privacidade na área da sexualidade acabam sendo olvidados.

Tais circunstâncias evidenciam que as mulheres são vítimas dos tribunais brasileiros, já que os processos sofrem influência de normas sociais permeadas de preconceito de gênero.

4. O papel da mulher na magistratura

Indispensável investigar se a presença maciça das mulheres na magistratura afeta o contexto das decisões judiciais.

As juízas, apesar de terem consciência da necessidade de mudanças, não rompem com os códigos e padrões legais vigentes. Sentem-se incapazes de confrontar o padrão patriarcal, ou por não terem consciência dele, ou por não estarem dispostas a arcar com as conseqüências de não corresponderem às expectativas patriarcais sobre as mulheres.

Não há como negar que a Justiça possui uma certa condescendência para com os réus, sempre entrando em linha de questionamento a atitude da vítima, como motivadora dos fatos. Perquirir o comportamento moral da mulher, no entanto, pode levar ao reconhecimento de que foi ela quem provocou o crime, sendo culpada pela própria sorte.

O Judiciário possui uma visão benigna sobre a violência contra a mulher. Por acreditar-se que o casal vai se reconciliar, a violência doméstica é tratada com desleixo.

Não basta o acesso de mulheres à magistratura para garantir o fim da discriminação nas decisões judiciais. Necessária se faz a adoção de ações para estabelecer a igualdade entre homens e mulheres no âmbito do Poder Judiciário.

Sensível a essas dificuldades, e sentindo o peso de minha responsabilidade, como primeira juíza da magistratura estadual e única Desembargadora do Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul, criei o Projeto Repensar. O lançamento ocorreu por meio de um seminário destinado a juízes, promotores, advogados e defensores, abordando os seguintes temas: A Isonomia entre os Sexos, As Discriminações Judiciais e Questões de Gênero. Todos foram enfrentados não só quanto aos aspectos jurídicos, mas também sob o aspecto psicológico. Dito projeto buscou a criação de núcleos de estudo e pesquisa dentro das dependências do próprio fórum, para facilitar a atividade dos operadores do Direito, principalmente juízes. A idéia é manter constante trabalho voltado ao estudo e levantamento de como está ocorrendo o julgamento das ações que envolvem questões de gênero.

É necessário olhar a mulher em relação ao Direito a partir do conceito de gênero, não como sexo biológico, mas como as diferenças biológicas se expressam em determinadas relações sociais. Por essa ótica é que se precisa analisar se a inserção feminina na magistratura altera a ideologia dominante, ou seja, se há interferência do sexo do magistrado para a implementação dos direitos de igualdade já conquistados pelos movimentos feministas.

Assim, não basta o aumento do número de magistradas para que determinados padrões de comportamento sejam alterados para o estabelecimento da igualdade, o fim da discriminação e a eliminação da violência contra a mulher.

[1] Os dados dizem com o ano de 1998.

* Desembargadora do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul. Vice-Presidente Nacional do Instituto Brasileiro de Direito de Família – IBDFAM

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Como citar e referenciar este artigo:
DIAS, Maria Berenice. Jurisprudência da igualdade. Florianópolis: Portal Jurídico Investidura, 2005. Disponível em: https://investidura.com.br/artigos/judiciario/jurisprudencia-da-igualdade/ Acesso em: 06 dez. 2024