Nem Krishna, nem Kant: breve aula de ética
Mario Guerreiro*
Perguntaram a Krishna: “Como posso saber que uma conduta é correta?” E ele respondeu: “Por suas conseqüências”.
Ora, se uma ação gera conseqüências incorretas, necessariamente ele não é correta . Uma árvore que dá maus frutos não pode ser boa. Por outro lado, se uma ação gera conseqüências corretas, ela pode ser, porém não é necessariamente correta.
Antes de decidir se uma ação é correta, devemos examinar se os meios geradores de conseqüências corretas são igualmente corretos. Se eles não são, ainda que as conseqüências sejam, a ação não pode ser considerada correta.
Se concordássemos que as ações fossem avaliadas somente pelos efeitos produzidos por elas, teríamos que aceitar que uma ação produtora de bons (corretos) resultados teria que ser considerada boa (correta).
Mas se aceitássemos isto, teríamos que aceitar que os objetivos justificam os meios. Temos boas razões para rejeitar essa máxima extremamente imoral!
Façamos uma breve e sucinta hipótese: Supondo que a referida máxima seja valida, e considerando que o dinheiro é bom, qualquer meio para consegui-lo estaria justificado.
Estariam justificados portanto o roubo, a trapaça e o assassinato, desde que eles fossem feitos em nome de uma boa finalidade. Por exemplo: para distribuir dinheiro entre os pobres ou arrecadar fundos para fazer a revolução.
Portanto, para que uma ação seja considerada correta (boa), tanto os meios como os fins têm que ser corretos (bons). Basta que um deles não seja, para que uma ação não possa ser considerada correta.
Sem levar em conta as relações entre meios e fins, não é possível fundamentar nenhuma Ética que se preze. Isto vale tanto para Krishna como para Kant.
Não perguntaram a Kant a mesma pergunta feita a Krishna, mas se tivessem perguntado, certamente ele teria respondido: “Uma ação é correta (boa) quando o princípio(ou a máxima) moral que a impulsiona é correto (bom), independentemente das circunstâncias, das intenções do agente e das conseqüências da mesma.”
Assim sendo, admitindo que Não mentir seja correto, ele assim seria independentemente das intenções de quem mente, das circunstâncias em que ele mente e para quem ele mente.
Mas, se aceitarmos isto, não deveremos mentir nunca, sob nenhuma hipótese. Nem que seja para salvar nossa própria vida ou mesmo a vida de nossa mãe! Corolário inevitável: a sinceridade do não-mentir não pode jamais ser um valor mais elevado do que a vida (tanto a nossa como a dos outros).
Qualquer pessoa agraciada pelo bom senso – mesmo totalmente desconhecedora de Filosofia – não concordaria com esse autêntico descalabro, e poderia muito bem dizer: “Não há bem mais precioso do que a vida e eu não estou disposto a trocar minha vida por nada neste mundo”. Corolário: a vida é um valor que não admite nenhum gambito: é inegociável.
De que valem a sinceridade, a liberdade, a propriedade, honra, etc. para um defunto?! A liberdade e a sinceridade são valores que se acrescentam à vida. Liberdade com vida é um apreciável valor, liberdade sem vida não vale nada, para nada serve.
Do mesmo modo, admitindo que Não matar seja um princípio correto, ele assim seria independentemente das intenções de quem mata, das circunstâncias em que mata e de quem ele mata.
Se aceitarmos isto, não poderemos distinguir um homicídio culposo de um doloso, bem como qualificar este último como mais greve – pois a única diferença deste em relação àquele – é justamente a intenção de matar – e não poderemos também aceitar a legítima defesa – que consiste em matar alguém para não ser morto por ele. Conclusão: duas figuras fundamentais do Direito iriam para o brejo!
Corolário inevitável: Ou a ética de Kant ou o Direito, mas não ambos, pois são mutuamente exclusivos. Só um reles sofista tentará mostrar que não são incompatíveis!
Conclusão final: Nem o unilateralismo dos fins de Krishna, nem o unilateralismo dos princípios de Kant! Devemos levar seriamente em consideração princípios (ou máximas), meios e fins, bem como as intenções do agente e as circunstâncias em que estas mesmas se materializam nas suas ações. Corolário: justificam-se, portanto, exceções às regras (normas) e a Casuística como complemento da Ética.
p.s. Se por acaso o leitor achou que esta refutação radical de dois grandes pensadores foi pretensiosa, perfunctória e leviana, devo advertir que a escrevi tendo em mente o caráter telegráfico e objetivo da linguagem da mídia.
Tudo o que disse está muito bem fundamentando em meu livro As Formas da Mentira, que já está no forno e dele deve sair brevemente ou, ao menos, assim espero. Assim que seja publicado, prometo fazer uma resenha do mesmo.
* Doutor em Filosofia pela UFRJ. Professor Adjunto IV do Depto. de Filosofia da UFRJ. Ex-Pesquisador do CNPq. Ex-Membro do ILTC [Instituto de Lógica, Filosofia e Teoria da Ciência], da SBEC [Sociedade Brasileira de Estudos Clássicos]. Membro Fundador da Sociedade Brasileira de Análise Filosófica. Autor de Problemas de Filosofia da Linguagem (EDUFF, Niterói, 1985); O Dizível e O Indizível (Papirus, Campinas, 1989); Ética Mínima Para Homens Práticos (Instituto Liberal, Rio de Janeiro, 1995). O Problema da Ficção na Filosofia Analítica (Editora UEL, Londrina, 1999). Ceticismo ou Senso Comum? (EDIPUCRS, Porto Alegre, 1999). Deus Existe? Uma Investigação Filosófica. (Editora UEL, Londrina, 2000) . Liberdade ou Igualdade? ( EDIPUCRS, Porto Alegre, 2002). Co-autor de Significado, Verdade e Ação (EDUF, Niterói, 1985); Paradigmas Filosóficos da Atualidade (Papirus, Campinas, 1989); O Século XX: O Nascimento da Ciência Contemporânea (Ed. CLE-UNICAMP, 1994); Saber, Verdade e Impasse (Nau, Rio de Janeiro, 1995; A Filosofia Analítica no Brasil (Papirus, 1995); Pré-Socráticos: A Invenção da Filosofia (Papirus, 2000) Já apresentou 71 comunicações em encontros acadêmicos e publicou 46 artigos. Atualmente tem escrito regularmente artigos para www.parlata.com.br,www.rplib.com.br , www.avozdocidadao.com.br e para www.cieep.org.br , do qual é membro do conselho editorial.
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