“O verdadeiro problema das teorias hermenêuticas e da argumentação jurídica é que levam o intérprete a pensar que sabe algo que em realidade desconhece. E
como há maneiras alternativas de interpretar o que encontram na norma, os intérpretes parecem ser bastante adictos a encontrar as justificações e
argumentos que lhes convêm para afilar, limar e alterar seletivamente a mensagem normativa: não tanto pelo uso indiscriminado e vicioso da denominada “Katchanga real!”, mas principalmente por meio de uma diarréia argumentativa incessante”. A.F.
A interpretação representa um verdadeiro banco de provas para o jurista. Não é por acaso que constitua, falando com propriedade, matéria de ensino: sob o
domínio ordenador da razão, é tratada como o campo dos conceitos claros e distintos, de regras e critérios, mediante os quais um acervo de métodos com
nomes elusivos e incertos encontra sua aplicação rigorosa. É o lugar das técnicas e das formas de argumentação articuladas e reconstruídas sobre a mesa dos
consumados operadores práticos do direito, em benefício de quantos preferem ver a tarefa interpretativa como uma atividade puramente racional, um aparato
metodológico constituído por um conjunto de noções e de instrumentos forjados para levar a cabo processos de decisões e conseguir resultados de maneira
ordenada, controlada, ponderada, razoável, objetiva, imparcial, consciente e, na medida do “possível”, neutra.
Tomar decisões, por outro lado, é o resultado do ato de interpretar e usar a norma para orientar a conduta humana entre múltiplos cursos de ação possíveis.
Tais eleições determinam o modo em que o intérprete autorizado atua no mundo e seu grau de êxito em fazer frente aos conflitos da vida social. E embora a
norma não estabeleça a forma das eleições individuais uma por uma, dispõe ou pode criar mecanismos de processo de informação que se reproduzirão
fiavelmente como resultado de classes particulares de eleições em casos e situações específicas.
Dito isto, resulta mais evidente o por que em realidade não interessa o estudo dos limites, das restrições e dos condicionantes da capacidade
humana de interpretar e de tomar decisões em si; o que realmente interessa é a compreensão – ainda que aproximada – dos critérios, regras, estratégias e
métodos de interpretação e de tomada de decisão, considerando as situações e casos concretos em que podem funcionar. Todo um aparato metodológico de
técnicas de interpretação jurídica posto a disposição do operador jurídico com a finalidade de (1) obrigar a norma silenciosa a “falar” e (2) eliminar, camuflar ou subtrair qualquer resultado ou decisão devido às perspectivas individuais, limitadas, singulares e/ou particulares do
sujeito intérprete.
Assim que para as principais teorias sobre a interpretação jurídica, o ato de manobrar o processo para tomar decisões corretas gira ao redor de um axioma
onipresente: os seres humanos são racionais. De acordo com esta concepção que constitui os cimentos de grande parte das teorias jurídicas contemporâneas,
os intérpretes (nomeadamente os juízes) são e/ou devem (o que pressupõe que podem) ser racionais e objetivos em seus juízos de valor acerca da justiça da
decisão. Quer dizer, atendidos determinados princípios, regras e critérios metodológicos, estão capacitados para examinar o melhor que podem todos os
fatores pertinentes ao caso e ponderar, sempre de forma aparentemente neutra, imparcial, razoável e não emocional, o resultado provável que segue a cada
uma das eleições potenciais. A opção preferida (“justa”) é aquela que melhor se adequa aos princípios, métodos, regras ou critérios de racionalidade,
razoabilidade e objetividade por meio dos quais a decisão foi gerada.
Esta sobrevalorada concepção da racionalidade jurídica está baseada na premissa de que, como humanos, estamos todos dotados de um elevado grau de sentido
comum para prestar atenção às coisas que nos rodeiam, que nossa memória é mais consciente, controlável e fiel do que é em realidade e que a capacidade de
racionalizar e/ou ponderar é um indicador fiável da precisão de nossos juízos.
O único problema é que esta entranhada suposição da racionalidade jurídica é equivocada, não somente porque os operadores reais do direito não são tão
racionais como se pretende (e tão pouco funcionam como se o fossem), senão também pelo fato de que: a) simplifica ao extremo, artificializa e
distorce a análise dos múltiplos fatores e influências, inatas e adquiridas, que condicionam nossas interpretações e nossas decisões; e b) elude a
evidência de que a razão não cria valores, “sino que se configura en torno a ellos y los lleva hacia nuevas direcciones” (Simon Blackburn, 2003).
De fato, a principal causa do desgaste metodológico presente no direito é que parece que há poucas, ou nenhuma, interpretação independente do intérprete. E
o mais expressivo sintoma desse desbastado cansaço está relacionado com a falta de revisão do conceito mesmo de racionalidade, procedente não de críticas
hermenêuticas senão científicas, e em particular das ciências cognitivas da racionalidade. Desde que Aristóteles falou dos
humanos como “animais racionais”, formamos (e temos) uma imagem de nós mesmos baseada no mítico “ator racional”, apenas influenciado por pequenos e
circunstanciais inconvenientes emocionais. A ciência cognitiva afirma justamente o oposto.
Mostra que os seres humanos são (predominante e prioritáriamente) uma desordenada coleção de “módulos” emocionais que afetam e alteram de maneira decisiva
o entendimento, e cujo acesso imediato, automático e não consciente a um vasto armazém de memórias é constantemente utilizado como base de decisão. Temos
uns poucos “módulos” para processar a lógica e a busca racional de objetivos, mas são lentos, energeticamente custosos e raras vezes empregados (D.
Kahneman, 2011). Nas palavras de Scott Atran (2011), que a razão sozinha basta e é suficiente para interpretar, justificar, aplicar ou superar as
exigências e imposições de normas, princípios e valores`sagrados´ ” sólo lo conciben los académicos descarriados y algunas gentes del gremio de los juristas. Nadie más”.
Desde esta perspectiva, as modernas teorias hermenêuticas, de interpretação e de argumentação jurídica não nos informam absolutamente nada sobre o
“equipamento mental” que necessitamos para superar realmente os erros de raciocínio (ou até mesmo os contraproducentes), na medida em que fomentam um
injustificado excesso de confiança metodológica e reforçam a ilusão de validez e eficácia de nossa racionalidade. O processo de realização do direito não
é, e jamais será predominantemente um sistema teórico-racional de pensamentos, ao menos enquanto a genética não produza inéditos milagres nos cérebros das
pessoas.
E não pode sê-lo pelo simples fato de que toda interpretação consiste em eleições sobre distintas possibilidades que tem lugar de algum modo no
cérebro do intérprete, em uma mente que sempre está “ llena de remembranzas irrevocables y de pensamientos impensables, que toman parte en todos sus juicios como fuerzas que no se pueden destruir” (O.
W. Homes, 1861). Uma evidência que, por si só, já seria suficiente para recomendar que as interpretações deveriam levar a seguinte advertência: “ Os pontos de vista expressados não são necessariamente os da racionalidade a que dou culto”.
Em realidade, uma interpretação/decisão não costuma ser mais racional que a vontade, as emoções e o conhecimento de quem a produz. Os atores principais da
atividade interpretativa que determinam sua dinâmica são indivíduos que basicamente respondem às orientações de seus genes e de seus neurônios, assim como
de suas experiências, memórias, valores, aprendizagens, emoções, intuições e influências procedentes do ambiente e da mentalidade comum. É claro que a
hermenêutica, a racionalidade e a lógica seguramente ajudam a interpretar e aplicar direito, e não se deve desdenhar a importância de transformar nossos
vagos instintos em um conjunto explícito de argumentos jurídicos – ainda que levem a maus resultados, não porque os seres humanos são incrivelmente
deficientes no uso da razão, senão porque sistematicamente se esforçam por argumentos que justificam e confirmam suas crenças e/ou suas ações (H. Mercier,
2012). Mas nossas emoções e intuições morais, sem as quais não seríamos sequer capazes de valorar, existem muito antes que os teóricos e filósofos do
direito propusessem as primeiras teorias e métodos para orientar a interpretação jurídica.
Assim que se queremos insistir na racionalidade, de que não devemos “abrir las puertas de la bodega para dejar que salgan los fantasmas de la irracionalidad o las alimañas del decisionismo” (A. Nieto, 2009), adiante. Ainda assim, é necessário
saber de antemão que a racionalidade custa, que raramente é uma atividade fácil, que ativá-la requer esforço mental (custoso em tempo, energia e
calorias), que pensar é um trabalho duro, que nossas vidas diárias estão organizadas para economizar o pensamento e que um intérprete racional não é aquele
que tem uma visão do mundo mais consistente ou que é capaz de contar as melhores histórias.
Tão pouco é mais racional quem rechaça as emoções em nome de uma inexistente razão desencarnada, senão aquele que é capaz de examinar seus próprios
prejuízos e de assumir que muitos fatores (conscientes ou não) interagem, competem e restringem a decisão que estabelece o cérebro. Como sugere David Hull
(2011), a regra que parecem seguir os seres humanos consiste em comprometer-se com o pensamento racional somente quando falha todo o demais; e normalmente
nem isso.
Esta concepção mitigada e revisada da racionalidade rebaixa o tom triunfalista e evangélico característico das teorias hermenêuticas e da argumentação
jurídica atuais. Argumentar publicamente como se o chamado “pensamento racional” constituísse a essência da interpretação e do discurso jurídico reflete
expectativas pouco realistas. A razão por si só não move a nada: “Isto é justo ou injusto?”, se pergunta nossa mente primitiva a cada instante
interpretativo…”milésimas de segundo después tratamos de esbozar un juicio razonado”. (H. Mercier, 2011). Relâmpagos irracionais de intuição
seguidos por uma argumentação rigorosa e motivada pela capacidade das pessoas em encontrar explicações e justificações ad hoc extraordinariamente
bem, com rapidez, segurança e eficácia. Animais irracionais, como qualquer outro, que julgam e valoram movidos por seus instintos sem necessidade de
sabê-lo ou pensar neles, mas com um verniz de racionalidade sobre os velhos móveis que adornam nossas emoções.
Dito de outro modo, a eleição deliberada requer sempre uma conjunção de razão e desejo que nenhum antecedente de educação pessoal, nenhuma lealdade
profissional ou metodologia detalhista é capaz de refrear. Os instintos, a intuição, a memória, as emoções e as experiências de outros, transmitidas formal
e informalmente em forma de normas e instituições, geram e modulam nossos desejos, nossas preferências e nossas crenças. E dado que a interpretação depende
tanto do que passa na mente do intérprete como de sua relação – sua relação causal – com o que passa no mundo, a razão, por suas próprias limitações, deve
fazer uso deste conhecimento, e não usurpá-lo e destruí-lo. Em resumo: o uso da razão, ademais de também encontrar-se limitado pela falta de informação e
de tempo, implica diversos fatores de distinta importância e probabilidades que interagem até derivar em uma solução/decisão adequada ou satisfatória (não
necessariamente a melhor).
Portanto, o principal (e grave) problema, insistimos, reside no fato de que os atuais modelos teóricos desenvolvidos sobre a tarefa hermenêutica e a
própria unidade da realização do direito pecam ao ignorar a influência dos múltiplos fatores (inconscientes e irracionais, inatos e adquiridos) que
condicionam os processos de tomada de decisão jurídica, construídas que estão a partir de premissas alheias a qualquer escrutínio empírico-científico
minimamente sério, carentes da menor autoconsciência com respeito à realidade neuronal que nos constitui e dos problemas filosóficos e neuropsicológicos
profundos que implica qualquer teoria da ação intencional humana.
Descuidam da evidência de que qualquer conduta humana, toda experiência humana, incluída a própria experiência hermenêutica, tem um “substrato”
neurobiológico, e que, como tal, em tema de atividade interpretativa, é necessário perguntar-se acerca da relevância e utilidade que os métodos jurídicos podem ter sobre a desejada racionalidade, objetividade e neutralidade dos intérpretes autorizados. E ao buscar a resposta a essa pergunta há que
descartar umas soluções puramente especulativas (racionais, razoáveis e/ou ponderadas) que possam obter-se pela via de certos “métodos-receitas”. A
“consciência” do intérprete, que deve ser necessariamente levada em conta, não dispõe apenas do “componente” do conhecimento, senão também do
“componente” emotivo-volitivo: sentimentos, intuições, ideologias, prejuízos, experiências pessoais, memória e demais.
Isto implica que razão e emoção precisam trabalhar juntas para criar o comportamento inteligente. Daí por que, neste particular, as ciências cognitivas
chegaram à conclusão de que não se pode tomar uma decisão sem emoção e de que todas as decisões supostamente lógicas e razoáveis estão contaminadas por uma
emoção. É certo que, em tema de interpretação jurídica, a lógica pode indicar distintas possibilidades e rechaçar as variantes absurdas; mas a razão não
serve quando há que eleger entre duas o mais variantes que objetivamente apresentam idêntica utilidade.
Nesses casos, onde não existe uma preferência (emocional), a mente é incapaz de analisar, avaliar a informação disponível e antecipar as consequências
possíveis da decisão. Como assinala Damasio (1994), a tomada de decisões implica, a nível cerebral, uma rápida representação mental da série de possíveis
situações e das consequências vinculadas a tal decisão e nesse processo se ativam os componentes emocionais das alternativas avaliadas, jogando estes um
papel importante na eleição da decisão mais vantajosa. Quer dizer: ou existe emoção ou não existe decisão (Haidt, 2006; Eagleman, 2011; Marcus, 2011;
Damasio, 1994; Gazzaniga, 2005; LeDoux, 1998; Perna, 2004; Owen Jones, 2009).
Assim que o desejo de proporcionar uma justificação exaustivamente racional da maneira em que conduzimos nossas interpretações é falacioso e descabelado. A
fantasia hiper-racionalista de demonstrar que todas nossas ações (e interpretações) se baseiam em premissas exclusivamente racionais é incoerente e devemos
abandoná-la (H. Frankfurt, 2004). Nossos desejos, nossos prejuízos e nossas emoções intervêm sempre em maior ou menor medida em todo o processo de
interpretação e de tomada de decisão em concreto, ou, para ser mais preciso, a articulação co-constitutiva da afetividade e da razão intervêm em toda a
interpretação (compreensão), justificação e aplicação de uma vontade alheia, sobretudo naqueles domínios em que o “caso concreto”, o “caso da vida real”,
surge ao intérprete com uma variedade e uma multiplicidade desconcertantes.
E se admitimos que o direito é um conjunto de hábitos interpretativos coletivamente desenvolvidos, não resulta difícil concluir que as atuais teorias
acerca da hermenêutica, da interpretação e da argumentação jurídica parecem ser, hoje, a mais flagrante e patética expressão de um estridente anacronismo,
pelo simples fato de que partem de um completo, absoluto e injustificável desconhecimento do funcionamento do cérebro humano. Continuamos a manejar-nos, em
tema de hermenêutica e interpretação jurídica, de filosofia e ciência do direito do século XXI, baseados em uma psicologia humana impossível, com uma idéia
de natureza humana procedente do século XVII e com os métodos do século XIX. Continuamos insistindo em formular construções doutrinárias e/ou propostas
metodológicas cuja principal característica e “utilidade” são a de servir como mero mecanismo de legitimação posterior à decisão. Continuamos a permanecer
limitados à tentativa de outorgar “autoritariamente” às decisões jurídicas um aspecto de “racionalidade”, de “razoabilidade”, de “objetividade” e valor
epistemológico que do contrário jamais teriam. À semelhança “
de una cortesana, la racionalidad está a disposición de cualquiera. No hay argumentación que no pueda ser defendida acudiendo a lo «racional» (o, en
todo caso, a lo «razonable»)”. (Haba, 2011)
Por mais difícil que pareça, é preciso aceitar que a interpretação jurídica, tal como a conhecemos, é uma atividade levada a cabo por seres (cérebros)
humanos com suas próprias necessidades, crenças, visões (prévias) do mundo, opiniões, amores, ódios, desejos, preferências, circunstâncias, problemas…,
que, de uma forma ou outra, incidem e condicionam o resultado de suas interpretações, destinadas a transmitir suas mensagens a um público específico em uma
época e um lugar determinados. Cada um dos intérpretes do direito é um ser humano, cada um deles, com suas limitações, deficiências e imperfeições, tem
algo diferente a comunicar, cada um intenta transmitir sua visão de mundo a partir da construção de uma justificação acerca de sua desejada interpretação.
Cada um deles, de certo modo, muda, altera ou transforma os textos que interpreta.
Esta simples evidência ilustra eficazmente os curiosos malabarismos que os intérpretes podem chegar a fazer com os critérios, princípios, regras ou métodos
interpretativos para inferir as decisões que valoram como positivas e que trabalham a favor de suas preferências, crenças e desejos, torcendo de forma
idiossincrática o significado que atribuem à informação que tomam do mundo. Como há maneiras alternativas de interpretar ou “moldurar” o que encontram na
norma, os intérpretes parecem ser bastante adictos a encontrar a decisão (justificações e argumentos) que lhes convêm, um objetivo que na maioria das vezes
lhes leva a afilar, limar e alterar seletivamente a mensagem normativa: não tanto pelo uso indiscriminado, imoral e vicioso da “Katchanga real!”,
mas principalmente por meio de uma diarréia argumentativa incessante. Nestas tendenciosas inclinações das interpretações relativamente sutis podem
encontrar-se muitos dos defeitos mais significativos da pretendida racionalidade jurídica.
Também há que recordar, neste particular, outros dois fatores importantes. Primeiro, que estamos todos predispostos a ver ordem, padrões e significado no
mundo, e que nos resultam insatisfatórios a aleatoriedade, a falta de previsibilidade e de sentido, os caprichos da irracionalidade, o caos da incerteza e
a falta de coerência. Essa tendência a racionalizar e atribuir ordem a estímulos irracionais é tão poderosa e automática, está tão incorporada em nossa
maquinaria cognitiva, que a empregamos para apreender e interpretar o mundo, detectar coerência inclusive donde não há nenhuma, acreditar na existência de
“evidências” inexistentes e criar mecanismos para validar racionalmente nossos juízos, crenças e preferências. E não é que queiramos ver tudo de forma tão
racional; simplesmente o vemos dessa forma. (Gilovich, 2009)
Segundo, está o fato de que não somente padecemos das denominadas “ilusão de validez” – isto é, a falsa crença na fiabilidade de nosso próprio juízo (D.
Kahneman, 2011) – e “tendência de confirmação” – ou seja, da tendência a preferir as interpretações que apoiam ou confirmam nossas próprias preferências,
hipóteses e crenças prévias, independentemente de serem ou não verdadeiras -, senão também que as pessoas se vêem a si mesmas como objetivas e, como tal,
raramente pensam que sustentam uma crença só porque lhes apetece.
O problema é que este sentido de objetividade resulta ser igualmente ilusório: ainda que pensem que suas interpretações estão vinculadas estritamente a
critérios e provas relevantes, geralmente não se dão conta de que os mesmos critérios e provas podem mirar-se desde outro ponto de vista, nem de que há
outros critérios e provas, igualmente pertinentes, que considerar. Como diz Ziva Kunda (1990), ”…
a gente não se dá conta de que o processo (inferencial) está condicionado por seus objetivos, de que somente estão acedendo a uma parte de seu
conhecimento relevante, de que provavelmente acederiam a diferentes crenças e regras (de inferência) se tivessem objetivos distintos, e de que
poderiam, inclusive, ser capazes de justificar conclusões opostas em ocasiões diferentes ”.
Sendo assim, o que parece realmente relevante é tratar de incorporar no âmbito da hermenêutica jurídica uma reflexão e tomada de posição mais esclarecida
de cara com as pesquisas levadas a cabo pelas ciências cognitivas, uma vez que estas estão começando a tocar questões que antes eram do domínio exclusivo
de filósofos e juristas; questões sobre como a gente toma decisões e o grau em que ditas decisões são verdadeiramente livres, racionais, objetivas,
neutras, ponderadas… Com a ciência do cérebro moderna claramente estabelecida, é difícil justificar que nossas teorias hermenêuticas possam “ seguir funcionando sin tener en cuenta lo que hemos aprendido”. (Eagleman, 2011)
Como já dissemos em outro momento, não há dúvidas de que, por razões históricas, os juristas de hoje não estão bem preparados para unir-se às inovações
procedentes das atuais investigações. Simplesmente relutam em manter-se ao dia com os desenvolvimentos científicos pertinentes. Também é certo que deve
resultar intimidante, quando se é “jurista” toda a vida, reconhecer de repente que os neurocientistas, psicólogos, biólogos, antropólogos, etc., sabem
algumas coisas importantes acerca do funcionamento interno da mente que podem ter um impacto direto sobre tudo o que sabem fazer. Ninguém quer voltar a
começar de novo.
Mas o realmente novo já está aí fora e negá-lo parece ser de um cinismo atroz e/ou de uma ignorância imperdoável e irredimível. E como a ciência trata todo
o tempo de estender os limites do que se conhece, os juristas que se negam intolerantemente a admitir sua relevância para o âmbito do direito estão
continuamente sendo empurrados contra uma barreira de ignorância. Quanto mais ciência sejam capazes de aprender, mais se darão conta do que ainda não
sabem, e da natureza defeituosa do que afirmam saber. Esta perspectiva intelectual geral, esta consciência do difícil que pode ser saber algo “com
certeza”, ainda que humilhante, representará um importante benefício colateral à tarefa interpretativa. E seguramente assim será, porque distinguir o que
sabemos bem do que somente cremos que seja certo já é, por si só, um avanço importante. Como disse com absoluta pertinência Artemus Ward (2009), na maioria
das vezes, não são as coisas que ignoramos as que nos causam problemas; são as coisas que “sabemos” e não são assim.
Contudo, para lográ-lo é necessário estar alerta às ficções tradicionais da dogmática jurídica profissional, advertidas já desde há muito tempo atrás pelos
autores mais lúcidos – hoje geralmente relegados ao olvido – entre os teóricos e filósofos do direito. Não menos indispensável é não deixar-se seduzir tão
pouco pela proliferação em divertimentos essencialmente narcisos-acadêmico, uns ou outros jogos terminológicos escapistas, que levam a voz
cantante nos estudos atuais para o campo da (meta-) Teoria do Direito: lógica deôntica, construtivismos racionalistas ou “razoabilistas” (concepções e
discussões messiânicas sobre o que é a “argumentação” jurídica, etc.), teorias sistêmicas, alternativas, semióticas formalistas em geral, e mais… (…
sem excluir os estudos que fuçam no mare magnum do não menos obscuro que pretencioso palavreio chamado “pós-modernismo”).
Dito de outro modo, quem se proponha a intervir aí não terá mais remédio que tomar humildemente em conta tudo isso ou virar às costas à realidade:
consagrar-se a dissimulá-la mediante alguma teorização todo o convenientemente abstrata e pedante, sob o argumento de que por força da própria formação,
status ou posição sócio-institucional se encontram privados de certa classe de informação científica. Os estudos provenientes das ciências
cognitivas estão exigindo a gritos um novo despertar da consciência hermenêutica dos juristas, uma reinvenção ou construção conjunta de alternativas
metodológicas reais e factíveis, compatível com a dimensão essencialmente humana (neuronal) da tarefa de interpretar, justificar e aplicar o direito.
Isto é, que o historicamente (oficialmente) admitido como “correto” deve ser redefinido a partir de uma concepção mitigada e revisada da racionalidade
humana. Um novo modelo hermenêutico-interpretativo que, ajustando-se à dimensão essencialmente humana da tarefa de interpretar, justificar e aplicar o
direito nos proporcione instrumentos mais frutíferos e fascinantes de cultivar o direito do que essa espécie de hermenêutica jurídica “no vazio” em que
todos nos acostumamos a comprazer-nos nos velhos tempos. Porque por mais que o ser humano haja adquirido novos e elevados juízos, tenha aprendido a adornar
com “racionalidade” seus mais vivos e prosaicos instintos e pretenda ignorar a herança animal de seu passado evolutivo, segue sendo um primata.
Muito do que sabemos sobre interpretação e tomada de decisão já cambiou nos últimos anos e não é possível adquirir uma visão mais ampla e realista do
(epi-) fenômeno jurídico “vegetando en una pequeña esquina del mundo durante toda la vida” (Mark Twain). Para apreciar verdadeiramente a
complexidade da tarefa interpretativa e o intricado dos processos de decisão, é necessário e de fundamental importância compreender o quanto podemos estar
equivocados e confundidos pela aparente “evidência” de teorias formuladas por algumas confrarias de sofisticados hermeneutas, analíticos ou
jus-metodólogos.
É chegado o momento de admitir que o direito não poderá seguir suportando, por muito mais tempo, seus modelos hermenêutico-interpretativos elaborados sobre
construções especulativas ou por mera contemplação da natureza humana, de assumir o difícil compromisso de abandonar nossa tendência a aceitar com gesto
bovino e mumificar elegantes teorias que nos consolam e que nos fazem sentir bem, de distanciar-nos das inferências estúpidas, de tratar de adquirir uma
compreensão mais profunda e sólida sobre a condição e a experiência humana, de questionar nossas antigas, envenenadas e arraigadas suposições e, acima de
tudo, de desafiar o que cremos saber.
* Atahualpa Fernandez, Membro do Ministério Público da União /MPT; Pós-doutor em Teoría Social, Ética y Economia pela Universidade Pompeu Fabra; Doutor em
Filosofía Jurídica, Moral y Política pela Universidade de Barcelona; Mestre em Ciências Jurídico-civilísticas pela Universidade de Coimbra; Pós-doutorado e
Research Scholar do Center for Evolutionary Psychology da University of California/Santa Barbara; Research Scholar da Faculty of Law/CAU-
Christian-Albrechts-Universität zu Kiel-Alemanha; Especialista em Direito Público pela UFPa.; Pós-doutorado em Neurociencia Cognitiva – Universitat de les
Illes Balears/Eapanha; Professor Colaborador Honorífico (Livre Docente) e Investigador da Universitat de les Illes Balears/Espanha (Cognición y Evolución
Humana / Laboratório de Sistemática Humana/ Evocog. Grupo de Cognición y Evolución humana/Unidad Asociada al IFISC (CSIC-UIB)/Instituto de Física
Interdisciplinar y Sistemas Complejos/UIB
** Manuella Maria Fernandez, Doutora em Humanidades y Ciencias Sociales/ Universitat de les Illes Balears-UIB ; Doutoranda em Direito Público/ Universitat
de les Illes Balears-UIB; Mestre em Evolución y Cognición Humana/ Universitat de les Illes Balears-UIB; Research Scholar, Fachbereich Rechtswissenschaft
/Institut für Kriminalwissenschaften und Rechtsphilosophie, Johann Wolfgang Goethe-Universität, Frankfurt am Main/ Deutschland; Pós-doutorado (Filosofía y
Filogénesis de la Moral) / Laboratório de Sistemática Humana/ Evocog. Grupo de Cognición y Evolución humana/Unidad Asociada al IFISC (CSIC-UIB)/Instituto
de Física Interdisciplinar y Sistemas Complejos /UIB.