Ensaio: Judas E Jesus: Duas Faces de Uma Única Revelação.
Antonio de Jesus Trovão*
“A fé daqueles que ainda não se chamavam cristãos não repousava sobre um livro ou livros, mas sobre a transmissão de um sopro (pneuma) e de uma palavra (logos) que despertam em nós a experiência de uma presença viva ‘não nascida, não feita, não criada’ que eles chamarão anastascon, o ressuscitado”. (do Autor).
O livro ora em análise, escrito pelo teólogo francês Jaen-Yves Leloup, traz à tona considerações instigantes sobre a natureza do próprio Judas Iscariotes e não só sua relação como discípulo de Jesus de Nazaré, mas também, e principalmente, como responsável direto pelos eventos que tornaram o Nazareno uma figura de importância central, não apenas no surgimento de uma religião que, com o tempo tornou-se o mais importante e significativo acontecimento na cultura ocidental, como também se revelou o mais trágico e relevante evento acerca da própria natureza humana dos seres humanos; ou seja: a traição de Judas Iscariotes poderia ser considerada sobre um ponto de vista ao mesmo tempo intrigante e revelador da própria natureza do Homem de Nazaré e seus propósitos estabelecidos antecipadamente e de forma minuciosamente antevista, tal como a organização de uma enorme e bem arranjada peça teatral, cujo público que viesse a compor a platéia principal tornar-se-ia o maior e jamais visto, proporcionando efeitos futuros perpétuos à edificação de uma crença que transformaria a humanidade, bem como transformaria também as relações humanas como eram consideradas até então.
A figura do Judas, como foi tratada pela história bíblica não possui qualquer outro atributo que não o fato de ter atuado como um traidor, ou melhor, o maior traidor ao longo de toda a história humana, demonstrando que a principal característica do homem é destruir tudo aquilo que o cerca inclusive a sua própria humanidade. Veja-se, por exemplo, o caso do Rei Herodes que, temendo apenas a possibilidade de uma profecia vir a realizar-se, determinou que todos os primogênitos das milhares de famílias judias de Israel fossem eliminadas de forma mais elementar e prática possível.
A análise deste evento traduz uma realidade: o medo do rei o levou à prática de um crime hediondo em nome do Criador; a justificativa para tanto encontrava-se centrada apenas na questão do poder: o poder de Deus não poderia – na terra – ser maior que o poder do imperador.
Na mesma vertente, devemos ter em mente também a origem política de Judas (ou Yehoudah), que pertencia aos zelotes (ou sicários), aqueles que tinham por compromisso “zelar por Deus e pela Torah”, justificando uma guerra “justa” contra os romanos ou contra qualquer outro usurpador do poder concedido aos judeus pelo próprio Pai Celestial. Este era o homem que acreditou piamente que Jesus, o Nazareno viera para anunciar o novo reino dos judeus, onde ele seria o representante divino na terra, reinando absoluto não apenas entre os judeus, mas também entre todos os gentios. Esse era o homem que curvara-se ante as evidências de que o Nazareno trazia consigo o germe do renascimento, o verdadeiro Cristo, o Filho do Homem que caminhava entre nós e trazia a Boa Nova, da redenção, do direito, da justiça e, principalmente, da verdade.
Todavia, quando este simplesmente renegou os ideais pregados em consonância com as convicções estabelecidas pelo movimento zelote, declarando que os impostos romanos deveriam ser pagos, Judas experimentou, mais uma vez em sua vida, a decepção, o sabor amargo de ver seu castelo de cartas desmoronar sobre sua cabeça. Trata-se de uma indução ao óbvio: aquele não era o escolhido, aquele não era o filho de Deus que veio à terra libertar o povo judeu do jugo romano, aquele, enfim, não era divino, apenas humano e um humano fraco, incapaz de liderar uma reviravolta no comando do Oriente Médio conhecido.
Como, então, acreditar nele e em suas parábolas. Como crer em alguém que anunciando-se como o Enviado, admitia publicamente que dar a César o que é de César era o mais correto a fazer. Aliás, o que é um livro sem a espada? O que é crer nas palavras, mas frustrar-se com os atos? E, afinal, porque seguir um homem que não coadunava seus princípios com suas atitudes?
Não. Ele não poderia continuar acreditando em Jesus, posto que seus atos demonstravam às escâncaras, que nada iria mudar no reino da terra, independentemente do que viesse a acontecer no reino dos céus, até mesmo porque, segundo as próprias palavras do Messias: “É preciso morrer para ressuscitar, morrer para si mesmo e nascer novamente” (2007:137); Judas acreditava, a partir daquele momento que aquele homem não poderia liderá-lo, nem mesmo ao povo judeu. Vinha à sua mente outra assertiva do Nazareno que dizia: “Não é a morte que salva e cura, é a consciência com a qual a percorremos”, (2007:152).
Foi simples assim. Bastava ao Iscariotes terminar com o seu sofrimento, bem como com o sofrimento do Nazareno, entrega-lo aos romanos antes que os zelotes revoltados se lançassem contra ele e despejassem sobre ele toda a sua ira, toda a sua revolta, todo o seu descontentamento com pensamentos que não se harmonizavam com as ações dele esperadas. Entrega-lo aos Romanos, usando-se dos membros do Sinédrio seria o melhor a fazer, pondo fim ao tormento e sofrimento de todos.
Extraído do próprio livro orientador do presente artigo temos uma passagem significativa, a qual transcrevemos:
“Um homem desiludido é um homem perigoso. Um homem traído só pode tornar-se um traidor. Essa é a lei de Moisés: ‘olho por olho, dente por dente’, e ele deve cumpri-la,… esperamos do outro aquilo que não queremos ou não ousamos pedir a nós mesmos”. (2007:162).
E é exatamente desta forma que age o Iscariotes. Traindo Jesus ele estaria se libertando do controle de suas palavras e tornando mais verdadeiras ainda as profecias a respeito do redentor que caminhava sobre a terra, cumprindo aquele gesto que o próprio Nazareno já havia predestinado: a traição de um daqueles que o cercavam. Ou seja, “o que tiveres de fazer, faça-o rápido”, não se tratando, pois, de uma vingança em face da sua decepção, mas apenas o cumprimento de seu desígnio. Ele nascera, crescera e vivera sob a égide de sua missão, o seu destino. Cumprir com o destino era (e ainda é) para todos nós a tarefa mais indômita, o eterno sofrimento da alma frente à razão, pois não há razão na fé. Fé é apenas fé, razão é em si mesmo. Pesando as considerações expendidas pelo próprio autor ora estudado concordamos que a transgressão consciente da lei é uma falta de menor gravidade do que permanecer pelo resto da vida inconsciente, até mesmo porque no Juízo Final todos (inclusive o demônio) serão salvos. A redenção espera por todos, até mesmo por Judas o traidor não de um ideal, mas do ideal intrincado na cerne da existência humana: trair a si mesmo e não permanecer mero espectador dos eventos que a sua frente se descortinam diariamente.
O espeque do último ato praticado pelo Iscariote é aquele que o autor considerou da seguinte forma: “Quando nos fechamos ao perdão possível, a única saída é enforcar-se, porém sem nos esquecermos que as conseqüências de um ato finito não podem ser infinitas”, (2007:164). Todos nós nos tornamos, assim, cúmplices do duplo ato de Judas – traição e enforcamento – ou seja, a traição necessária para criar-se ou manter-se uma expectativa possível, mesmo que messiânica, com vistas ao futuro e à existência da raça humana e o enforcamento como resolução de vida eivada de decepção e traição. Agimos diariamente diante das crises que se nos apresentam nesta exata proporção, traindo e nos enforcando perante a árvore que nos deu vida. A mesma árvore em que Adão e Eva conheceram do bem, do mal e da ciência e sabedoria.
Como não acreditarmos que esta dicotomia fosse possível como ainda o é. Não existe herói sem vilão, nem dirigente sem dirigidos, assim como não existe um mártir sem seu traidor, aquele que nasceu e foi concebido para cumprir um destino à primeira vista cruel e insensível, mas resoluto em sua própria essência. O confronto verdadeiro e necessário entre aquilo que é (superfície) e aquele que é (essência), nos tornando mais que peças em um tabuleiro divino, mas também elementos essenciais para que o jogo possa acontecer. Não um mero jogo de dados, no qual a sorte é o principal elemento. Um jogo mais sofisticado – o jogo de xadrez – em que razão e emoção não se separam, não de distanciam uma da outra; estão mais próximas do que podemos imaginar, transformando as jogadas em vidas, mortes, renascimentos e ressurreições repletas de sentimentos próprios e necessários aos seres humanos.
O que sabemos – aliás, o que sabemos é que nada sabemos – sabemos apenas porque acreditamos que assim deva ser. Quando os árabes dizem: “assim está escrito”, significa que a tradição se fez verdade e que dela nunca podemos escapar. Onde ficamos quando algo que ansiamos esperançosamente não acontece? Somos literalmente lançados no limbo de nossas próprias almas, onde os sentimentos não existem e onde as expectativas já nascem mortas.
Acreditamos que foi exatamente isso que atormentava Judas quando do pernicioso ato da traição assombrava a sua mente. Ele estava no seu próprio limbo, observando quais as suas possibilidades ante o inevitável. O desmoronamento de seus sonhos e de seus anseios acabava de acontecer e nada mais podia ser feito para reverter esse fato. Fatos compõe a vida, e para ele o fato estava consumado.
A revelação não era apenas aquela contida nas profecias e no escritos sagrados. Era um evento real e perceptível capaz de gerar conseqüências de per si para todas as épocas futuras. O evento do Cristo não poderia consumar-se sem que o evento Judas também se consumasse, desde o início até o seu próprio fim. O fim do homem era o divino e o divino estava encerrado no próprio homem. Nada mais havia o que dizer ou o que fazer ou pensar. Tudo fora previamente planejado pelo Criador para que os eventos se sucedessem a fim de estabelecer novos parâmetros para a existência humana.
Quem ainda agora é capaz de pensar apenas no surgimento de uma religião não foi capaz de compreender a importância das palavras de Jesus e na força de sua repercussão frente à própria existência humana dali para frente. Não era apenas o caso de um homem fazendo a diferença, mas de homens alterando sua forma de pensar e de agir frente aos seus destinos, criando novas perspectivas que apenas poderiam ser consideradas como devaneios impossíveis sem os quais o mundo seria o mesmo.
A partir daquele evento, não apenas a vida de Jesus e de Judas estavam transmutando-se em si mesmas, mas também a própria existência do homem estava sendo modificada, findando o encasula mento para a definitiva libertação da alma rumo ao infinito, pois o finito encerrava-se em si mesmo a na sua pequena e diminuta perspectiva existencial etérea a vã.
O sopro do Criador fazia-se mais presente do que nunca em nossas almas e em nossos corações. Não éramos mais crianças desfrutando de um mundo novo e desconhecido, éramos exploradores de nosso próprio interior, o interior que traz em si a parcela da alma do Pai. Sabemos, finalmente, que não estamos sozinhos e que caminhamos por este vale de lágrimas com a finalidade de cumprirmos nossa essência sem a qual a superfície nada mais era que uma casca oca e vazia, sem sentido e sem qualquer motivação.
A motivação do Nazareno não era apenas mais um devaneio entre tantos, era o cumprimento de uma profecia que se concretizava pelas mãos do próprio homem, um homem chamado Judas que também tinha dentro de si a divindade que todos nós possuímos desde o nascimento até a morte e para além dela.
Inexistem dúvidas acerca do que somos, mas sempre haverá a necessária dúvida de o que somos: o que somos é a nossa essência, a vida e a morte são apenas facetas desta mesma moeda. Existir sem qualquer finalidade não é a intenção do poder criador que nos concebeu. Existir com a finalidade de realizarmos algo maior do que nós mesmos é o elemento essencial que nos retira a humanidade e nos lança na divindade. Assim também o foi com Judas, sua vida não foi em vão. Havia uma missão, uma finalidade, um sentido como o sentido de todos nós. E que não se possa pensar em algo menor do que o infinito, posto que ele nos realiza ao realizar-se através de nós.
São Paulo, 20 de agosto de 2007.
BIBLIOGRAFIA:
LELOUP, Jean-Ives – JUDAS E JESUS – Duas faces de uma única revelação – Editora Vozes. São Paulo. 2007.
* Graduação em Administração de Empresas pela Escola Superior de Administração de Negócios (ESAN), Campus de São Paulo (ano de 1995) – pós-graduação em Administração Estratégica pela mesma escola superior. graduado no curso de Direito na Universidade São Francisco – Campus de São Paulo (2006). Servidor público federal, lotado no Judiciário Trabalhista, junto ao Tribunal Regional do Trabalho da Segunda Região (primeira instância). ocupando atualmente o cargo de assistente de diretor.
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