Interpretação jurídica : razão e emoção[1]
Atahualpa Fernandez *
Athus Fernandez **
Quando um operador do direito (particularmente o juiz) processa o que é (ou deveria ser) material emocional como se não tivesse conotação alguma, sua conduta se assemelha muito a de um indivíduo psicopata: sua atividade se caracterizaria por uma ativação insuficiente das regiões cerebrais associadas à emoção, e por uma integração deficiente dos processos cognitivos e emocionais. Para um operador desse tipo, o que deveria ser necessariamente uma experiência cognitiva/emocional, não passa de ser um fato exclusivamente cognitivo ou intelectual: um psicopata com toga.
1. O dilema da racionalidade jurídica
As teorias sociais normativas estão entre as mais recentes áreas a serem invadidas pelas ciências cognitivas e a neurociência, como consequência inevitável dos correntes descobrimentos sobre os segredos do cérebro (Zeki e Goodenough, 2006). Os estudos da natureza da mente e do funcionamento do cérebro começam a chegar à filosofia moral e ao direito de uma maneira cada vez mais contundente; de forma direta ou indireta, não param de lançar novas luzes sobre questões antigas acerca da racionalidade humana[2], do bem e do mal, da justiça, da livre-arbítrio, da “rule of law“ e das relações entre os indivíduos.
Começa a acumular-se evidência sugerindo que os seres humanos desenvolveram certas predisposições inatas e fundamentais assentes na nossa natureza, que essas predisposições se encontram codificadas no nosso cérebro e que, portanto, exercem uma poderosa influência na maneira como atuamos, sentimos e pensamos. Hoje parece se impor mais que nunca esta afirmação: nenhuma filosofia (ética ou jurídica), por pouco séria que seja, pode a partir de agora permanecer encerrada ou isolada em uma torre de marfim fingindo ignorar os resultados dos novos campos de investigação que trabalham para estender uma ponte entre a natureza e a sociedade, a biologia e a cultura , em forma de uma explicação mais empírica, diligente e comprometida com as ciências dedicadas ao estudo da mente, do cérebro e da natureza humana[3].
Já não podemos manejar-nos na filosofia e no direito do século XXI com uma idéia da mente procedente do século XVII. Durante os últimos anos, os resultados das investigações nas ciências cognitivas e neurocientíficas tem apontado que todo pensamento que pensamos – seja permanente ou transitório, racional ou irracional – tem seu correlato físico no cérebro e que não é possível separar, como pretendia Descartes – e como afirmaram, em seu momento, os funcionalistas cognitivos –, emoção e racionalidade, espírito e cérebro. Quero dizer, que o pensamento depende das emoções e que a racionalidade humana está restringida por limitações da atenção e a memória; que não se pode tomar uma decisão sem emoção e que todas as decisões supostamente lógicas e razoáveis estão contaminadas por uma emoção: ou existe emoção ou não existe decisão[4].
Durante séculos o mundo dos sentimentos e o mundo da inteligência se haviam separado, porque, demasiado precipitadamente, se identificou inteligência com razão. É certo que as emoções não devem imiscuir-se em uma demonstração matemática ou na manipulação das estruturas lógicas, mas já não podemos simplesmente desconsiderar o fato de que intervém em toda a conduta humana , inclusive na atividade do matemático, que se sente impulsado a seu trabalho pela curiosidade ou pelo desejo de conhecimento. Tudo o que fazemos o fazemos para manter um estado de ânimo ou para modificá-lo, o que supõe que o mundo emocional está no centro de nossa vida. Quando dizemos que nossa ação está dirigida por valores que pretendemos alcançar ou realizar – estéticos, econômicos, jurídicos, hedônicos, éticos – estamos fazendo referência a sentimentos, porque são eles os que nos proporcionam a experiência valorativa.
É evidente que, sob essa nova perspectiva, não tardaria em surgir o interesse pelo estudo da relevância das experiências afetivas no processo de tomada de decisões, com as jurídicas em primeiro termo e para as quais se dirige o enfoque deste artigo. Parte-se da premissa de que os novos avanços da neurociência permitirá uma melhor compreensão da mente e do cérebro e trará consigo a promessa de cruciais aplicações práticas no âmbito da interpretação e aplicação jurídica: constituem uma oportunidade para refinar nossos juízos ético-jurídicos e estabelecer novos padrões de racionalidade e critérios metodológicos sobre cimentos mais firmes e consistentes. Afinal, se é certo que as normas jurídicas e os acontecimentos do mundo nos afetam somente por meio da interpretação que destes fazemos, não parece demasiado afirmar que se pudermos controlar adequadamente nossas interpretações, poderemos controlar e direcionar o processo de aplicação ou de realização prático-concreta do direito.
Depois, como parece não haver uma instituição humana mais fundamental que a norma jurídica e, no campo do progresso científico, algo mais instigante que o estudo do cérebro, a união destes dois elementos (norma/cérebro) acaba por representar uma combinação naturalmente fascinante e estimulante, uma vez que a norma jurídica e o comportamento que procura regular são ambos produtos de processos mentais. E, dentro deste contexto, o processo de interpretação e aplicação jurídica aparece como o mecanismo apto e o único meio possível e com capacidade necessária e suficiente para pôr em evidência a natural combinação cérebro/norma.
Por que? Pela simples razão de que nem princípios nem regras regulam por si mesmos sua aplicação no âmbito do comportamento humano. Eles representam apenas os pilares passivos do sistema jurídico. Se se quer obter um modelo completo, é necessário agregar aos pilares passivos um ativo, quer dizer, um procedimento de interpretação, de justificação e de aplicação das regras e princípios jurídicos. Portanto, os níveis das regras, dos princípios e do comportamento humano têm que ser completados por um quarto: o de um processo de concreta realização do direito e a correspondente (e iniludível) dimensão subjetivo-individual (neuronal) do jurista- intérprete.
Daí que a frenética busca de uma metodologia que marque os critérios de uma “racional”, “correta” ou “óptima” determinação dos enunciados normativos parece constituir, em essência, uma pretensão incompatível com os conhecimentos que as ciências cognitivas e a neurociência já nos aportam: a de desenhar um modelo de extrema racionalidade de algo que se configura essencialmente como uma atividade com acentuados componentes irracionais, isto é, de construir uma imagem ou ilusão racional do que parece ser, em si mesmo, irracional[5].
O inadequado dessa pretensão se põe de manifesto ao analisar como funciona o cérebro quando formulamos juízos morais acerca do justo ou injusto. A causa dos processos cerebrais associados é preciso aceitar a iniludível presença de elementos não-lógicos e, em geral, a intrusão do valorativo e emocional no raciocínio jurídico. A partir daí, já não resulta aceitável nem legítimo o seguir considerando a tarefa hermenêutica/interpretativa como uma operação ou conjunto de operações regidas exclusivamente pela silogística dedutiva ou cognoscitiva: a mente humana parece estar carregada de traços e defeitos de desenho que empanam o nosso legado biológico no que se refere à plena objetividade e racionalidade cognitiva[6].
É definitivamente contra-intuitivo e ilusório supor que a tarefa interpretativa e os modelos metodológicos sejam concebidos como extracraneais, enquanto a cognição e a emoção não o são. São produtos de nossa maquinária cerebral, tanto como são produtos de nosso entorno cultural. O permanecer de costas aos espetaculares logros das recentes investigações provenientes das ciências cognitivas e da neurociência implica em deixar sem resposta (ou sem sentido) perguntas determinantes que têm que ver, sempre, com a busca de padrões cognitivos e emocionais que funcionam como fatores condicionantes da “racionalidade” humana na tarefa de interpretar e aplicar o direito, isto é, em ignorar os múltiplos fatores e influências, inatas e adquiridas, que condicionam nosso processo de decisão.(Gigerenzer, 2008)
E é muito provável, diga-se de passo, que toda essa silenciosa “revolução” que se avizinha tenha servido precisamente para motivar a postura adotada pelo ministro Carlos Ayres Britto, do Supremo Tribunal Federal, no sentido de haver instigado os juízes do Trabalho (
2. Limites da interpretação e autonomia do intérprete
Mas será assim, realmente? Não valerá a pena raciocinar sobre esses fenômenos, sobre essa intuição tão humana de que se o fator último de individualização da resposta ou conclusão do raciocínio jurídico não procede exclusivamente do sistema (ou da norma), ainda que resulte compatível com ele, é porque deve proceder das convicções pessoais de quem decide? Até que ponto intervém o puro instinto (prenhado de sentimentos e originado e processado por meio das estruturas modulares cerebrais do operador do direito) em nossas decisões? O que se esconde por detrás de nossas valorações ético-jurídicas, mais além da reflexão e do raciocínio? Que processos instintivos, intuitivos e/ou emocionais intervêm na tarefa hermenêutica de compreender, interpretar e aplicar uma norma jurídica?
Começo por admitir como absolutamente pertinente e correta a afirmação (inferida a partir da advertência de Philip Tobias (1997) relativa a linguagem) de que se julga com o cérebro – e se de algo não há dúvida é que temos um cérebro herdado por via do processo evolutivo. Toda e qualquer interpretação e conduta relacionada com o processo de tomada de decisão surge da atividade eletroquímica de redes-neurais no cérebro. A experiência de escolher a decisão satisfatória e decidir não é uma ficção, mas uma conseqüência causada pela atividade fisiológica de um cérebro (produto de sistemas cognitivos e emocionais no cérebro) moldado geneticamente ao longo da história evolutiva de nossa espécie e aparelhado para pensar de certa maneira. Trata-se de um processo neural (ou, se se prefere, subjetivo), com a óbvia função de selecionar a solução satisfatória segundo suas conseqüências previsíveis, a par de devidamente fundamentada.
Daí que o juízo ético-jurídico baseado em raciocínios, mas também em emoções e sentimentos morais produzidos pelo cérebro, não pode ser considerado como totalmente independente da constituição e do funcionamento desse órgão que parece não dispor de uma sede única e diferenciada relacionada com a cognição moral (Atahualpa a Marly Fernandez, 2008). A realidade da tarefa do operador do direito ético-cerebral tem, em seus sistemas avaliativo-afetivos neuronais uma permanente vigilância de exigências, obrigações e estratégias, um “dever-ser” que incorpora internamente os motivos racionais e emocionais, e que se integra constitutivamente em todas as atividades dos níveis prático, teórico e normativo de todo processo de realização do direito.
E isto implica em reconhecer, depois de tudo, que na interpretação há necessariamente algo de pessoal e de arbitrário. A interpretação, justificação e aplicação das normas jurídicas envolve forçosamente uma margem de autonomia. A norma é, como se sabe, estruturalmente constituída por uma previsão e por uma estatuição geral e abstrata, ligadas por um nexo, no âmbito do qual, ao contato com a vida, tem lugar a realização do direito (ou seja, a “causalidade jurídica”). Pois bem, é precisamente no percurso desse processo de realização do direito (do continuum entre interpretação e aplicação da norma nos seus dois elementos estruturais ou da sua passagem do mundo formal da abstração para o mundo da realidade concreta) que estão presentes certos elementos não lógicos, valorativos e não algorítmicos (isto é, práticos, subjetivos e emocionais), elementos que não só condicionam a autonomia do intérprete senão que sempre intervêm na interpretação de uma vontade estranha, seja a do legislador seja outra qualquer.
Mas não se creia, contudo, que as propostas que nesta matéria pretende-se formular sejam de aplicação tão fácil, sejam tão precisas e exaurientes, que tudo se resuma a subsumir , no quadro delas, de forma puramente mecânica, os casos da vida real, ou, o que seria ainda pior, a exaltar a capacidade do operador do direito (nomeadamente do magistrado) de ser exclusivamente reflexivo, neutro e analítico, de poder examinar todas as alternativas possíveis, enumerar todos os prós e os contras, sopesar cuidadosa e exaustivamente todas as consequências de sua interpretação, etc. Isso em primeiro lugar não seria, definitivamente, conveniente nem muito menos real. Se o texto legal, a norma legislada, pela sua natureza e finalidade, constitui um mero bosquejo de interpretações e decisões futuras, um simples propósito genérico e altamente indeterminado que necessita concreção para tornar-se direito efetivamente operativo[7], o operador do direito se move, necessariamente, no âmbito de uma moldura de contornos vagos, de uma estrutura normativo-material aberta e indeterminada.
Esta estrutura é oferecida ao sujeito-intérprete com a finalidade de que, mais perto do mundo da vida, este coloque o quadro que entender por mais ajustado à especificidade do caso vertente. Entre o enunciado legal e a decisão que resolve um caso concreto há um extenso espaço intermédio em que o intérprete ( nomeadamente o juiz) manobra com ampla margem para suas opções. E, no ato de manobrar nesse espaço, tem um papel central a tarefa interpretativa, cuja principal característica parece residir no fato de que o processo para tomar decisões corretas (ou satisfatórias[8]) não consiste precisamente em processar uma grande e ilimitada quantidade de informação senão, considerando que a maioria das decisões são tomadas com bastante rapidez, em cenários complexos e com informação parcial e incompleta – inclusive, em condições de incerteza –, em descartar intuitivamente aquelas que não necessitamos. (Gigerenzer, 2008)
A interpretação medeia sempre, portanto, entre o enunciado e o concreto padrão decisório que ao caso se aplique. A interpretação deixa de ver-se como a exceção e passa a converter-se em regra: a “clareza” de um enunciado normativo é um resultado da interpretação e já não é mais a obscuridade do texto que justifica a interpretação; antes, é a concreta realização do direito que a não pode nunca dispensar. E o intérprete já não é mais contemplado como passivo servidor da norma que lhe precede, senão como alguém que a transforma em regra decisória ao optar por uma ou outra interpretação da mesma. Conceitos e normas (princípios, valores e regras) indeterminados, abertos ou disjuntivos através dos quais exatamente o legislador pretende fazer apelo aos tais elementos emocionais práticos (não lógicos, não algorítmicos e subjetivos) a que fazíamos há pouco referência – e desde que, por óbvio, adotem a perspectiva de serem mais humanamente operativos em virtude das conseqüências ético-comunitárias decorrentes de sua relação com o fazer viver uma norma na prática.
Será que então se deve prescindir por inteiro da formulação de cânones, regras e métodos interpretativos? Será que então – na matéria que estamos considerando – da só idéia de que ao intérprete (particularmente ao juiz) cabe forçosamente muito, se deve concluir que lhe há de, mesmo, caber tudo? Será, enfim, que tudo o que nesta matéria é possível fazer é apelar para o sentimento e convicção do sujeito-intérprete para que ele solucione da forma mais ajustada as hipóteses consideradas, em busca de um “novo humanismo”?
De toda a evidência que não. Contra o que os juristas alemães denominaram de “interpretação ilimitada da norma” têm-se produzido sérias e decisivas objeções. Não é verdade que as normas jurídicas admitam uma interpretação ilimitada (como pretendem alguns operadores do direito), como tão pouco que esteja aberta ao que certos juristas italianos chamaram há mais vinte anos (com mais êxito no Brasil que em seu próprio país, por certo) de uso alternativo do direito, que pretende, em última instância, justificar qualquer interpretação desde critérios ideológicos.
Logo no puro plano do valor justiça – certamente não o único, mas porventura o que hoje em dia sobreleva a todos os demais –, logo nesse plano não se pode dizer que a via mais apta a realizá-lo seja conferir ao juiz uma latitude de poderes que faça entrar a sua discricionariedade naquele “reino confuso do arbítrio, do palpite, do sentimento anárquico e da intuição irrefletida” (Manuel de Andrade,1987). Pelo que respeita ao valor segurança, é então patente à todas as luzes que a denominada “interpretação ilimitada da norma” o compromete numa medida incomportável. E se a tudo isso juntarmos, como fator mais grave, o construtivismo social – que reduz a interpretação, a justificação e a aplicação da norma a puras operações subjetivas e relativistas, mais ou menos irrefletidas e arbitrárias -, o resultado é a total e a mais absoluta perda por parte do direito de ser caráter de ciência ou até mesmo de arte, que pelo menos comumente lhe é atribuído.
O problema, contudo, é que os teóricos do direito parecem estar, na atualidade, submetidos a uma espécie de aliança ímpia tácita entre a verborréia relativista pós-moderna e pós-estruturalista, anti-científica e anti-racionalista, e uma retórica autocomplacente, pretendidamente muito “científica”, dominada sobretudo por um positivismo, um sociologismo, um jusnaturalismo substancial ontológico e/ou pelo modismo das recentes teorias dos direitos humanos e fundamentais: enquanto os pós-modernos fogem da realidade social, científica e política com delirantes imposturas (“tudo é texto” e truanices parecidas), os outros, os “científicos”, os “filósofos dos direitos humanos” fogem da realidade social e científica construindo triviais pseudomodelos teóricos que não passam, com frequência, de grotescas paródias argumentativas sem qualquer escrutínio empírico minimamente sério, senão carentes da menor autoconsciência respeito da realidade biológica que nos constitui, dos problemas filosóficos e neuropsicológicos profundos que implica qualquer teoria da ação intencional humana, e em particular, de uma teoria da racionalidade reformada (Gigerenzer, 2008; Jones e Goldsmith, 2004; Jones, 2001; Sutherland,1992). Enfim, por uma completa falta de precisão relativa a adesão de seus respectivos discursos à natureza humana.
Afortunadamente, o epidêmico relativismo cultural, histórico e jurídico parecem não resistir à idéia de que existe uma natureza humana cujo núcleo duro constitui o fundamento último de toda a unidade ético-cultural, condiciona o modo como nos vemos a nós mesmos como espécie, estabelece uma medida para a legitimidade e a autoridade do direito e dos enunciados normativos, e determina, em última instância, a direção e o sentido de todo discurso prático ético-jurídico[9].
Como recorda Arnhart (1998), ao defender um novo direito natural darwiniano: “Eu rejeito o relativismo cultural, que afirma que a ética é uma invenção puramente cultural que varia arbitrariamente de uma cultura para outra, porque enquanto eu reconheço a importância do aprendizado social e os costumes no desenvolvimento moral, eu acredito que os desejos humanos naturais são universais e desta forma limitam a variabilidade das práticas culturais. Eu rejeito o relativismo historicista, que afirma que a ética é puramente uma invenção histórica que varia radicalmente de uma época histórica para outra, porque enquanto eu reconheço a importância das tradições históricas, eu acredito que os desejos humanos naturais constituem uma base imutável através da história humana. Eu rejeito o relativismo cético e solipsista, que afirma que não há padrões de julgamento ético, além dos impulsos de indivíduos únicos, porque enquanto eu reconheço a importância da diversidade individual, eu acredito que haja regularidade nos desejos humanos que manifestam uma natureza humana típica da espécie humana. Eu também rejeito o dogmatismo racionalista, que afirma que a ética repousa em imperativos lógicos da pura razão, porque enquanto eu reconheço a importância da razão humana em julgar quão melhor satisfazer seus desejos, eu acredito que o fundamento dos motivos da ética não é a lógica da razão abstrata, mas a satisfação de desejos naturais. E eu rejeito o dogmatismo religioso, que afirma que a ética somente pode ser fundada em leis transcendentes de um poder divino, porque enquanto eu reconheço que a ética religiosa pode reforçar a ética natural, eu acredito que a ética como fundada nos desejos naturais existe independentemente de qualquer poder divino”.
Portanto, seja em função da justiça, da segurança jurídica ou das perversas consequências de um insano e inconsistente relativismo, a atividade interpretativa não pode ser ilimitada senão limitadamente diversa no tempo e no espaço, uma vez que supõe um exercício de pensamentos e sentimentos práticos orientado e controlado: 1) pelo ethos social institucionalizado nos valores que expressam as convicções morais da sociedade; 2) pelo sistema jurídico que contextualiza a interpretação e aplicação no seio do conjunto de fontes normativas; e 3) pelo resíduo de essência humana que escapa do controle cultural e que não somente circunscreve as condições de possibilidade de nossas sociedades senão que, e muito particularmente, guia, condiciona e põe limites ao conjunto institucional e normativo desenhado para regular nossos vínculos sociais relacionais[10].
E dito seja de passo que a formação conceitual da segurança e certeza jurídica não foi a conseqüência de uma elaboração lógica, mas o resultado de um longo e penoso processo adaptativo de nossa espécie, uma estratégia sócio-adaptativa lograda por meio de inúmeras conquistas políticas dos agentes sociais. A segurança constitui “um desejo arraigado na vida anímica do homem” – uma função própria de nossas intuições e emoções morais – que sente terror ante a insegurança de sua existência, ante a imprevisibilidade e a incerteza a que está submetido. A exigência de certeza e segurança de orientação é, por isso, uma das necessidades humanas básicas que o direito (enquanto objeto cultural desenhado para resolver problemas adaptativos relacionados com nossa complicada vida em sociedade[11]) trata de satisfazer através da dimensão normativa e institucional da chamada segurança jurídica[12].
Esta dito: ainda que a tarefa intepretativa implique um grau tolerável de controle e limite metodológico – isto é, a busca de um desenho de discurso racional que plasme crenças cognitivamente virtuosas, e que o caminho pelo qual veio ou o processo que lhe há gerado seja um caminho ou processo fiável-, nossos desejos e nossas emoções intervêm sempre em maior ou menor medida em todo o processo de interpretação e de tomada de decisão em concreto, ou, para ser mais preciso, a articulação co-constitutiva da afetividade e da razão intervém em toda e qualquer interpretação (compreensão), justificação e aplicação de uma norma jurídica.
Nesses domínios, em que o acento recai na peculiaridade, na especificidade do caso concreto, deve o operador do direito convencer-se de quanto seria nefasta a eventual pretensão do legislador de regular ele próprio tudo, prendendo o intérprete (em particular o magistrado) de pés e mãos, fazendo dele uma pura máquina subsuntiva, ao cabo de cujo funcionamento se estaria em face de uma solução que a todas as luzes mal quadraria ao caso considerado. A concessão ao sujeito-intérprete ( ao juiz) de certa margem de autonomia é, pois, no nosso caso (no caso da interpretação/aplicação jurídica), uma atitude necessária e uma solução por demais fecunda. Em verdade, é no autônomo processo de interiorização dos códigos morais e jurídicos da sociedade, no processamento de tais informações na avaliação ética e na tomada de decisões, em concreto, que a conduta do intérprete, sempre produtiva e constitutiva, garantirá a condição de cidadania plena e a sua devida prioridade frente a qualquer outro fenômeno sócio-cultural e existencial.
Assim que a interpretação não pode prescindir da insubstituível atividade e iniciativa do sujeito. A interpretaçao é, em efeito, um espaço de jogo entre vínculo e liberdade, entre rigidez e flexibilidade, entre lógica do provável e do razoável por um lado, e lógica do necessário e do constritivo por outro, quer dizer, um espaço dentro do qual é certamente possível uma pluralidade de soluções alternativas, ainda que isso não signifique em absoluto que todas as interpretações sejam igualmente legítimas: e dado que não existe certezas demonstrativas nem verdades empíricas, somente a argumentação, entre as distintas hipóteses interpretativas possíveis, pode orientar no sentido de uma interpretação satisfatória e razoável, no sentido de eleições prudentes e responsáveis, guiadas por “boas razões”, que sirvam às nossas intuições e emoções morais e à justiça e não as traicionem.
Depois, um intérprete que crê que recebe seus critérios de decisão somente da lei (somente submetido à norma positiva escrita, ao texto legal ou do significado inerente às palavras da norma), sucumbe a um equívoco fatal, pois (inconscientemente) permanece dependente de sua própria irracionalidade. Dito de outro modo, um intérprete que crê que a relação direito/norma é tudo esquece que a medida do direito, a própria idéia e essência do direito, é o humano, cuja natureza resulta não somente de uma mescla complicadíssima de genes e de neurônios senão também de experiências, valores, aprendizagens, e influências procedentes de nossa igualmente embaraçada vida sócio-cultural.
Em todo caso, contudo – e posto que a empresa do direito deve certamente ser uma empresa racional –, o problema com que tem que enfrentar-se o operador do direito de qualquer condição é, em termos gerais, sempre o mesmo: como utilizar um instrumento cada vez mais complexo – o direito – para alcançar certos propósitos que, por se considerarem valiosos ( isto é , justos), vão mais além do próprio direito: uma certa paz, uma certa segurança, uma certa liberdade, uma certa igualdade, uma certa fraternidade? Como, em última análise, trabalhar, sob a perspectiva da racionalidade, processos ( de interpretação e de tomada de decisão) que não são racionais ou não o são exclusivamente?
Em outras palavras, como haveremos de responder à pergunta central da metodologia normativa da interpretação jurídica, a saber: como deve proceder o intérprete para que os frutos de sua interpretação, embora não se possam dizer rigorosa e objetivamente corretos, sejam não obstantes razoáveis, satisfatórios e que gozem de uma certa aceitabilidade racional – ou, ao menos, para que não possam reputar-se de perfeitamente subjetivos e caprichosos, o que, em direito, não o olvidemos, se assemelha a uma perigosíssima arbitrariedade que põe em questão nossa segurança entanto quanto cidadãos sob o império da lei?
Decerto que não se trata de um intento ilícito ou desafortunado, porquanto parece intuitiva a necessidade de que os discursos jurídicos (com validade intersubjetiva e potencial capacidade de consenso) estejam racionalmente justificados e coerentes com o sistema jurídico global, quer dizer, que em favor dos mesmos se aportem argumentos que façam com que, sendo produto de uma (limitada) racionalidade plasmada no diálogo de reconhecimento e compreensão recíproca, possam ser discutidos e controlados, e, em igual medida, tratem de impedir um perfil de operador jurídico (nomeadamente do juiz) proclive a um desvairado e irracional subjetivismo.
Assim que uma interpretação que não se submeta a regras e não se preocupe por estabelecer uma coerência respeito a modelos de decisão estabilizados e já argumentativamente ponderados corre sempre o risco, precisamente por ser infundada, de precipitar-se em uma violência e em um arbítrio visceralmente insensatos. A tal ponto que a atividade do jurista-intérprete acabaria despojada de toda objetividade e assumiria sorrateira e definitivamente a iniludível irracionalidade do jogo interpretativo. ( não olvidemos que na práxis judicial de aplicação do direito, por exemplo, se pede aos juízes que atuem com imparcialidade e objetividade, evitando na medida do possível que sua decisão esteja condicionada por puros dados subjetivos, prejuízos, simpatias, etc.).
Sem embargo, se se pondera atentamente sobre as condições do ato do compreender, não resulta difícil descobrir que – se bem valiosos os fins da racionalidade do proceder interpretativo – os vínculos constituídos pelas regras e métodos de interpretação dos textos normativos, a dogmática jurídica, a comunidade dos intérpretes e dos juristas, e a própria dimensão da comunidade ética e da textualidade, são sempre limites de natureza relativa: quer dizer, não podem jamais eliminar totalmente a natureza do jogo interpretativo (isto é, de discricionaridade e dos espaços de liberdade do intérprete), senão que somente contribuem, com sua função normativo-prescritiva, a estruturá-los e a contê-los. Em todo caso, se o objetivo é a racionalidade do interpretar, são sempre preferíveis vínculos e limites parciais e imperfeitos, expressão de culturas jurídicas e sociedades históricas específicas, antes que nenhum vínculo ou limite. Dito de modo mais simples, a insuficiência do vínculo não implica, em definitivo, a supressão dos limites por ele desenhados[13].
Depois, talvez seja útil recordar que no processo de realização do direito se apresenta ainda ao operador do direito um importante problema de responsabilidade ao garantir ou, melhor dito, ao estabelecer, a coerência intrínseca do sistema jurídico. Ao jurista-intérprete se lhe confia a tarefa específica de combater ou ao menos minimizar a contraditoriedade intrínsica do sistema jurídico, particularmente a de reconstruir e contextualizar a hierarquia dos valores e princípios constitucionais, que não se pode considerar como dada e adquirida de uma vez por todas. O sentido de uma norma jurídica se converte, por meio do sujeito-intérprete – e ainda que a modifique no percurso do processo interpretativo- , em expressão de relações mantidas com a prática, de uma capacidade de relação com os dados extralinguísticos e com o contexto de experiência, que em cada novo caso tem que ser renovada e dinâmicamente reconstruída , mas sempre com o fim de compor em um todo coerente normas, princípios e valores diferentes; portanto, de detectar, de forma prudente e responsável, na pluralidade de hipóteses interpretativas e soluções alternativas possíveis, a solução legítima, mais satisfatória e com maior capacidade de consenso.
Afinal, uma vez que o operador do direito é, antes de tudo e em sua tarefa sócio-institucional, responsável perante o meio social e frente ao que há de assegurar-se acerca da plausibilidade de suas interpretações, ele deve procurar que suas valorações cambiantes do texto normativo não somente estejam em consonância com nossas intuições e emoções morais, com a coerência do sistema jurídico e com os valores historicamente aceitos e compartidos por uma determinada comunidade ética, senão também, e na mesma medida, que seus discursos contem com algum referente que permita a determinação e a atribuição, ao menos aproximativa, de correção ou incorreção objetiva relativamente às suas opções interpretativas[14].
Por conseguinte, todo intento de separar, nomeadamente nas ciências compreensivas, a racionalidade da personalidade que compreende está fatal e tragicamente condenada ao fracasso: a imagem do intérprete inteiramente neutral, imparcial, por completo objetivo, despersonalizado, passa por alto da realidade; todas as interpretações e decisões sobre o direito se inspiram no ponto de vista de alguém, na perspectiva de um ser humano único cuja recompilação de experiências passadas lhe serve como contexto, lente e trajetória para valorar sua experiência presente e, dessa forma, alterar o texto interpretado. Pese a muito que se possa desejar, não existe um ponto de vista “neutral”, e a mera possibilidade de que se possa “recuperar” (ou “institucionalizar”) a neutralidade é tão remota que resulta deprimente e tremendamente contrária a nossa marcada disposição para projetar a própria subjetividade no mundo: somos, definitivamente, uma idiossincrasia com patas.
Essa, em realidade, parece ser a razão pela qual Häberle (2003) afirma que não existe norma jurídica, senão norma jurídica interpretada e que interpretar um ato normativo nada mais é do que colocá-lo no tempo e contextualizá-lo no espaço, enfim, de integrá-lo no mundo da vida vivida. De que concebido o direito como prática social de tipo interpretativo e argumentativo, é o operador jurídico que produz a realidade do direito e a edifica enunciando o que este mesmo é. Há direito onde sujeitos diferentes pré-compreendem, discutem, modificam e desenvolvem, submergindo-se na práxis, proposições e enunciados normativos pertencentes a essa prática interpretativa que, sobre a base de sua unidade de sentido, chamamos de fenômeno jurídico : o objetivo da boa interpretação não é conseguir que os intérpretes admirem e reproduzam uma legislação já feita, senão fazê-los capazes de valorá-la e de corrigí-la; interpretar/aplicar o direito é acima de tudo uma virtuosa responsabilidade ética: podemos admirar o estilo de um discurso jurídico ou a habilidade do sujeito-intérprete, mas ainda assim devemos julgar tanto a um como ao outro pelos resultados de sua atividade.
Depois, não somente a personalidade do intérprete está presente no decurso de toda interpretação como os intérpretes, no processo de realização do direito, não deixam de ser homens imbuídos de toda a preocupação ética, de prejuízos, de certos valores, preferências e intuições morais, o que faz com que não pareça legítimo nem razoável interpor, na aplicação do direito, uma barreira insuperável entre a desejada objetividade e a subjetividade do intérprete. O processo de realização do direito por parte do intérprete implica, em última intância, uma tarefa que pode considerar-se propriamente construtiva e emocional, pessoal e criativa em certo sentido, embora não como absolutamente livre ou desprovida de vínculos para o operador do direito (portanto, tendencialmente racional).
E é essa constatação a que faz com que não somente a noção de racionalidade habitual em ciência jurídica esteja sendo objeto de revisões drásticas, senão também que a idéia mesma de que a ciência jurídica está fundada na objetividade, neutralidade e racionalidade absoluta do operador do direito venha sendo assaltada e posta em dúvida nos últimos lustros desde as mais variadas direções. Desde logo, a partir de algumas tendências da filosofia e da filosofia do direito mesmo, mas também, e acaso mais incisiva e contundente, por parte dos cientistas cognitivos, dos filósofos da mente e dos avanços provenientes da neurociência. E com o resultado de que, embora quando alguma noção de racionalidade no processo de realização do direito parece iniludível (tratar de prescindir da idéia de agentes intencionais é tarefa condenada de antemão ao fracasso), o processo de derivação de valores não é de natureza estritamente neutra, objetiva, racional e/ou cujo significado é inerente às palavras do texto.
Se é certo que a interpretação jurídica não pode existir sem a razão (preferências individuais e razão instrumental), não menos certo é a “intuição” de que é a gama caracteristicamente humana de emoções que produz os propósitos, metas e objetivos buscados pelo intérprete. Formulamos juizos de valor sobre o justo e injusto não somente por sermos capazes de razão (como expressam a teoria dos jogos e a teoria da interpretação jurídica) mas, ademais, por estarmos dotados de certas intuições morais e de determinados estímulos emocionais que caracterizam a sensibilidade humana e que permitem que nos conectemos potencialmente com todos os outros seres humanos.
Devemos compreender que o desejo de proporcionar uma justificação exaustivamente racional da maneira em que vamos conduzir nossas interpretações é descabelada. A fantasia hiper-racionalista de demonstrar que todas nossas ações (e interpretações) se baseiam em premissas exclusivamente racionais é incoerente e devemos abandoná-la (H. Frankfurt, 2004). Nossos desejos, nossos prejuízos e nossas emoções intervêm sempre em maior ou menor medida em todo o processo de interpretação e de tomada de decisão em concreto, ou, para ser mais preciso, a articulação co-constitutiva da afetividade e da razão intervêm em toda a interpretação (compreensão), justificação e aplicação de uma vontade alheia, sobretudo naqueles domínios em que o “caso concreto”, o “caso da vida real”, surge ao intérprete com uma variedade e uma multiplicidade desconcertantes.
Aqui está sempre presente (embora não exclusivamente, é certo) um certo momento pessoal e criativo relacionado com a sempre problemática “racionalidade” humana, isto é, de que o “conhecimento” do direito importa sempre um pouco de “construção” humana do jurídico. Mais claramente: o direito na sua forma concreta de existência (nomeadamente, tal como é “proferido” pelos tribunais) surge sempre e somente no processo de realização do direito, com a participação integral da personalidade do sujeito que compreende (do intérprete). Da mesma forma que a “beleza” não existe realmente senão quando se plasma em uma concreta obra de arte, não parece prudente dispor acabadamente de meras “possibilidades” ou “potencialidades”, à margem da mesma tarefa interpretativa em que afloram as normas do caso concreto.
Como se vê, a tarefa de realização do direito, para a gente que vive em uma comunidade prenhada de normas, é algo mais complicada.
3. Equilíbrio reflexivo: interpretação jurídica e intuições morais
Que fazer à vista dessas realidades? Neste particular, argumentamos a favor de uma “racionalidade jurídica reformada”, de um modo de pensar, interpretar e decidir que tome em consideração a forma em que a ciência cognitiva e a neurociência entendem a mente: de uma racionalidade que fale explicitamente do pensamento fundado em emoções e discuta seus efeitos. A capacidade de interpretar (de raciocinar e valorar) a tudo e a todos é o correlato e o corretivo da liberdade e da plasticidade nervosa (cerebral), que sem nenhum tipo de corretivo poderia lançar-nos em direçoes letais. A responsabilidade pessoal pelos efeitos de nossas interpretações é o preço que pagamos por essa liberdade, e tratar de minimizar e humanizar esse preço é também parte da natureza. Só nós axercemos o agridulce privilégio dessa liberdade e só nós somos capazes de por uma nota valor, de justiça e de injustiça em nossas interpretações, em meio de um universo indiferente e desalmado. Mas isso somente é possível se se entende bem a verdadeira natureza do pensamento, para lograr o qual resulta necessária uma postura aberta e honrada.
Portanto, considerando que o direito vive em representações e significados que se passam na mente, isto é, em nossas estruturas cerebrais, que estas estruturas processam informações através de um mecanismo localizado no sistema nervoso e que nossos juízos de valor ocorrem em estruturas neurais preexistentes (que se desenvolveram como adaptações, resultantes de um processo de evolução por seleção natural, através do tempo, em ambientes ancestrais), a busca de um adequado critério de realização do direito pode considerar-se como a arqueologia dessas estruturas e correlatos cerebrais, que parece estar destinada a ser uma parte vital da tarefa interpretativa. Daí porque, hoje, estabelecer as funções próprias de nossa arquitetura cognitiva e moral constitui uma das mais fascinantes e buscadas empresas para as ciências cognitivas, a psicologia, a neurociência e para a ciência social normativa. Abre, sem dúvida, vias muito potentes e férteis de explicação e compreensão da racionalidade humana e, em particular, dos múltiplos fatores e influências, inatas e adquiridas, que condicionam e limitam nosso processo de decisão.
Por certo que se poderia argumentar que, diferentemente do que ocorre com as ciências positivas – que se contrasta com os fatos, os quais, por sua vez, contribuem para determinar seus respectivos espaços teóricos –, as teorias normativas não podem contrastar-se com os fatos (sustentar o contrário, sem maiores qualificações, seria cometer a denominada falácia naturalista). E parece que o espaço conceitual das teorias sociais normativas, como o das teorias positivas, necessita determinação: como, senão, eleger – por exemplo – entre soluções ou interpretações normativas em conflito? Ou, mais especificamente para o que aqui nos interessa: como eleger – nomeadamente nos chamados “casos difíceis” – entre soluções igualmente aceitáveis, mas conflitantes?
A negativa em determinar o espaço teórico-normativo equivale a abandonar por completo e sem restos toda a possibilidade de discussão racional em assuntos de justiça ou de moral, e ainda de ética tout court: seria reconhecer como um factum trágico a existência de um “politeísmo ético” irredutível à argumentação e deliberação racional (no melhor estilo kelseniano), para dizê-lo com a celebrada expressão de Max Weber[15]. Se a contrastação com os fatos empíricos é, quando menos, uma fonte importante de determinação das teorias positivas, e se aparentemente as teorias normativas não podem contrastar-se com os fatos, em contraste com que haveríamos de começar a determinar e a restringir o espaço de possibilidades, por exemplo, da solução ou do resultado normativo das interpretações levadas a cabo pelos operadores do direito?
Há várias décadas, Nelson Goodmann (1965) se perguntou pela justificação epistêmica do mais básico, as regras de inferência dedutiva da lógica formal elementar e as regras de inferência indutiva. Pois parece natural supor que todo o edifício da ciência empírica ( e de todas as empresas cognitivas humanas) depende , em última instância, de que essas regras estejam justificadas, de que resultem fiáveis. A resposta que deu Goodman a essa pergunta é seguramente uma das contribuições mais influentes e discutidas da filosofia do conhecimento do século XX. Vale a pena citá-la com alguma extensão:
“ Como justificamos uma dedução? Manifestamente, mostrando que é conforme às regras gerais da inferência dedutiva. Um argumento que se conforma a elas está justificado, é valido, ainda se suas conclusões forem falsas. Um argumento que viola uma regra é falaz, ainda que suas conclusões sejam verdadeiras… Analogamente, a tarefa básica de justificar uma inferência indutiva é mostrar que é conforme as regras gerais da indução…
“Mas, evidentemente, as regras mesmas devem ser justificadas. A validez de uma dedução depende de sua conformidade não com quaisquer regras puramente arbitrárias que pudéramos idear, senão de sua conformidade com regras válidas. Quando falamos das regras de inferência nos referimos às regras válidas(…) Mas como se determina sua validez ? (…) Os princípios da inferência dedutiva se justificam por sua conformidade com a prática dedutiva aceitada. Sua validez depende de sua concordância com as particulares inferências dedutivas que realmente executamos e sancionamos. Se uma regra gera inferências inaceitáveis, a eliminamos como inválida. Assim, pois, a justificação das regras gerais deriva de juízos de rechaço ou de aceitação de inferências dedutivas particulares.
“Isto parece uma circularidade flagrante. Já disse que as inferências dedutivas se justificam por sua conformidade com as regras gerais válidas, e que as regras gerais válidas se justificam por sua conformidade com as inferências válidas. Mas se trata de um círculo virtuoso. Pois assim as regras, como as inferências particulares, se justificam pela via de pôr-las em acordo mútuo. Se emenda uma regra se gera uma inferência que não estamos dispostos a aceitar; se rechaça uma inferência se viola uma regra que não estamos dispostos a emendar. O processo de justificação é o delicado processo de fazer ajustes mútuos entre regras e inferências aceitadas; e no acordo logrado radica a única justificação que necessitamos para ambas.
“Tudo o qual vale também para a indução. Também uma inferência indutiva se justifica por sua conformidade com regras gerais, e uma regra geral, por sua conformidade com inferências indutivas aceitadas”.
Os filósofos morais reconhecerão imediatamente nesta argumentação uma irmã gêmea da noção rawlsiana de “equilíbrio reflexivo”. E, de fato, assim o é. Rawls (1971) sustenta a idéia de justificar sua teoria da justiça como eqüidade (e em geral as teorias sociais normativas) apelando a um equilíbrio reflexivo[16] entre sua teoria e uma peculiaríssima classe de fatos: a de nossas intuições éticas ou morais. E esta idéia foi tomada precisamente da idéia goodmaniana de justificar as regras de inferência lógicas recorrendo a um equilíbrio, a um “acordo”, entre nossas intuições acerca de quando devemos aceitar uma inferência particular e as regras gerais que pretendem legitimar a validez das inferências.
Ocorre que nossas intuições e nossas práticas éticas e jurídicas – o mesmo que nossas intuições e nossas práticas inferenciais – não são muito consistentes, e em qualquer caso se nos apresentam um tanto revoltas e confusas; tratamos de dar-lhes coerência, de sistematizá-las e de capturá-las conceitualmente codificando-as mediante sistemas coerentes e globais de preceitos – normas éticas, normas jurídicas ou regras de inferência –; vemos se essa codificação sistemática logra capturar todas ou a grande maioria dessas intuições e dessas práticas, e se concorda com elas.
É possível que não o faça, que deixe muitas intuições e práticas de fora, ou que viole algumas das que abarca; então, retocamos nossa codificação sistematizadora para que abarque mais e para que o abarcado quadre melhor com nossas intuições e nossas práticas; mas também é possível o contrário, a saber, que nossa codificação sistematizadora nos resulte muito aceitável, mas que deixe de fora ou viole algumas intuições e práticas; então, tratamos de emendar e retocar nossas intuições e nossas práticas para que casem com a codificação que nos resulta satisfatória; e ao final desses processos de ajuste e “acordo” chegaremos a um “equilíbrio reflexivo” entre nossas regras e normas sistematizadas e refinadas, por um lado, e nossas intuições e nossas práticas emendadas e devidamente reconsideradas, por outro.
Sem embargo, parece notório o fato de que nossos valores e nossas intuições ( assim as éticas como as epistêmicas) são muitas vezes confusas e pouco cogentes, e que podemos presumir sem aviltamento não só que essas intuições e valores estão diversamente marcados por efeito dos processos culturais de diferenciação social, senão também que, em algum grau, nossas intuições – o mesmo que nossas capacidades – estão desigual e diversamente distribuídas geneticamente.
Isto levanta, aparentemente, o seguinte problema: se nossas intuições morais e epistêmicas (sobre o que seja uma inferência correta, ou uma crença bem fundada etc.), o mesmo que nossas capacidades cognitivas estão diversamente distribuídas geneticamente, como presumir que podemos chegar a consensos, a “acordos” ou a “equilíbrios reflexivos” (públicos e intersubjetivos) acerca dos critérios de racionalidade (das razões justificativas) das interpretações que levamos a cabo (ou seja, de nossos discursos jurídicos)? Não abre isso automaticamente as portas ao relativismo e ainda ao niilismo jurídicos? Não está então o caminho expedido para que se rompa a intersubjetividade e se possa afirmar, não somente que a senhora A e a senhora B têm intuições morais distintas e ainda desencontradas, senão que tão “corretas” são as da senhora A como as da senhora B?
Da mesma forma, e para pôr o problema algo mais complicado , bem se poderia conjecturar que nossas intuições e nossas emoções morais de raiz biológica se solapam, sejam globalmente incoerentes, e até, em determinados contextos, contraditórias. Afinal, a universal experiência humana dos dilemas éticos, tão explorada como recurso literário e de reflexão filosófica, bem poderia deixar suas raízes no caráter fluxo e pouco coerente de nossas intuições e emoções morais.
E aqui chegamos ao problema seguramente mais interessante que se discute nesta secção: o de que, em verdade, não há razão para supor que, biologicamente falando, e ainda cambiantes e incoerentes, nossas intuições e emoções morais sejam idênticas para todos os indivíduos. Em certo sentido, parece até intuitivo que se deva presumir exatamente o contrário. Desde logo, um teorema da genética das populações nos assegura a diversidade biológica dentro de qualquer clã darwiniano. Conseqüentemente, podemos estar razoavelmente seguros de que, no que se refere às suas raízes biológicas – e já nos ocupamos do assunto introduzindo a necessidade da devida cautela –, nossas intuições e nossas emoções morais são, até certo ponto, diversas: nem todos os indivíduos da espécie Homo sapiens compartimos exatamente as mesmas (Singer, 1999; Browne, 1998; Atahualpa Fernandez, 2006).
Mais patente ainda se faz este problema quando consideramos os valores, as intuições e as emoções morais culturalmente modeladas. Se há um sentido em que se pode dizer que a vergonha (que se refere ao “não bom” – Tugendhat, 1997 e 1988; Domènech, 1989) é uma emoção moral universal, entanto que biologicamente entranhada (Demócrito apresentou a aidesthai autón, a vergonha de si próprio, como origem e fundamento de toda a ética), de nenhuma maneira cabe dizer o mesmo da emoção moral da culpa (relativa à violação do “tem de”), que tem um caráter de todo ponto cultural e é, civilizatoriamente falando, demasiada paroquiana (Gibbard,1990). De fato, nem sequer dentro de determinada cultura há de se pressupor homogeneidade nos valores, nas intuições e nas emoções morais de seus membros. As sociedades estão atravessadas por conflitos, escindidas em interesses de classe social e de outros tipos, crescentemente manifestos. É de se temer que os valores, as intuições e as emoções morais estejam, senão modeladas, (mas sim) pelo menos marcadas por esses interesses desencontrados.
Mas se o cultivo da racionalidade jurídica (e epistêmica) consiste em boa medida em corrigir os traços e em reparar os defeitos de desenho do aparato cognitivo que nos foi legado pela biologia e pela tradição cultural, então essa diversidade , que seria fatal para uma associação de robinsons e, muito especialmente, para racionalizar e despersonalizar (sem inibir a subjetividade) o trabalho interpretativo, longe de ser um inconveniente se converte em uma ferramenta de refinamento e melhora de primeira ordem em uma comunidade fundada no uso público da razão. Queremos dizer, tomados por separado, os inconvenientes de dois traços cognitivos contrapostos se acumulam e resultam danosos para quem os albergam: postos em comum, dois traços contrapostos tendem a anular-se. Tomados por separado, duas ferramentas defeituosas têm rendimentos defeituosos; postas em comum, não é improvável que alguns de seus defeitos resultem complementários, e que uma sirva para reparar e melhorar a outra.
Portanto, e à vista de tudo isso, a questão principal passa a consistir no fato de saber se é possível propor e defender, no âmbito das teorias sociais normativas e muito especialmente do direito e de seu processo de realização, sem se avilanar nem padecer de ingenuidade, o denominado critério do “equilíbrio reflexivo”[17] . Vejamos por partes.
Para começar, cabe recordar que o critério do equilíbrio reflexivo proposto por John Rawls (1971) sustenta que as teorias normativas, e em particular, as teorias sociais normativas, são suscetíveis de contrastação com uma peculiaríssima classe de fatos: a de nossas intuições morais ( e como se verá mais adiante , um dos critérios básicos articulados e propostos em nossa argumentação radica no fato de que também o resultado da interpretação jurídica – nossos discursos jurídicos – é suscetível de ser contrastado com essa mesma classe de fatos).
Depois, a diversidade biológica, o fato de que nem todos os humanos tenham exatamente as mesmas intuições morais de raiz biológica (para não falar das modeladas pela cultura) – o fato, por exemplo, de que nem todos os humanos experimentem a emoção da vergonha com a mesma intensidade – , não representa um problema insolúvel:
a) primeiro, porque não são radicalmente diversas ao ponto de impedir ou comprometer seriamente os processos de deliberação comum; e parece firme a conclusão de que isso é assim, entre outras razões de peso, pela muito evidente (razão) de que uma espécie essencialmente social como a nossa não haveria conseguido prosperar de outro modo ;
b) segundo, porque pode, inclusive, representar uma vantagem se levamos em conta a possibilidade de que nossos valores e nossas intuições morais individuais sejam incoerentes ou estejam dificilmente articuladas; pois das duas teses juntas ( a dos “defeitos” de nossas intuições e a da diversidade das mesmas e de nossos valores), segue-se que haverá também certa diversidade na distribuição dos “defeitos”, o que abre uma potente via para a mútua correlação destes ( podemos servir-nos –já dissemos antes- de duas ferramentas diversamente defeituosas para reparar ou mitigar com uma os defeitos da outra).
Por essas razões, o equilíbrio que se deve buscar entre nossas teorias normativas e nossas intuições morais tem de ser um equilíbrio reflexivo, isto é, um equilíbrio de ida e volta. Nossas teorias normativas (ou nossos discursos jurídicos) devem ser a satisfação de nossas intuições (é mais: em boa medida, o que tratam de fazer é captar adequadamente o núcleo de nossas intuições)[18] ; mas tampouco há de se descartar que, uma vez ordenadas e sistematizadas nossas intuições morais por uma teoria normativa (ou discurso jurídico) consistente e informativa, esta nos ajude a ver as limitações ou as incoerências dessas intuições, cominando-nos a emendá-las e ainda a podá-las .
E o fato de que seja possível emendar e podar nossas intuições não implica que possamos reduzir o caráter da sistematização teórica do complexo de intuições com que está dotada a arquitetura cognitiva humana em diversos domínios (o caráter folk) das teorias sociais normativas. Ocorre simplesmente que as intuições arraigadas em nossa arquitetura cognitiva, moral e emocional estão verossimilmente regimentadas em módulos ou domínios específicos (funcionalmente independentes), sempre que entendamos estes como redes neuronais que enlaçam zonas diversas do cérebro. (Hirschfeld e Gelman,1994; Barkow,Cosmides e Tooby,1992).
Ao aplicar a essas intuições esquemas gerais ou universais de raciocínio, podemos tratar de transcender essa regimentação e buscar uma coerência intra-específica. Trata-se de um exercício de distanciamento intelectual com relação aos domínios específicos em que estão estruturadas nossas intuições – morais ou de outro tipo –, de um exercício no qual se desprega uma intencionalidade de segunda ordem. Esta, em qualquer caso, poderia ser uma das justificações psicológicas mais profundas da idéia segundo a qual não há vida moral ou jurídica, nem bom conhecimento, sem intencionalidade de segunda ordem (sem preferências sobre preferências, ou sem crenças sobre crenças)[19].
Por esta forma, o uso público da razão e o equilíbrio reflexivo se alcançaria idealmente quando o resultado de nossa interpretação, justificação e aplicação do direito acabasse casando com nossas intuições, após um período mais ou menos dilatado de reflexão (pública) e emenda mútua entre livres que se reconhecem como iguais em dignidade e
Em resumo: admitindo que os resultados de nossas interpretações são suscetíveis de contrastação com a peculiaríssima classe de fatos das intuições e emoções morais (e que nos proporciona ou determina o repertório de nossas primeiras conjeturas e hipóteses), nossas intuições, emoções e sentimentos morais, inatos e adquiridos, constituem a pedra de toque dos discursos jurídicos. As emoções morais jogam o mesmo papel no direito que as observações empíricas na física. Por muito plausível que resulte uma teoria física, se contradriz a nossas observações, tanto pior para a teoria física. E por muito eloqüente que seja uma interpretação jurídica, se a partir dela resultam conclusões ou discursos contrários a nossas intuições e sentimentos morais, tanto pior para a interpretação jurídica. Se uma interpretação jurídica conduz a resultados que chocam frontalmente com minhas emoções, revisarei a interpretação, não as emoções. No melhor dos casos, chegaremos a um equilíbrio reflexivo entre interpretação e sentimentos.
Em nossa reflexão moral se dá um processo contínuo em que nossas emoções guiam a nossas interpretações e nossas interpretações educam a nossas emoções. Por vezes, contudo, colocar nossas emoções morais sobre a mesa não constitui nenhuma panaceia ético-jurídica, não conduz por si mesmo a nenhum acordo e em ocasiões pode inclusive resultar contraproducente e arriscado. Nesses casos, o remediar essa situação implica que ditas emoções passem pelo crivo de uma reflexão moral mais demorada: de uma reflexão eticamente comprometida com o imperativo segundo o qual o direito deve ser manipulado de tal maneira que suas conseqüências, sempre compatíveis com a maior possibilidade de evitar ou diminuir o sofrimento humano, permitam a cada um viver com o outro na busca de uma humanidade comum, isto é, com a criação de um modelo sócio-institucional livre, justo e solidário que permita a constituição de uma comunidade de homens livres e iguais unidos por seu comum, legítimo e compartido submetimento ao direito e em pleno e permanente exercício de sua cidadania.
Seja como for, o certo é que, com frequência, nossos sentimentos respondem a um processamento da informação mais minucioso e profundo e não por inconsciente menos sofisticado que as ideologias e teorias “conscientemente” articuladas. Muitas das aberrações de nosso tempo se devem à desativação de nossos sentimentos de compaixão e empatia e à aplicação implacável de teorias e ideologias aprendidas nos livros. Em qualquer caso, o ser um bom intérprete tem mais que ver com os sentimentos, as emoções, as atitudes e disposições do que com o conhecimento de (ou de acordo com) alguma abstrusa teoria jurídica.(Mosterín, 2006).
4. Racionalidade jurídica revisada
Assim pois, em resolução, a noção de “racionalidade” nas ciências sociais normativas tem sido objeto , em nossos dias, de intensa discussão , controvérsia e revisão. E o panorama que se acaba de esboçar basta seguramente para mostrar, com algum detalhe, o vínculo entre “realização” ( interpretação, justificação e aplicação) do direito e o problema da “racionalidade” humana. E por mais insólito que isso possa parecer, já não mais deveria constituir nenhuma surpresa ou ameaça aos positivistas, hermeneutas ou analíticos de plantão. Se o poder da ciência (e particularmente da neurociência) consiste precisamente em sua capacidade de verificar objetivamente a consistência de muitas subjetividades individuais, decifrar ou entender o problema da intricada passagem da iniludível e provisória antecipação do resultado (da pré-compreensão) a sua definitiva motivação pode subministrar as evidências necessárias sobre a natureza das zonas cerebrais ativadas e dos estímulos cerebrais implicados no processo de interpretar e decidir, sobre o grau de envolvimento pessoal dos intérpretes e os condicionantes culturais em cada caso concreto, assim como sobre os limites da racionalidade, do equilíbrio reflexivo, da criatividade e o grau de influência das emoções e dos sentimentos humanos na formulação e concepção acerca da “melhor decisão”.
Nos últimos cinquenta anos, graças ao melhor conhecimento que temos sobre o funcionamento do cérebro e os processos que regulam a tomada de decisões das pessoas, se há chegado à conclusão de que áreas cerebrais – por exemplo, o hipotálamo e a amígdala- que estão encarregadas de elaborar e modular as emoções, também estimulam as neuronas especializadas em raciocinar, e vice-versa. Como resultado , existe uma coerência entre o que sentimos e o que pensamos.
De fato, a regra é a de que resulta muito difícil, senão impossível, involucrar-nos em uma atividade cognitiva na qual não intervenham as emoções. Quando um operador do direito (particularmente o juiz) processa o que é (ou deveria ser) material emocional como se não tivesse conotação alguma, sua conduta se assemelha muito a de um indivíduo psicopata: sua atividade se caracterizaria por uma ativação insuficiente das regiões cerebrais associadas à emoção, e por uma integração deficiente dos processos cognitivos e emocionais. Para um operador desse tipo, em que as regiões cerebrais que intervêm no processamento e na produção de material emocional (especialmente o sistema límbico) não se ativa na mesma medida que no resto dos indivíduos, o que deveria ser necessariamente uma experiência cognitiva/emocional, não passa de ser um fato exclusivamente cognitivo ou intelectual: um psicopata com toga[21].
Poderia argumentar-se que boa parte da razão e a emoção dos operadores do direito é instrumental e se deve na mesma medida a sua natureza e às forças sociais e ambientais que contribuem a induzir a determinados tipos de discursos jurídicos. Mas não se trata somente disso: as valorações pessoais de um determinado caso concreto não são simplesmente reações individuais a um acontecimento específico, porque a emoção não é somente uma reação ao fato em si senão, ademais, uma comunicação dirigida aos outros, provocando adaptações da conduta de uma forma mais direta; quer dizer, as emoções – que tomam em conta as perspectivas e posturas das outras pessoas com relação às nossas valorações – são adaptações ou comunicações (ou ambas as coisas) que, em virtude de seu significado percebido, servem para provocar reações específicas por parte dos demais.( Parkinson, 2007).
Daí que ao operador jurídico, enquanto mediador na comunidade e para a comunidade da idéia de direito e da justiça que o fundamenta, tem elevada à máxima potência a exigência e a responsabilidade ética de criar e manter, por meio de seus discursos jurídicos, a credibilidade (racional e emocional) na qual deve descansar a inabalável confiança dos cidadãos acerca de sua atividade: uma manifestação indispensável de virtude e excelência de caráter.
É certo que já se construíram grandes edifícios de teoria e metodologia jurídica que foram criticados e defendidos, submetidos à revisão e ampliados pelos melhores métodos de investigação racional, e dentro desses artefatos do pensamento humano figuram algumas das criações mais extraordinárias da cultura humana e jurídica. Uma operação semelhante realizada com o ponto de vista posto na possível objetividade de alguns princípios ou postulados do direito poderia fazer frente, talvez com garantias, às desviações cientificistas e/ou relativistas da ciência jurídica. Mas em realidade nos enfrentamos com o caso contrário.
Primeiro, porque um enfoque excessivo no aspecto “racional” do processo de realização do direito nada mais faz do que oferecer um panorama pouco realista sobre seu modo de entrelaçar-se com o entorno social; segundo, porque insistir na neutralidade emocional e na ilimitada objetividade do operador jurídico não somente tem servido para reduzir o intérprete a um puro técnico de aplicação mecânica das normas senão que também para dissimular, de forma aberta e vergonhosa, o inconcusso fato de que as interpretações e decisões que tomam seres humanos para modificar as expectativas de outros homens estão impregnadas até a medula de emoções e suas conseqüências. Em definitivo, as emoções são o humano na realização do direito, o sentimento que nos permite exercer nossas melhores capacidades e demonstrar nossa valia como seres humanos, e não há nenhuma técnica, por mais sofisticada que se apresente, que seja capaz de eliminá-las[22].
As fantasias hiper-racionalistas sobre a racionalidade formal do processo de realização do direito já entraram em crise há alguns anos: à disputa clássica sobre o papel das emoções e dos juízos de valor na tarefa interpretativa sucedeu o problema dos múltiplos fatores e influências, inatas e adquiridas, que condicionam nosso processo de interpretação e de decisão. O problema, contudo, é que no campo jurídico poucas vezes se prestou a devida atenção à evolução da natureza humana, à estrutura e ao funcionamento material do cérebro humano como fonte das predisposições e dos prejuízos que permitem levar a cabo toda e qualquer tarefa interpretativa.
Não há que estranhar-se, pois, que o processo de realização do direito seja uma das mais problemáticas e contestadas publicamente de todas as empresas jusfilosóficas. Não está informada por nada que seja reconhecível como autêntica teoria nas ciências naturais: o direito carece das bases de conhecimento verificável da mente, do cérebro e da natureza humana necessárias para obter e produzir predições de causa e efeito e juízos justos baseados nelas. É possível, por que não dizer, que a maior parte das propostas de fundamentação teórica e metodológica do direito que já se formularam ao longo da história pequem por sua inviabilidade em função dessa desatenção com relação à realidade biológica que nos constitui, ou seja, pela falta de precisão de sua adesão à natureza humana.
As ciências cognitivas e a neurociência parecem ser claramente as disciplinas que, a longo prazo, nos permitirá encontrar vias altamente sofisticada para entender as aptidões psicológicas específicas do ser humano à hora de formular juízos de valor, interpretar, justificar e decidir. É definitivamente necessário dar-se conta de que em todos os casos a interpretação e a aplicação do direito está causada por eventos cerebrais. E é precisamente por essa simples razão que estamos firmemente convencidos de haver chegado o momento de começar a operar com o que já sabemos sobre o cérebro e como isso pode vir a influenciar o atual modelo teórico e metodológico da ciência do direito. Para dirigir-se a este, parece razoável admitir que devemos partir da premissa de que a capacidade moral e ético-jurídica é (ou deve ser) contemplada como um atributo do cérebro humano, circunstância esta diretamente relacionada com o problema do processo de tomada de decisão em todas as suas dimensões. E a compreensão do comportamento humano oferecido até agora pelas ciências cognitivas e a neurociência é perfeitamente compatível com esta perspectiva.
Esta é apenas uma das muitas formas por meio das quais essas disciplinas, quanto às emoções imperfeitas e aos fatores de irracionalidade que condicionam nosso processo de decisão ou o que realmente sentimos e experimentamos na tarefa de interpretar, podem trazer maior contribuição para o desenho e a elaboração de discursos jurídicos ou decisões mais justas do que a ilusão sobre a racionalidade ou emoções ideais que gostaríamos que motivassem a atividade interpretativa: não há pior prejuízo que imaginar que poderíamos raciocinar sem emoção (Todorov, 2008).
Por certo que no que diz respeito à neurociência, não nos encontramos no fim da nossa compreensão sobre o cérebro, senão que começamos agora a nossa viagem. Durante as últimas três décadas, aprendemos mais sobre o cérebro do que em toda a história registrada, mas ainda há muito mais para aprender. Troço a troço experimental a neurociência vai conformando nossa concepção do que somos; e aos poucos, o peso dessas evidências nos leva cada vez mais a aceitar que é o cérebro o que sente, pensa, valora, interpreta e decide.
Mas se os novos desenvolvimentos na área da neurociência são muito excitantes, o diálogo que começou entre neurocientistas, cientistas cognitivos, filósofos e juristas é ainda mais excitante. Pela primeira vez, ouvem-se diálogos consistentes entre aqueles que estão conduzindo a investigação e os filósofos e operadores do direito que estão procurando aplicar os resultados da investigação. A informação sobre o cérebro e sobre o modo como este funciona não é apenas meramente interessante, mas antes é e constitui um elemento essencial dos fundamentos sobre os quais deveríamos basear as nossas interpretações e decisões jurídicas, morais e políticas. O cérebro tem importância porque a nossa existência tem importância.
Em resumo, nosso argumento é no sentido de que, diante do atual panorama metodológico acerca do reconhecimento, polêmico em relação com a metodologia tradicional, do fato de que os operadores do direito (especialmente os juízes), em muitos casos e até um certo grau, produzem direito, os novos descobrimentos provenientes das ciências cognitivas e da neurociência permitirão uma melhor compreensão da mente e do cérebro e trarão consigo a promessa de cruciais aplicações práticas no âmbito da interpretação e aplicação jurídica: constituem uma oportunidade para refinar nossos juízos ético-jurídicos e estabelecer novos padrões e critérios metodológicos sobre cimentos mais firmes e consistentes.
Sem olvidarmos, claro está, de outros aspectos distintivos da natureza do comportamento humano à hora de interpretar e decidir sobre o sentido da justiça concreta e a existência de universais morais determinados pela natureza biológica de nossa arquitetura cognitiva (neuronal). Afinal, é o cérebro que nos permite dispor de um sentido moral, o que nos proporciona as habilidades necessárias para viver em sociedade, para interpretar, tomar decisões, solucionar conflitos sociais e o que serve de base para as discussões e reflexões filosóficas mais sofisticadas sobre direitos, deveres, justiça e moralidade.
Seja como for, nada do que dissemos terá alguma relevância prática sem a mediação de operadores jurídicos ( e muito particularmente de juízes) criativos, com alto nível de inteligência efetiva, aberto à experiência, com liberdade para superar inibições restritivas e dogmáticas, com sensibilidade ante as injustiças, com flexibilidade cognitiva e emocional, com independência de pensamento e ação, e com o compromisso inabalável e inegociável de promover a vida humana concreta de cada sujeito-cidadão de forma livre, igualitária e fraterna em uma comunidade de vida legitimamente compartilhada.
Afinal, virtuoso é o operador do direito a quem a dificuldade ou o esforço não lhe impedem empreender algo justo e valioso, nem lhe fazem abandonar o propósito a metade do caminho. Atua, pois, “apesar das” dificuldades, e guiando sua ação pela justiça, que é o último critério da virtude.
* Pós-doutor
** Acadêmico de Direito/Unaerp e Bolsista no Laboratorio de Sistemática Humana de
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[1] Para a consulta da referência bibliográfica relativa aos autores citados neste artigo cfr.: Atahualpa Fernandez, Direito e natureza humana. As bases ontológicas do fenômeno jurídico, Curitiba, Ed. Juruá, 2007; Atahualpa Fernandez, Argumentação jurídica e hermenêutica, Campinas: Ed. Impactus, 2006; Atahualpa Fernandez e Marly Fernandez, Neuroética, Direito e Neurociência, Curitiba: Ed. Juruá, 2008.
[2] A filosofia da ciência se ocupa, óbvio é dizê-lo, da ciência, mas não desde qualquer ângulo, senão da perspectiva da racionalidade. Um dos supostos mais comuns nas ciências sociais normativas – mil vezes mais comum do que a primeira vista possa parecer – é o suposto de intencionalidade ou racionalidade dos humanos. A filosofia da ciência se interessa muito primordialmente pela racionalidade “epistêmica”, pela correta eleição das crenças dos humanos. Por sua parte, os cientistas sociais (e muito especialmente os operadores do direito), em seus supostos de racionalidade da ação humana, costumam ocupar-se da racionalidade de um modo mais global, a qual abarca para eles a racionalidade epistêmica (ainda que de um modo muito marginal), a racionalidade “prohairética” (a racionalidade dos desejos), que interessa a todo mundo mas que deveria interessar particularmente aos filósofos morais e jurídicos, e – sobretudo – a racionalidade da ação propriamente dita (que tem que ver com a eleição de condutas dados uns desejos , umas crenças e umas restrições). Seja como for, a idéia de “racionalidade” humana é controvertida. E embora não corresponda neste trabalho apresentar um listado completo acerca das discussões que gera este conceito, pode-se dizer que o termo racionalidade costuma aplicar-se a uma grande variedade de supostos e, ao menos, em três contextos diferentes. No primeiro, foi usado para “explicar” decisões. Atribuir a condição de racional à decisão de um agente supõe a identificação das razões pelas quais esse sujeito tomou essa decisão. A racionalidade aqui tem um caráter descritivo das razões pelas quais um indivíduo decide atuar. Em geral, o sentido explicativo da racionalidade costuma estar acompanhado de um sentido preditivo acerca das decisões futuras de um agente. No segundo contexto, a idéia de racionalidade se utiliza para “avaliar” ações. Nesse sentido, dizer que uma ação ou decisão é racional ou irracional é estabelecer respectivamente um valor positivo ou negativo, de controle, dessa decisão ou ação. No terceiro contexto, a noção de racionalidade aponta a questões estritamente técnicas. Neste caso, o único que se postula é que dada uma eleição com um conjunto de informações, e tratando-se de conformar uma única ordenação do conjunto de alternativas, deve-se proceder de uma determinada maneira. Para uma análise sobre a racionalidade humana, cfr. Domènech, 1989 e Mosterín, 1987; sobre justiça e racionalidade, MacIntyre, 2001.
[3] Note-se que o direito, naturalmente, é um belo exemplo de cultura que emerge quando as pessoas reúnem e acumulam seus conhecimentos e quando instituem convenções para coordenar seus esforços , julgar e resolver seus conflitos: um fundo comum de inovações normativas e sociais que os indivíduos acumulam para ajudá-los na vida, e não uma coleção de símbolos arbitrários que por acaso surgem para eles ou se lhes impõem ilimitadamente sem qualquer tipo de constrição cognitiva inata. O modo como o direito pode ser compreendido em cerca de uma infinidade de níveis de análises relacionados, do cérebro e da evolução aos processos cognitivos dos indivíduos e aos vastos sistemas culturais, mostra como a cultura e a natureza humana podem relacionar-se, uma vez que aquela depende sobremaneira de um conjunto de circuitos neuronais responsável pela proeza que denominamos aprendizado. De fato, as possibilidades de conexões em outras áreas do conhecimento humano são abundantes. O senso moral pode lançar luz sobre códigos legais e éticos. A psicologia humana ajuda-nos a compreender nossas motivações, nossas disposições normativas e sócio- políticas. A mentalidade da agressão e a tendência à cooperação ajuda a entender a guerra , as estratégias e os mecanismos de resolução de conflitos. As diferenças entre sexos são importantes para as políticas de gênero. Nossas intuições e emoções morais podem delimitar as condições de possibilidade e o potencial da capacidade de consenso dos discursos jurídicos. Racionalidade e emoção humanas podem lançar luz sobre nossa compreensão acerca do processo de interpretação, justificação e aplicação do direito. Em resumo, nossa compreensão de nós mesmos e de nossos artefatos culturais somente pode ser enriquecida pela descoberta de que nossa mente se compõe de intricados circuitos neuronais para pensar, sentir e aprender, em vez de tábuas rasas desenhadas e modeladas exclusivamente pela cultura.
[4] De fato, esta dicotomia entre emoção e cognição ( e entre as regiões cerebrais responsáveis de cada uma) resultou ser completamente falsa, uma idéia errônea que Damasio (1994) denominou de o “erro de Descartes”. Nesse sentido, Damasio (1994) descreve o trabalho efetuado com muitos de seus pacientes com lesões cerebrais, freqüentemente no lobo frontal, que perderam sua capacidade de resposta emocional normal e, por conseguinte, converteram-se em seres incapazes de manifestar emoções.Em lugar de se converter em seres inteiramente racionais, dispostos a tomar decisões sem as fastidiosas distrações provocadas pela emoção, são pessoas praticamente paralisadas pela indecisão; a obrigação de tomar determinações, por pequenas e insignificantes que sejam, transforma-se em um dilema que só podem resolver quando se empenham a fundo e passam um largo tempo refletindo sobre a seleção das opções possíveis de serem adotadas. Não precisa dizer que uma existência normal se torna praticamente impossível para esses enfermos. Não seria assim para o resto dos humanos que não nos damos conta da (ou procuramos dissimular a) envergadura emocional contida em um ato de tomada de decisões, porque para nós não existe a implicação de umas conseqüências passadas e, quando se trata de preferências, somos capazes de simplesmente reagir de acordo com nossa aptidão ilimitada de sentir emoções segundo a interpretação e denominação que façamos de nossas respostas fisiológicas. Em resumo, quem não tem emoções é um “idiota racional”, ou seja, a caricatura desenhada por Sen para identificar a pessoa egoísta de curta visão: um idiota incapaz de avaliar o efeito de suas ações sobre outras pessoas. Registre-se que, neste particular, Damasio, LeDoux , economistas como Robert Frank e Kahneman, biólogos como Robert Trivers e psicólogos como Jerome Frank chegaram a conclusões parecidas, a partir de provas diferentes – uma “coincidência” notável.
[5] Dito de outro modo, a racionalidade humana é altamente dependente de emoções sofisticadas. Nosso raciocínio só funciona porque nosso cérebro emocional funciona tão bem. A imagem proposta por Platão do cocheiro que controla as bestas desenfreadas da paixão pode exagerar não apenas a sabedoria, mas também o poder do condutor. David Hume estava mais próximo da verdade e se encaixa melhor às descobertas neurocientíficas quando disse: “A razão é, e só deveria ser, escrava das paixões, não podendo jamais almejar outra coisa, exceto servi-las e obedecê-las”. Enfim, razão e emoção precisam trabalhar juntas para criar o comportamento inteligente, mas a emoção é responsável pela maior parte do trabalho. (Haidt, 2006; Damasio, 1994; Gazzaniga, 2005; LeDoux, 1998; Perna, 2004).
[6] Devido ao fato de que a pressão evolutiva não incrementou (de forma “ótima”) a racionalidade humana, qualquer construção de uma teoria jurídica de realização do direito deve (ou pelo menos deveria, coerente e prudentemente) implicar um redimensionamento da compreensão psico-biológica do próprio acesso da razão e sobretudo da própria idéia de racionalidade. Dizendo de maneira menos generosa, deveria partir da rejeição de qualquer concepção acerca da racionalidade, objetividade e neutralidade causada pelo desconhecimento do funcionamento de nosso cérebro e de nosso passado evolutivo – muito especialmente no que se refere às evidências experimentais relacionadas com os correlatos cerebrais que intervêm no processo cognitivo de formular juízos morais para decidir entre o justo ou injusto. Neste particular, importa considerar o fato de que parte-se da premissa de que em questão de racionalidade humana há sempre dois componentes que se entrelaçam: as limitações da mente humana e a estrutura dos ambientes nos quais a mente funciona. Isto é, de que ao modelo de juízo humano e aos processos de tomada de decisões deveria ser agregado o que em realidade sabemos sobre o funcionamento e as capacidades da mente humana, mais bem que sobre presunções ou capacidades fictícias.Trata-se, em síntese, de um modelo muito distinto do modelo tradicional de racionalidade ilimitada e de otimização adotado pela ciência cognitiva (transportada para as ciências sociais normativas) que vê a mente humana como dotada de poderes sobrenaturais ou de poderes demoníacos de razão: de um conhecimento ilimitado da realidade e do ambiente, assim como de toda a infinita eternidade para tomar decisões. O que em realidade a denominada “bounded rationality” toma em consideração é o entendimento do processo de tomada de decisões em um mundo verdadeiro, onde a mente humana, funcionando como uma caixa de ferramentas adaptável (“adaptive toolbox”), toma decisões com os recursos realistas mentais de que dispõe e condicionada pelas iniludíveis limitações de tempo, de informação e de conhecimento. Pois bem, sobre a “bounded rationality”, a “ecological rationality” e a mente como “adaptive toolbox”, pode-se ver o trabalho desenvolvido pelo grupo de investigação ABC do Instituto Max Planck de Berlim, dirigido pelo prof. Gerd Gigerenzer : Gigerenzer, G. & Tood, P.M. (1999) Simple heuristics that make us smart.New York: Oxford University Press. Particularmente para uma análise acerca da “racionalidade diferida” (time-shifted rationality- TSR), relativa aos tratos cognitivos evolutivos que eram adaptativos em um ambiente ancestral mas que conduziu, em entornos temporalmente sucessivos ( mas com a persistência de características historicamente adptativas), a comportamentos irracionais ou não adaptativos no ambiente das sociedades contemporâneas, cfr., por todos, Jones e Goldsmith, 2004 e Jones, 2001. Já sobre o papel da heurística na elaboração e aplicação do direito, cfr. Haidt et al., 2006.
[7] Com o aponte de que, todo o demais, delimita com amplitude as fronteiras dentro das quais acontecerá ulteriormente, e em cada caso, a opção elegida, mas sem proporcionar ainda uma autêntica pauta decisória.
[8] Introduzido em psicologia, “satisfazer” ou “ser suficiente” significa que se tomou a primeira eleição satisfatória encontrada de todas as que se percebem e são razoavelmente alcançáveis a curto prazo, em contraposição a imaginar por adiantado a eleição ótima e buscá-la até que se a encontre (Gigerenzer e Tood, 1999; Fernandez, 2006). Segundo o modelo satisfatório, é mais provável que um jovem que deseje casar-se proponha matrimônio à candidata mais atrativa entre as jovens casamenteiras conhecidas e que não busque durante muito tempo uma companheira ideal preconcebida. Em contraste com a otimização – obter o melhor resultado – trata-se de obter um resultado que seja bastante bom, quer dizer, que seja satisfatório. Com efeito, as afirmações de “otimicidade” têm um modo de desvanecer-se: não é necessário nenhum descaro para admitir modestamente que, dadas nossas limitações e as características ubíquas da tomada de decisão em tempo real, aquela que era considerada a melhor solução que poderíamos encontrar é, por vezes, praticamente inalcançável. Da mesma forma, às vezes se comete o erro de supor que há, ou deve haver, uma perspectiva única (melhor ou mais elevada) desde a qual avaliar a racionalidade ideal: a ser assim, sofreria interminantemente o “intérprete ideal” o problema demasiado humano de não ser capaz de recordar e processar certas considerações cruciais quando estas seriam as mais reveladoras e efetivas para resolver um caso concreto de forma “ótima”. De certo modo, a assunção consciente dessa perspectiva evitaria, em muitos casos, a erupção de “dissonâncias cognitivas” na psique do sujeito-intérprete. Suponhamos que prefiro A a B sempre e em qualquer caso. Mas o contexto no que me movo – meu conjunto exterior de oportunidades – é tal que A ( no caso, a “solução ótima”) é praticamente impossível, mas B, ao contrário, é de fácil acesso.A teoria da dissonância cognitiva (na qual as pessoas mudam qualquer opinião a fim de manter uma auto-imagem positiva), como um dos mecanismos psicológicos adaptativos, prediz, então (sob determinados supostos), que, a partir desse momento, se desencadear-se-ão processos em minha mente que acabarão por me fazer preferir B a A, sem que intervenha nele decisão consciente alguma de minha parte. A modificação de meu gosto se deve a mecanismos causais ocultos – ou quase ocultos – à minha consciência, e esse câmbio se produz no mesmo plano ou ordem de preferências: acabarei por me adaptar a meu contexto de um modo “espontâneo”, automático, sem que se possa dizer que o tenha feito autonomamente, senão heteronomamente, isto é, forçado pelas circunstâncias exteriores e sem me aperceber de que fui determinado por elas. Bem distinto é o caso em que o contexto no qual me desenvolvo frustra meus desejos (de primeira ordem) de A, mas tenho uma segunda ordem de preferências que me aconselha preferir (prioritariamente) B a A quando A não é acessível, ou melhor ainda, que me aconselha conformar-me com o disponível em cada momento e suprimir ou extinguir os desejos impossíveis. As constrições exteriores não haveriam conseguido mudar – heteronomamente – meus gostos, mas eu me adaptaria igualmente bem a elas, e de um modo perfeitamente consciente do processo psíquico seguido. Ora, no caso da adaptação (ou busca de consistência) pela primeira via, se dariam provavelmente efeitos colaterais perniciosos para minha saúde mental (sentimentos mais ou menos difusos de frustração, acaso pequenas – ou grandes, segundo a importância atribuída a A – atitudes neuróticas,etc.); é mais improvável que isso ocorrera no segundo caso e, se ocorresse, ao menos estaria consciente a respeito do acontecido. Tal é a diferença entre ter uma conduta aparentemente virtuosa e outra plena e conscientemente permeada pela virtude, ou seja, entre adaptar-se – buscando a coerência de pensamento e comportamento – por dissonância cognitiva e remodelar o conjunto interior de oportunidade, entre abandonar à deriva nossas preferências e possuir umas metapreferências (que atendem a todas as razões) que governam serenamente nosso trato com o mundo exterior ( pondo sob controle as preferências de primeira ordem – que obedecem, certamente, a razões, mas não a todas as razões ) . Quanto sofrimento humano deixa sua raiz mais profunda em um conflito entre nossas ordens de preferências.
[9] Segundo Pinker (2002), todo mundo tem uma teoria sobre a natureza humana. Todos temos de prever o comportamento dos demais, o qual significa que todos necessitamos umas teorias sobre o que é o que move às pessoas a adotar determinadas condutas. Uma teoria tácita da natureza humana – segundo a qual o comportamento é causado por pensamentos e emoções dos causantes da conduta- é ínsita ao modo como concebemos a pessoa. Damos corpo a esta teoria analisando nossa mente e supondo que nossos semelhantes são como nós, assim como observando o comportamento das pessoas e formulando generalizações. Ademais, também absorvemos outras idéias de nosso ambiente intelectual: da experiência dos expertos e da sabedoria convencional do momento. Nossa teoria sobre a natureza humana é a fonte de grande parte do que ocorre em nossa vida. A ela nos remitimos quando queremos convencer ou ameaçar, informar ou enganar. Aconselha-nos sobre como manter vivo nosso matrimônio, educar aos filhos e controlar nossa própria conduta. Seus supostos sobre a aprendizagem condicionam nossa política educativa; seus supostos sobre a motivação dirigem as políticas sobre economia, justiça e delinquência. E dado que delimita aquilo que as pessoas podem alcançar facilmente , aquilo que podem conseguir somente com sacrifício ou sofrimento, e aquilo que não podem obter de modo algum, afeta a nossos valores: aquilo pelo que pensamos que podemos lutar razoavelmente como indivíduos e como sociedade. As teorias opostas da natureza humana se entrelaçam em diferentes maneiras de viver e em diferentes sistemas políticos, e tem sido causa de grandes conflitos ao longo da história. Por exemplo, se tomo minha filha como uma pessoa “corrupta” e “caída”, incapaz de ter bons desejos e de se comportar de acordo com estes, seguramente serei um pai aberrantemente desconfiado, ferinamente vigilante e desnaturadamente repressor ( e com este caráter desenharei as micronormas que regerão este tipo de relação familiar); ao contrário, se parto da premissa de que minha filha é capaz de eleger seus desejos, de aspirar por si mesma ao bem, de se automodelar e de se comportar segundo essa aspiração, seguramente serei um pai muito mais confiante, tolerante e infinitamente menos vigilante (e as micronormas que regerão essa relação terão um caráter de todo distinto das anteriores). Quando passamos de fatos específicos de indivíduos a generalizações acerca de grupos de indivíduos, a assunção de uma das premissas acima referidas passa a fazer uma abissal diferença quando do desenho do conjunto normativo que regulará as relações jurídicas (nas quais subjazem os vínculos sociais relacionais) entabuladas pelo homem no percurso de sua existência. (Atahualpa Fernandez, 2007).
[10] Dito seja de passo que longe do estabelecimento moderno da subjetividade como princípio determinante de conhecimento e de valoração, a hermenêutica nos mostra que a subjetividade não é mais que uma chispa na corrente da vida histórica, que pertencemos à história e que é no seio de uma tradição ou comunidade como nos compreendemos. De fato, na categoria da pré-compreensão – e estamos no primeiro dos três elementos fundamentais do modelo hermenêutico obtidos da hermenêutica geral e adaptados à complexidade do procedimento interpretativo (Zaccaria, 1984 e 1998) – a hermenêutica jurídica individualiza a primeira condição hermenêutica do compreender jurídico. A pré-compreensão põe em movimento o processo interpretativo, proporcionando ao intérprete uma primeira orientação e abrindo sua consideração ao conteúdo linguístico dos textos e dos fatos. É uma potencialidade de conhecimento que desemboca em sujeitos bem determinados com uma hipótese de possível significado que, deixando-se continuamente corrigir por sucessivas hipóteses, que adequem, melhorem e substituam a originária, pode conduzir a modificar a expectativa de significado com que o intérprete se aproxima a um texto. Sem embargo, como lembram Viola e Zaccaria (1999), seria gravemente restringido conceber a pré-compreensão em um sentido exclusivamente empírico-psicológico, reduzindo-a as hipóteses de partida que em um caso concreto ou em uma série de casos concretos efetivamente pôs em movimento o procedimento da compreensão. Se bem ligada ao intérprete individual chamado a aplicar a disposição abstrata a um caso concreto, a pré-compreensão não configura – devido a seu caráter estrutural, irredutível a uma mera dimensão empírica – um ato da subjetividade, um ato individual; sendo pelo contrário determinada sobre a base da participação em um “sentido comum”, é também o resultado de uma socialização profissional e de uma formação jurídica, de uma cadeia de interpretações precedentes que entram a constituir uma tradição comum. O horizonte de quem aplica o direito não é nunca puramente pessoal, senão que se inserta e deve medir-se em um horizonte geral de expectativa, do qual não se pode sair. Assim entendida, a pré-compreensão hermenêutica é o nexo do intérprete com o transmitido, que longe de ser pessoal, se apresenta como comum à sociedade inteira (Viola e Zaccaria, 1999).
[11] Para que fique claro, entendemos que o direito não é mais nem menos que uma estratégia sócio-adaptativa – cada vez mais complexa, mas sempre notavelmente deficiente – empregada para articular argumentativamente – de fato, nem sempre com justiça –, por meio de atos que são qualificados como “valiosos”, os vínculos sociais relacionais elementares através dos quais os humanos construímos sistemas aprovados de interação e estrutura social. Um artefato cultural que deve ser manipulado para desenhar um modelo normativo e institucional que evite, em um entorno social prenhado de assimetrias e desigualdades, a dominação e a interferência arbitrária recíprocas, garantindo uma certa igualdade material e, em último termo, estimulando e assegurando a titularidade e o exercício de direitos (e o cumprimento de deveres) de todo ponto inalienáveis e que habilitam publicamente a existência dos cidadãos como indivíduos plenamente livres (Atahualpa Fernandez, 2007).
[12] E uma vez que se parte da premissa de que nossa arquitetura cognitiva inata (assim como nossas intuições morais inatas) constitui o suporte antropológico de todo valor, não entranha dificuldade chegar a inferir que a luta pela satisfação da necessidade de segurança tenha sido um dos principais motores da história jurídica: a gêneses do ius civile tem lugar em Roma através de um ato de afirmação de segurança jurídica; e ao igual que no caso das Doze Tábuas, na Carta Magna se sustentou uma luta pela segurança jurídica com o propósito de obrigar ao poder a se reconhecer sujeito a certas restrições na direção dos assuntos públicos. Contudo, parece intuitivo que a segurança enquanto valor jurídico e artefato cultural, não é algo que se dê de forma espontânea, homogênea e com idêntico sentido de intensidade nos distintos sistemas normativos; sua função e alcance (enquanto função própria de nossas intuições morais inatas) dependerá das lutas políticas, das manipulações e das vicissitudes culturais de cada tipo de sociedade. Nesse sentido, a instituição judicial com seus objetivos a longo prazo – contribuir para a paz social, a certeza e a segurança jurídica e fortalecer a sociedade como uma empresa comum de cooperação – e a curto prazo – por termo ao conflito com a decisão – institucionaliza, encarnando-a no juiz – que é a condição institucional da imparcialidade do juízo e a quem cabe pronunciar “ a última palavra” respeito dessa estrutura fundamental da existência humana que é o conflito –, a relação com o outro e a dimensão dialógica da experiência ética em que se expressa a aspiração de viver sob o manto de instituições justas.
[13] Tudo isso para mostrar, em síntese, que:
[14] Sobre esta questão, as mais acreditadas dentre as teorias da argumentação jurídica se movem em um espaço intermédio que transita desde o “ultra-racionalismo” de um Dworkin – cujo juiz Hércules faz gala de uma invejável confiança na capacidade de sua razão – até o “irracionalismo” de um Ross, se merece tachar-se de irracionalista sua realista chamada de atenção sobre o fato de que as decisões jurídicas, ao igual que sucederia com qualquer outro gênero de decisão, dependem da vontade do sujeito das mesmas – neste caso, o juiz – ao menos tanto como de sua razão. E porque as razões e as soluções jurídicas “costumam sair a passear” – como alguma vez se disse – “por casal”, quando não por grupo ou manada, parece razoável supor que, sobre a delicada questão da tarefa de produzir, interpretar e aplicar o direito, a melhor alternativa seja a de adotar uma perspectiva mais realista sobre a psicologia (e a racionalidade) humana e comprometida com os estudos que se efetuam em outros campos do conhecimento humano distintos ao direito, como a ciência cognitiva, a genética do comportamento, a neurociência cognitiva , a primatologia e a psicologia evolucionista, entre outras destinadas a aportar uma explicação científica do cérebro, da mente e da natureza humana.
[15] O mesmo que a negativa a determinar o espaço teórico-positivo, sustentando, por exemplo, que toda realidade é realidade socialmente construída – e toda verdade, verdade serviçal e convencional –, equivale a abandonar por completo toda possibilidade de discussão gnoseológica racional.
[16] Note-se que uma objeção comum ao equilíbrio reflexivo é a de que é circular. Apela, por um lado, a nossas intuições para fundar as teorias normativas, mas logo usa essas mesmas teorias para corrigir nossas intuições. Esta objeção valeria também para um bom número de análises aparentemente circulares de fenômenos lingüísticos, epistemológicos, computacionais, jurídicos e sociais. Entre estes últimos está o fenômeno do “conhecimento comum” (eu sei que tu sabes que eu sei que tu sabes que eu sei que tu sabes, etc.), que é um suposto que parece imprescindível para a aplicação da teoria dos jogos aos problemas sociais. Quando esta objeção se faz tecnicamente refinada, sustenta duas teses: que qualquer coisa que pretenda rigor matemático deve poder reduzir-se à teoria de conjuntos, e que a única concepção coerente da teoria de conjuntos proíbe este tipo de circularidades (Domènech, 1998). Seja como for, esta idéia de equilíbrio reflexivo que parece permitir manter, em última instância, um certo sistema social com um grau razoável de segurança jurídica e de justiça, admitindo que esta deve ser assumida prioritariamente com relação a liberdade, a igualdade, a fraternidade e a certeza jurídica, isto é, com a eqüitativa distribuição e equilíbrio entre essas três grandes virtudes ilustradas e com possibilidade de uma digna convivência ética, em tudo compatível com nossas intuições morais mais fortes e expressivas (Atahualpa Fernandez, 2006).
[17] Desde logo, os participantes na empresa cognitiva, sobre compartir um conjunto de objetivos, compartem também – e sabem que compartem, é publicamente notório que compartem – um conjunto de regras do jogo. Por outra parte, à justificação dessas regras – a tarefa que aqui se propõe ao metodólogo – chega-se por meio de um “equilíbrio reflexivo”, e não há equilíbrios reflexivos “robinsonianos”, não há equilíbrios reflexivos sem o uso público da razão : nemo solus satis sapit. Esboçar e contrastar intuições e práticas, de um lado, e princípios, valores e normas sistematizadas, de outro, leva iniludivelmente a posta em comum dessas intuições e práticas e a livre discussão pública sobre o melhor modo de capturá-las conceitualmente e de justificá-las – ou criticá-las – normativamente.Daí a exigência de que todos os julgamentos sejam públicos e fundamentadas todas as decisões, isto é, na observação de Puigpelat Martí (1994), de que é a publicidade e a motivação que assegura racionalidade e, com isto, mais segurança às decisões. Na aguda advertência de Aulis Aarnio (1991): “Em uma sociedade moderna, a gente exige não só decisões dotadas de autoridade senão que pede razões. Isto vale também para a administração da justiça. A responsabilidade do juiz se converteu cada vez mais na responsabilidade de justificar suas decisões. A base para o uso do poder por parte do juiz reside na aceitabilidade de suas decisões e não na posição formal de poder que possa ter. Neste sentido, a responsabilidade de oferecer justificação é, especificamente, uma responsabilidade de maximizar o controle público da decisão. Assim pois, a representação da justificação é sempre também um meio para assegurar, sobre uma base racional, a existência da certeza jurídica na sociedade.(…) Por outra parte, é especificamente através da justificação como o decisor – sem que importe que se trate de um juiz ou de uma autoridade administrativa – cria a credibilidade na qual descansa a confiança que os cidadãos têm nele.”
[18] Graças às investigações psicológio-cognitivas realizadas nos últimos anos sobre o que se veio a chamar folk-science, ou seja, sobre a sistematização teórica dos complexos de intuições com que está dotada a arquitetura cognitiva humana em diversos domínios (geometria, física, biologia, psicologia, sociologia), estamos agora mais bem preparados para entender o que quer dizer “captar adequadamente o núcleo de nossas intuições”. Nesse sentido, a axiomatização de Euclides captou o núcleo de nossas intuições sobre a estrutura geométrica do espaço. Uma reivindicação da física de Aristóteles – entendida esta última como o intento de captar o núcleo de nossas intuições físicas – pode ver-se em McCloskey (1983); sobre biologia folk é sugestivo o livro de Atran (1999); sobre sociologia folk, sobretudo Hirschfeld (1994); sobre folk psychology a bibliografia já é literalmente inabarcável: o disparo de saída foi dado pela polêmica Churchland (1986). E para o que aqui nos interessa, vale a pena observar que quando fazemos ciência positiva ou descritiva podemos contar com uma dupla determinação de nossas teorias: a que vem das intuições ínsitas em nossa arquitetura cognitiva (o que nos proporciona ou determina o repertório de nossas primeiras conjecturas e hipóteses) e a que vem dos fatos aos que submetemos nossas hipóteses ( fatos que podem levar a conclusiva refutação de nossas teorias folk: como ocorreu com a física aristotélica, ou como ocorreu com a geometria euclideana em tanto que teoria empírica sobre a estrutura do espaço) (Domènech,1998). Ao contrário, quando fazemos ciência ou filosofia social normativa, só podemos contar com a primeira das determinações, o que implica dizer que nenhuma teoria normativa pode reduzir folgada e discricionariamente o estágio folk. De fato, recentes investigações transculturais convergem em apontar que todos os humanos possuem um conjunto de capacidades mentais básicas que facilitam um acesso diferenciado e solapado a distintos domínios da natureza: a mecânica intuitiva ou folk mechanics (sobre os limites ou contornos dos objetos e seus movimentos), a biologia intuitiva ou folk biology ( sobre as configurações das espécies biológicas e suas relações) e, também, a folk psychology. Note-se, neste particular, que é precisamente no âmbito das ciências sociais normativas (aqui incluídas a Ética e o Direito) que surge a pergunta se a ação humana pode explicar-se do mesmo modo em que as ciências naturais explicam os fenômenos em seu domínio. E as distintas respostas possíveis a esta pergunta levam, por sua vez, a subseguintes perguntas: se é que sim, por quê nossas explicações sobre a ação humana são menos precisas e menos informativas que as explicações científicas das ciências naturais? Se a resposta é que não, quer dizer, que os métodos da ciência natural são inapropriados, então, qual é a forma correta de explicar cientificamente a ação? E se não há maneira de explicar cientificamente a ação humana – como defendem alguns filósofos, juristas e cientistas sociais – , por quê a ação humana requer um enfoque distinto do modelo adotado pela ciência natural, e que classe de enfoque? Estas perguntas constituem, em última instância, o transfundo das ciências socias normativas desde sua origem e denotam que, geralmente, o tipo de pergunta que se faz determina em grande medida o tipo de resposta que se quer obter. Agora: é realista pensar que o fato de que em ciência social normativa não se faça explícita uma descrição da natureza psíquica humana tenha sua razão na aceitação geral de uma teoria psicológica suficientemente robusta e informativa? Posto que na psicologia científica atual não há acordo acerca de de uma teoria unificada, a resposta deveria ser negativa. Mas cabe outra interpretação, uma vez que não são raras as situações em que a teorização social quanto aos supostos da natureza psicológica humana sobre os quais se constrói são implícitos e, com frequência, tácitos. Nas ciencias sociais, uma razão de peso para eludir predefinições psicológicas foi a aceitação de uma tradição herdada, segundo a qual está fora de discussão que as pessoas atuam para conseguir aquilo que desejam, dadas umas crenças. Trata-se de uma definição precisa e simples que pressupõe que o objeto de estudo da ciência social é a ação humana (já seja individual ou em agregados institucionais) e pressupõe, assim mesmo, que a ação humana está determinada por uma conjunção de desejos e crenças que a sua vez são razões e causas da ação. Dito em termos filosóficos, a persistência deste esquema da psique humana de fundo se explicaria porque cada um de seus elementos dá conta de uma “classe natural” de fatos do mundo (a conduta humana e suas causas) e viria avaliado por sua inegável eficácia preditiva na vida social dos humanos. Para mais detalhes, cfr. Atahualpa e Marly Fernandez, 2008.
[19] Frankfurt, 1971; Domènech, 1989 e 1997; Lehrer,1990. Nesse particular, negar que tenha sentido discutir ou argumentar a favor e em contra das preferências dos indivíduos implica, desde logo, negar que tenha sentido o fato de que os indivíduos mesmos reflexionem pertinente e adequadamente acerca de suas próprias preferências. Significa negar filosoficamente às pessoas a possibilidade ou a oportunidade de que deliberem acerca de se o que consideram “o melhor” é realmente o melhor para elas. Mas isso é tanto como negar-lhes a condição mesma de pessoa. Pois o mesmo que com as crenças, acontece com os desejos: porque os humanos, à diferença do resto dos animais, se distinguem pela capacidade de tomar distância intelectual e emotiva sobre seus desejos e preferências. De fato, apesar de que símios (cujos sentidos se aferram à realidade) e humanos compartem grande número de importantes habilidades cognitivas avançadas, se diferenciam em um aspecto crucial: a capacidade ou o grau em que os humanos podem tomar distância do mundo ao experimentá-lo. Isto lhes permite reflexionar sobre o mundo a medida que o conhecem e perguntar-se se poderia ser de outro modo. E a mais clara evidência disso é que todos temos preferências sobre nossas próprias preferências, quer dizer, preferências de segunda ordem. Desejamos isto ou aquilo, mas desejamos também desejar isto e aquilo. Desejamos fumar, por exemplo, mas desejamos não desejar fumar. Desejamos ser de alguma maneira (quiçá distinta da que somos), e isso equivale a desejar ter determinados desejos (seguramente distintos dos que normalmente temos). Para uma apreciação mais detalhada acerca desta questão, cfr. Atahualpa Fernandez, 2006; Atahualpa e Marly 2008; já sobre representação e metarepresentação desde uma perspectiva da neurociência, cfr. Ramachandran, 2008.
[20] Atahualpa Fernandez, 2006. Parece ser que o melhor caminho para solucionar o problema de “como e em que ponto” se alcançaria um consenso válido e legítimo intersubjetivamente, será o de recorrer aos processos de deliberação pública racional, que põem em comum nossas diversas e “defeituosas” intuições e emoções morais e as corrigem e reparam, muito embora por este processo o acordo possa ver-se frustrado em ao menos dois casos: a) quando a divergência das intuições morais e interesses é demasiado radical, ou b) quando as intuições morais e interesses estão demasiado fortemente marcados por motivos pugnazes.No primeiro caso, as intuições morais e os interesses podem apresentar uma diversidade tal, que torne impossível a deliberação racional entre comunidades muito distintas- não digo que seja assim, mas, se assim ocorresse, então haveria que restringir a uma só comunidade a aspiração de consenso. No segundo caso, mas ainda restrigindo-nos a um só tipo de comunidade, com determinada tradição histórico-cultural, se nos apresenta o problema da divisão da própria comunidade em subgrupos de interesses encontrados e ainda hostis . Se nos coloca, aqui, o problema de que as intuições e emoções morais da gente possam estar irreparavelmente marcadas por seus interesses.Ora, não há deliberação pública racional possível, como tão pouco viabilidade intersubjetiva de consenso, nem em condições de radical conflito de interesses aberto nem no bellum omnium contra omnes. O único que cabe dizer aqui é que estas situações extremas – mas nem muito menos infreqüentes – caem fora do espaço das condições de possibilidades do consenso, pelo que sai sobrando nelas qualquer teoria acerca de discurso prático normativo baseado no consenso. Nestes casos, o resultado de um interpretação fica condicionado a um critério de autoridade que lhes impõem por meio de uma verdade que não convence a todas as partes participantes do discurso – e a verdade que não convence não passa, em última análise, de “força bruta” . Assim que a estratégia a seguir para tornar viável e operativo um consenso em relação com as interpretaões jurídicas razoáveis parece ser a de buscar pontos de acordo ou de equilíbrio material entre exigências contrapostas, isto é, entre as intuições morais e os interesses que consubstanciam as argumentações que tratam de fundamentar discursos aceitáveis. E isto se daria mediante um processo cognitivo de “cedência recíproca” ou de “mútua correção”, no sentido de congraçar as intuições morais e os interesses aparentemente contraditórios desde que abdicassem da pretensão de serem considerados de forma absoluta. Por certo que as dificuldades aumentariam na medida em que o acordo se produzira somente em relação com princípios ou valores de caráter muito abstrato, mas parece que, afortunadamente, nas questões jurídicas – inclusive naquelas que afetam as normas situadas mais acima na pirâmide normativa – não é comum ser este o caso.
[21] Entre as características do psicopata destacam a falta de empatia- são incapazes de colocar-se no lugar de outra pessoa – e a carência de remordimentos – não tem consciência. E porque essa ausência de empatia é mais emocional do que intelectual, um psicopata pode entrar em teu cérebro e intentar imaginar o que pensas; sem embargo, jamais poderá compreender como te sentes. Pois bem, tudo aponta a que essa falta de emoções decorreria de uma característica diferencial no sistema nervoso: uma falta de conexão entre o sistema límbico – a amígdala, em particular, relacionada com as emoções e a agressividade – e o córtex pré-frontal – que controla os impulsos emocionais do sistema límbico. A origem de tal desconexão pode ser uma lesão durante o desenvolvimento, a causa de acidente ou maltrato, ou por alterações genéticas. Estudos levados a cabo por Hare(1984, 2003)sugerem que os transtornos característicos da psicopatia podem dever-se ao mau funcionamento da amígdala (hipoatividade), particularmente a do hemisfério direito; a amígdala normal se ativa intensamente em presença de estímulos emocionais; em câmbio, a dos psicopatas demonstra pouca ou nenhuma resposta ante estes. Os scaners cerebrais mostram, também, que enquanto na maioria das pessoas o hemisfério direito se ilumina em situações emocionais, nos psicopatas estão igualmente ativos os dois hemisférios, o que lhes livra de sentimento de culpa, remordimento e necessidade de castigo. Para mais detalhes, cfr. Atahualpa e Marly Fernandez, 2008.
[22] A este propósito, Arthur Kaufmann (1999) cita as seguintes palavras, demasiadas humanas, de Antoine de Saint-Exuperie (desafortunadamente sem referência de fonte): “Eu creio que virá o dia em que um homem enfermo se ponha em mãos do físico e do informático. Estes não lhe perguntarão nada, somente lhe tomarão sangue, deduzirão algumas constantes, multiplicarão umas com outras e depois de haver consultado sua calculadora, curarão o paciente com uma só pílula. E sem embargo, quando eu enferme, me dirigirei ao meu médico rural. Ele me mirará com o canto do olho, comprovará o pulso e estômago, me auscultará, se frotará a barba e me sorrirá, para mitigar a dor. Se compreende: me entusiasma a ciência, mas não me entusiasma menos a sabedoria”. Um computador não poderá jamais ser um juiz sábio, porquanto ele carece de sentimento do direito.