Filosofia do Direito

Autofagia do Direito

 

“Nosso direito zomba e se afasta da justiça”

 

Michel Villey

 

 

 

O triunfo do positivismo jurídico teve desdobramentos práticos imediatos, desde que derrotou a visão aristotélica do direito natural. O momento crucial desse processo combinou a consolidação dos Estados nacionais modernos com as obras de Maquiavel, na ciência política, e a de Hobbes, no âmbito estrito da filosofia política. Estamos aqui no período que media o século XIV e o século XVII. É a fundação da modernidade.

 

O que separa os modernos dos antigos é basicamente a noção de que a justiça, e, portanto, o direito, surge antes do homem, tem raiz transcendente. Era esse ponto que opunha Platão a todos os sofistas. Reconhecer que o fundamento do direito estava na lei natural e que esta está além do homem, não é por ele criada, mas descoberta, foi o salto mais sensacional do filósofo, só comparável à verdade revelada das Escrituras. Desde então, a história do direito caminhou para o reconhecimento do telos oriundo da lei natural e os governantes esforçavam-se para estar de acordo com ela. Essa visão de mundo mudou novamente por ocasião do Renascimento.

 

A descoberta da lei natural é a síntese do processo civilizatório, que terá no cristianismo o apogeu e o mecanismo para se espalhar pelo mundo. O direito romano é filho de Aristóteles e, ainda que nos aspectos meramente formais, ele persiste até nossos dias. Reminiscência de um tempo de inteireza da alma.

 

Aristóteles deu um passo além, ao mostrar que o direito comportava múltiplas e variadas formas, sem todavia perder a sua raiz transcendente, a lei natural. O direito é para ele uma ciência, portanto produto da observação humana. Do mesmo jeito, as formas de governo podiam variar, mas a filosofia tinha os meios para orientar os atores políticos na busca da verdadeira justiça. Os períodos de caos eram justamente aqueles em que a justiça ficava ofuscada ou negada por governantes ignorantes e aventureiros, que precisavam ser removidos.

 

Poder e direito derivavam, em última análise, da autoridade divina. A demagogia sofista de que todo poder supostamente emana do povo foi derrogada por esses dois filósofos, ressuscitando apenas nos tempos modernos. Essa demagogia é a crença que se instalou nos novos Estado nacionais, quando o ateísmo passou a instruir os governantes.

 

É longa a história do positivismo jurídico, mas a sua essência é que ele usurpa a autoridade da lei natural para a lei humana positiva, como se fossem uma única e mesma coisa. A partir daí, criou-se o caminho para o totalitarismo como forma de governo, fundado no correspondente niilismo moral. A única ética a prevalecer agora é a ética cínica da tomada do poder e da sua manutenção. “Os fins justificam os meios”, escreveu Maquiavel, ecoando para os tempos vindouros.

 

Mas Maquiavel não era burro. Na sua filosofia ainda tinha uma elemento transcendente vinculando a ação humana, a Fortuna, ou a Roda da Fortuna. A metáfora de que o novo príncipe deveria dominá-la, como a uma mulher, não passou de tirada nada espirituosa e de mau gosto do florentino. Ele sempre soube que a Roda da Fortuna era encimada por um anjo dividido entre o bem e o mal.

 

Esse elemento transcendente perdeu-se na pena de seus sucessores. Já em Hobbes deixou de existir e, no seu lugar, foi posta a ficção dos direitos naturais estóicos, os assim chamados direitos de primeira geração. Aqui foram fundados o comunismo e o liberalismo, irmãos siameses da modernidade, filhos da mesma base filosófica.

 

Hobbes sabia do monstro que estava criando, o Leviatã, e por isso mesmo tentou, ainda nos primórdios da loucura da modernidade, instituir os limites do Estado, em contraponto ao indivíduo. Intuiu o que estava por vir. Locke tomará essa idéia e formatará o liberalismo clássico, consagrando a propriedade privada e propondo a separação enfática entre o poder econômico e o poder político. Sim, há uma grande generosidade e mesmo uma sabedoria nessa proposição, mas ela foi derrotada justamente porque, produto da engenharia humana, foi por outra soterrada.

 

O liberalismo político morreu. Basta ver o tamanho que os Estados nacionais alcançaram atualmente, meça-se por qualquer critério: PIB, número de funcionários, poder de polícia. Toda a vida prática agora é contingente do poder de Estado. Não há mais vida fora do Estado. Somos todos escravos do Leviatã.

 

O liberalismo econômico também morreu por falta de adeptos. No mundo inteiro os partidos políticos competitivos, capazes de tomarem as rédeas do poder, são defensores de variantes das ideologias coletivistas. O liberalismo não é páreo real nas campanhas eleitorais. 

 

O liberalismo político morreu porque perdeu a batalha com Rousseau e seus sucessores coletivistas. Se o Estado pode tudo e se ele é produto da razão humana, nada mais natural que se procure a perfectibilidade em vida. Afinal, a lei pode tudo, inclusive ignorar os perigos e riscos da existência humana, a realidade imediata do homem. Declararam-se os direitos do homem e a esquizofrenia apossou-se de todos os sistemas jurídicos. É Rousseau triunfante que fala nessas declarações demagógicas.

 

A agonia da grande crise atualmente em curso mostra a loucura dessa visão de mundo. O que se passa na Grécia e na União Européia não traz bons presságios. O que se passa nos EUA também. No cerne da crise a esfinge que pede para ser decifrada: o Estado nacional e seu direito autofágico.

 

A conseqüência é a judicialização de tudo, agora centralizado no Estado. A moeda passou a ser criada por lei, deixou de ser natural; empregos agora são cada vez mais dádiva do poder de Estado, seja diretamente, na multidão de funcionários que contrata, seja por patrocinar o “desenvolvimento”, quer dizer, bancar, de todas as formas, a oligopolização dos setores produtivos, destruindo as pequenas e médias empresas. Os setores produtivos agora são dependentes de financiamentos, regulação, compras e da boa vontade do Estado. Nada acontece fora do Estado.

 

A desproporção de poder entre as criaturas humanas e o Estado nunca foi tamanha. Será talvez por isso que as prisões foram multiplicadas e a população encarcerada está alçando cifras nunca antes vistas. A perfeição do positivismo jurídico é o Estado-prisão, sempre perfectibilista, todo poderoso, agora totalitário na mais temível forma: dento da legalidade, mesmo legitimado pela estupidez das massas adestradas para o socialismo.

 

Uma antiga definição de Estado é a de que ele é violência organizada. Se olharmos como as polícias foram multiplicadas e aparelhadas é que veremos como esse poder hoje se coloca de forma esmagadora diante do indivíduo isolado. As novas tecnologias alavancaram esse processo de expansão ao paroxismo. O grande inimigo do homem agora é o próprio Estado do qual é súdito, que dispõe a bel prazer de sua renda, de sua liberdade, de seus empregos, de suas vontades, de sua riqueza.

 

O homem deixou de ser sujeito para ser uma simples massa de moldar nas mãos dos servos do Estado, a vasta burocracia que se esforça, a cada dia, para transformar a terra no inferno, prometendo o paraíso: a supressão dos riscos, desde que ele disponha do poder total.

 

Valha-nos Nosso Senhor Jesus Cristo! Livre-nos da Terceira Tentação!

 

* José Nivaldo Cordeiro, Executivo, nascido no Ceará. Reside atualmente em São Paulo. Declaradamente liberal, é um respeitado crítico das idéias coletivistas. É um dos mais relevantes articulistas nacionais do momento, escrevendo artigos diários para diversos jornais e sites nacionais. É Diretor da ANL – Associação Nacional de Livrarias.

 

Como citar e referenciar este artigo:
CORDEIRO, José Nivaldo. Autofagia do Direito. Florianópolis: Portal Jurídico Investidura, 2010. Disponível em: https://investidura.com.br/artigos/filosofiadodireito/autofagia-do-direito/ Acesso em: 09 out. 2024