Quando, na segunda metade do século XVII, John
Locke escreveu suas Cartas Sobre A
Tolerância, o primeiro livro de alguns outros sobre o mesmo assunto, como
os de Diderot e de Voltaire, o fez dentro de uma conjuntura de atritos religiosos
entre católicos, puritanos, anglicanos, etc.
Não passou pela cabeça do grande filósofo liberal
britânico uma atitude de tolerância em relação a ateus e agnósticos. Sobre os
primeiros, Locke nada diz e sobre os segundos, careceria de termo adequado para
falar, porque este último neologismo nem existia. Foi criado no século XIX pelo
biólogo Thomas Huxley para caracterizar seu ceticismo em relação a Deus e à
religião.
E por “ceticismo”
– no preciso sentido filosófico do termo – não devemos entender “descrença” nem
“niilismo”, mas sim a posição daquele que alega não ter razões para acreditar
em – nem para desacreditar de – qualquer coisa. E, em conseqüência disto, pôr imediatamente
em pratica a epoché, isto é: a
suspensão de juízo. De onde se conclui que o agnosticismo é uma espécie de
ceticismo em relação a Deus e à religião.
Todavia, se fôssemos falar em tolerância religiosa
no nosso tempo, não só teríamos de incluir tolerância em relação a toda e
qualquer religião, como também não poderíamos excluir ao menos três
alternativas para a crença religiosa:
(1) Indiferentismo em relação a Deus e à religião (que penso ser a posição assumida por milhões de
indivíduos no nosso tempo).
(2) Ateísmo,
que se caracteriza por uma descrença procurando fundamentação, filosófica e/ou
científica, como é o conhecido caso do cientista Richard Dawkins e seu
proselitismo ateísta.
(3) Agnosticismo, que se caracteriza por não ter razões para crer em
Deus nem para descrer de Deus e da religião – posição esta sustentada, após o
biólogo Thomas Huxley, pelo filósofo e matemático Bertrand Russell. E tenho
motivos para acreditar que é hoje a posição da maioria dos filósofos e
cientistas, embora desconheça qualquer estatística a respeito do assunto.
Salvo engano meu, todas as Constituições
democráticas de nosso tempo sustentam a liberdade de culto, coisa que inclui
obviamente tanto o direito de cultuar a Deus como a Mamom, o Bezerro de Ouro –
que conta com milhões de adeptos em todo mundo – e também o direito de se
abster de qualquer crença religiosa.
Mesmo no Reino Unido, em que o Estado é de
confissão anglicana e a rainha é chefe da Igreja Anglicana, o direito britânico
aceita a completa liberdade de culto – até mesmo a do culto islâmico, declarado
inimigo da civilização ocidental e seus “depravados” costumes. Na realidade, a
liberdade de culto – ou a de não ser adepto de nenhum – está contida no mais
amplo direito de expressão.
Se, por hipótese, fôssemos obrigados por lei a ter
uma religião qualquer, já não estaria mais em jogo um direito, mas sim um dever
[como é o caso do detestável voto obrigatório na legislação brasileira]. Mas a
crença em Deus e a adesão a essa ou àquela religião é uma questão de foro
íntimo.
Não se pode converter ninguém à força, pois tudo
que conseguirá aquele que tentar isso – como já foi lamentavelmente tentado em épocas
passadas – não realizará uma autêntica conversão, pois esta depende
fundamentalmente de um ato livre e espontâneo de aceitação da parte do
indivíduo a ser convertido.
Sobre esse assunto, a matéria abaixo vem bem a
calhar…
Deu no Yahoo Notícias em 3 Dez, 01h31 : “O
Ministério Público Federal (MPF)
Brasil Urgente, da TV Bandeirantes, se retrate de uma atitude preconceituosa
contra ateus, veiculada no último dia 27 de julho.
A TV
Bandeirantes possui concessão pública e não pode ser usada para disseminar
preconceito, segundo o MPF. De acordo com o MPF, o apresentador José Luiz
Datena e o repórter Márcio Campos ficaram por 50 minutos proferindo ofensas e
declarações preconceituosas contra cidadãos ateus durante reportagem sobre um
crime bárbaro. Em todo o tempo em que a matéria ficou no ar, o apresentador associava aos ateus a ideia
de que só quem não acreditava em Deus poderia ser capaz de cometer tais crimes. [O grifo é nosso].
A ação civil
pública, com pedido de liminar, solicita que a Rede Bandeirantes de Televisão
seja obrigada a exibir, durante o programa “Brasil Urgente”, um
quadro com retratação das declarações ofensivas às pessoas ateias, bem como
esclarecimentos à população acerca da diversidade religiosa e da liberdade de
consciência e de crença no Brasil, com duração de no mínimo o dobro do tempo
usado para exibição das mensagens ofensivas.”
Penso que o MP
Federal tem toda razão, pois ele está procurando inibir atitudes fanáticas
prejudiciais ao outro, bem como defendendo a liberdade de opção em relação à
religião, coisa que inclui a liberdade de não ter nenhuma por adotar qualquer
uma das três posições elencadas acima: (1) indiferentismo, (2) ateísmo e/ou (3)
agnosticismo.
Penso ainda que é um grande equívoco achar que um
ateu seja um criminoso em potencial e, a
contario sensu, um homem religioso seja incapaz de praticar crimes, ou que
pelo fato de não acreditar em Deus, um ateu seja necessariamente antiético e, a contrario sensu, pelo fato de
manifestar sua crença em Deus um homem religioso seja necessariamente um homem
ético.
Por outro lado, o homem religioso deve gozar da
alternativa de tentar converter um não-religioso, mediante uma persuasão amistosa e estar de antemão
devidamente preparado para receber uma recusa. O que não é eticamente correto é
ofender ou menosprezar um indivíduo por ele ser indiferente, ateu e/ou
agnóstico.
Podemos não apreciar essas posições, mas temos o
dever de respeitá-las, assim como quem assume uma delas tem o dever de
respeitar a nossa: o espírito da tolerância deve ser uma via de duas mãos, baseado
que está no respeito mútuo sem o qual ela se torna simplesmente impossível.
Tudo isto que dissemos acima é essencial para que
haja uma autêntica tolerância religiosa e não um fundamentalismo religioso –
como o dos xiitas muçulmanos – ou um fundamentalismo ateísta, como o de Richard
Dawkins – opostos que se identificam quanto ao seu detestável fanatismo.
Fundamentalismos e totalitarismos de qualquer cepa
são inimigos tanto da tolerância quanto da democracia cujo denominador comum é
a pluralidade, tanto de ideologias como de crenças religiosas.
Mesmo assim, não cabe combater os fundamentalismos
e os totalitarismos mediante o argumento da força, mas sim mediante a força do
argumento concedendo sempre ao interlocutor o direito de contra-argumentar.
* Doutor em Filosofia pela UFRJ. Professor
Adjunto IV do Depto. de Filosofia da UFRJ. Ex-Pesquisador do CNPq. Ex-Membro do
ILTC [Instituto de Lógica, Filosofia e Teoria da Ciência], da SBEC [Sociedade
Brasileira de Estudos Clássicos]. Membro Fundador da Sociedade Brasileira de
Análise Filosófica. Autor de Problemas de Filosofia da Linguagem (EDUFF,
Niterói, 1985); O Dizível e O Indizível (Papirus, Campinas, 1989); Ética Mínima
Para Homens Práticos (Instituto Liberal, Rio de Janeiro, 1995). O Problema da Ficção
na Filosofia Analítica (Editora UEL, Londrina, 1999). Ceticismo ou Senso Comum?
(EDIPUCRS, Porto Alegre, 1999). Deus Existe? Uma Investigação Filosófica.
(Editora UEL, Londrina, 2000) . Liberdade ou Igualdade? ( EDIPUCRS, Porto
Alegre, 2002). Co-autor de Significado, Verdade e Ação (EDUF, Niterói, 1985);
Paradigmas Filosóficos da Atualidade (Papirus, Campinas, 1989); O Século XX: O
Nascimento da Ciência Contemporânea (Ed. CLE-UNICAMP, 1994); Saber, Verdade e
Impasse (Nau, Rio de Janeiro, 1995; A Filosofia Analítica no Brasil (Papirus,
1995); Pré-Socráticos: A Invenção da Filosofia (Papirus, 2000) Já apresentou 71
comunicações em encontros acadêmicos e publicou 46 artigos. Atualmente tem
escrito regularmente artigos para www.parlata.com.br,www.rplib.com.br ,
www.avozdocidadao.com.br e para www.cieep.org.br , do qual é membro do conselho
editorial.