Lucas de Cássio Cunha Aranha [1]
RESUMO
Considerando a importância basilar que as concepções platônicas e aristotélicas possuem perante as ciências jurídicas e para as demais divisões do grupo das ciências humanas, interessante se faz um contato, senão pormenorizado e minucioso, mas sim exordial e preliminar, acerca do pensamento de Platão e Aristóteles sobre a justiça. E o presente trabalha apresenta esse escopo, portando-se então como um ponto de partida para estudos mais aprofundados acerca dos filósofos supracitados, sem deixar também de mostrar o trabalho deles pela ótica de pensadores contemporâneos, destacando-se assim o alemão Hans Kelsen. A pesquisa utilizada no deslinde da temática abordada é puramente bibliográfica.
Palavras-chave: Aristóteles. Platão. Justiça.
INTRODUÇÃO
Platão e Aristóteles. Dois filósofos gregos do período clássico cujo pensamento é um dos alicerces da filosofia ocidental, assim como suas concepções de justiça são basilares para o Direito.
O primeiro nasceu em Atenas e viveu entre 427 e 347 a.C., sendo discípulo de Sócrates, a quem considerou “o mais sábio e o mais justo dos homens” (COTRIM; FERNANDES, 2012, p. 201) e cuja morte causara-lhe tamanha indignação, a qual foi expressada através da criação da alegoria da caverna.
Platão também foi responsável por uma das primeiras instituições de ensino superior do ocidente, a Academia. A maior parte de seus pensamentos fora registrada nas falas de Sócrates dentro dos diálogos socráticos, obra de Platão.
O dualismo platônico, a teoria das ideias e a alegoria da caverna são alguns exemplos das produções platônicos aos quais os cursos de ensino superior da área de humanas estão habituados.
O segundo filósofo nasceu em Estagira, Macedônia e viveu entre 384 e 332 a.C. Sendo aluno de Platão na Academia, Aristóteles também teria escrito centenas de obras e fundou sua própria escola, o Liceu. Ele discordou de seu mestre, invertendo o pensamento platônico e elaborando uma visão científica da realidade, desenvolvendo assim a lógica, que serviria de ferramenta para o raciocínio.
Platão e Aristóteles apresentam extrema importância para Filosofia do Direito, Hermenêutica, Lógica e Argumentação Jurídica, assim como para o Direito como um todo, tendo em vista seus trabalhos desenvolvidos sobre ética, moral e justiça.
1 A CONCEPÇÃO DE JUSTIÇA
Pode-se afirmar que a ideia de justiça foi se desenvolvendo juntamente com o pensamento filosófico na Grécia antiga, seguindo, portanto um caminho linear desde a concepção mais primitiva até as desenvolvidas no período pós-socrático.
[…] primordialmente, a noção de justiça exsurge da divindade. Assim é que Homero e Hesíodo surge simbolizada na deusa Têmis, conselheira de Zeus. Não sem razão as decisões pronunciadas pelo soberano chamavam-se temistes, eis que inspiradas na vontade divina que representava a justiça. A Odisseia e a Ilíada nos dão provas de que a lei da justiça e sua sanção são divinas. Em Os Trabalhos e os Dias expressa Hesíodo semelhante pensamento (LEITE, 2011, p. 18).
Dessa primitiva concepção de justiça, oriunda do conhecimento mítico-religioso, percebesse dois aspectos que merecem ser destacados, segundo Flamarion Tavares Leite (2011): a origem divina e o caráter retributivo, podendo esse ser considerado uma consequência lógica do primeiro aspecto citado. Os deuses despontaram nos poemas homéricos como fonte de toda justiça e o seu castigo mostrara-se algo inflexível.
Dentro de uma perspectiva mais positivista, Norberto Bobbio (2006) apresenta em seu livro O positivismo jurídico, duas concepções acerca da justiça. A primeira é denominada realista e diz que justiça nada mais é do que a expressão da vontade do mais forte. A segunda, denominada convencionalista, afirma que justiça é o que os homens decidiram dela fazer.
O presente trabalho dará principal enfoque às concepções de justiça oriundas do período socrático, uma vez que as definições de Platão e Aristóteles são as que apresentam maior relevância paro o Direito e para a Filosofia do Direito, mas também apresentará o ponto de vista do alemão Hans Kelsen.
1.1 A definição de Platão
Platão concebe a justiça como virtude que dá a cada um o que lhe é devido, sendo essa justiça exercida pelo homem no seu íntimo e na pólis, onde ele se relaciona com os demais homens.
[…] o justo se manifestaria em dois planos. No interior do indivíduo, estaria atrelada a submissão dos instintos à razão; e na polis, estaria adequada à ordenação de cada um em sua melhor função, ou seja, marcada pela sistematização entre as classes laboriosas, como os artesãos (dedicados à produção de bens materiais), os guerreiros (soldados encarregados de defender a cidade), e os filósofos (guardiões incumbidos de zelar pela observância das leis e promotores principais da justiça idealizada) (FERREIRA, 2012).
Um dos filósofos deveria ser escolhido para governar a pólis, tonando-se o rei-filósofo. Com isso, a cidade ideal se apoiaria numa divisão racional do trabalho, em que cada um exerceria uma função específica de acordo com sua competência.
“Como resultado dessa repartição de tarefas, a desigualdade entre os homens está presente em sua teoria da justiça, para a qual a igualdade não era sua preocupação” (FERREIRA, 2012), sendo que o importante para Platão era a construção do bem comum a partir de uma repartição adequada de funções, conforme a qualidade de cada tipo de homem e segundo a dotação de sua natureza, mesmo que a desigualdade se fizesse presente. Cada um deveria fazer sua parte para o benefício geral.
Flamarion Tavares Leite (2011) afirma que, para estabelecer o conceito de justiça, Platão o recolhe da tradição do pensamento filosófico grego e o aprofunda. Dessa forma, ele define a justiça como a causa mesma de toda ordem e harmonia, sendo necessário que cada parte faça o que tem de fazer, sem intrometimento nas demais.
1.2 A definição de Aristóteles
Foi em Ética a Nicômaco que Aristóteles formulou uma definição de justiça universal. Essa justiça universal é separada em outras duas específicas: justiça geral e justiça particular. A primeira designa como justo toda a conduta que for conforme a lei moral. Nesse sentido, a justiça inclui todas as virtudes, sendo equiparada a uma virtude moral universal.
Aristóteles observa que a justiça é a disposição da alma graças à qual elas se dispõem a fazer o que é justo, a agir justamente e a desejar o que é justo, sendo a forma mais elevada de excelência moral. Como essa concepção larga de justiça atua especialmente no campo abstrato das virtudes morais, Aristóteles observou que esse sentido geral de justiça não tinha relação direta com o direito, já que este último estaria vinculado à aplicação prática da justiça, a tal justiça particular. Isso porque não cabia aos juízes, por exemplo, conduzir os cidadãos à perfeição moral, mas sim resolver os problemas e os conflitos referentes aos bens e as cargas presentes na vida social (FERREIRA, 2012).
Já a justiça particular consiste na realização da igualdade entre o sujeito que age e o que sofre a ação. Ela é subdividida em distributiva (distribuição de bens e honrarias de acordo com os méritos de cada uma) e correlativa (visa à semelhança das transações entre os indivíduos). Essa última se subdivide em reparativa, que visa reprimir a injustiça, e em comutativa, que preside os contratos e é essencialmente preventiva.
1.3 A concepção de Hans Kelsen e as definições de Justiça
Tendo em vista que a contribuição teórica kelseniana para o direito moderno tem grande relevância – como pode ser observado na prevalência da concepção positivista do direito na atualidade –, é importante destacar sua visão diante da filosofia sobre a Justiça em Platão e Aristóteles.
Segundo Kelsen, o pensamento platônico é constituído de uma influência nítida de seu mestre Sócrates, em sua dialética:
A especulação sobre a justiça nas obras da juventude de Platão está visivelmente sob a influência da dialética socrática. Ela não vai além de tentativas formalistas de definição e, em seu resultado, não ultrapassa análises conceituais inteiramente insuficientes. Trata-se, em grande parte, de tautologia sem conteúdo, como, por exemplo, a convicção exposta na Apologia de Sócrates de que é ruim cometer injustiça e desobedecer a quem é melhor do que nós. (KELSEN, 2000, p.273)
Platão explica que a injustiça seria a desobediência à lei de Deus (o bem absoluto) e dos outros homens – sendo estes os “melhores que nós” explicitados por Hans Kelsen.
Assim, há a evidência de um direito natural, preestabelecido por um ser superior, sendo não codificado; mas também há constatação da existência da lei positivada, criada pelo homem, que visa à regulação social:
Por isso, a fonte da justiça e, juntamente com ela, também a realização da justiça têm de ser relegadas do Aquém para o Além – temos de nos contentar na terra com uma justiça simplesmente relativa, que pode ser vislumbrada em cada ordem jurídica positiva e na situação de paz e segurança por esta mais ou menos assegurada. (KELSEN, 2011, p.65-66)
Já na análise do jurista acerca da doutrina da Justiça de Aristóteles, há uma evidente exaltação do viés positivista do Direito, ao relacionar este com aspectos do pensamento do filósofo.
Kelsen, em sua obra “O que é Justiça?” explica o procedimento da doutrina da mesotes aristotélica, de forma a distinguir a justiça em seu sentido geral da justiça em seu sentido estrito, particular; e os conceitos de legitimidade e igualdade. Desse modo, verifica que a justiça relaciona-se ao cumprimento, à conformidade com a lei estabelecida:
Sustenta-se que o termo “injusto” aplica-se ao homem que viola a lei e ao homem que toma mais do que lhe é devido, o homem parcial. Portanto, é claro que o homem respeitador da lei e o homem imparcial serão ambos justos. “O justo”, portanto, significa aquilo que é legítimo e aquilo que é igual ou imparcial, e “o injusto” significa aquilo que é ilegal e aquilo que é desigual ou parcial. (ARISTÓTELES In: KELSEN, 2001, grifo nosso)
Haja vista que a justiça no sentido de legitimidade é vista aqui como uma virtude absoluta e perfeita, Kelsen indica que Aristóteles faz uma exaltação, uma glorificação incondicional ao Direito positivo.
Ora, se a justiça consiste em respeitar a lei, os conceitos de “lei” (nominon) e “justiça” (dikaion) se confundem, tornando-se idênticos. Ainda segundo Hans Kelsen, por legitimidade o filósofo em questão, sem sombra de dúvida, compreende a conformidade com o direito positivo, pois segundo Aristóteles “[…] é claro, portanto, que todas as coisas legítimas são justas em um sentido da palavra, pois o que é legítimo é decidido pela legislação, e as diversas decisões da legislação nós chamamos regras de justiça.”.
Kelsen indaga sobre o Direito realmente ser compreendido como o Direito Positivo em seu sentido amplo, respondendo afirmativamente. A justificativa para tal posicionamento parte da concepção aristotélica de que os preceitos do Direito visam ao interesse comum à coletividade ou ao interesse de uma classe dominante, sendo aplicado a fim de alcançar e preservar a felicidade ou suas partes componentes.
Ainda em Aristóteles, a justiça particular (igualdade) se subdivide em distributiva e corretiva. A primeira, que consiste na distribuição da honra, da riqueza e dos bens divisíveis em quotas iguais ou desiguais entre os membros da comunidade, é estabelecida a partir da lógica matemática.
Essa só poderá, segundo Kelsen, ser aplicada apenas na condição do Direito Positivo decidir “a questão de quais direitos devem ser conferidos aos cidadãos e quais diferenças entre eles devem ser relevantes”. Então, a norma positivada será aplicada conforme o seu próprio significado. A legitimidade e a legalidade são significadas pela igualdade perante o Direito, a Justiça.
Para o jurista, assim é determinado o que é devido a todos, justamente pela legitimidade do Direito Positivo por essa lógica aristotélica.
Já a segunda é instituída por um princípio corretivo. Distingue-se em “voluntárias” e “involuntárias”, coincidindo, respectivamente com o que é abrangido pelo Direito Civil e pelo Direito Penal, ou Criminal. Aristóteles cita exemplo de situações abarcadas por ambas.
As transações voluntárias consistem, por exemplo, em “vender, comprar, emprestar a juros, penhorar, emprestar sem juros, dar em sinal, alugar […]”. Já as involuntárias em algumas furtivas como “o roubo, o adultério, o envenenamento, o lenocínio, a sedução de escravos, o assassinato, o falso testemunho”, sendo outras ainda mais violentas, como “o assalto, o aprisionamento, o homicídio, o roubo com violência, a mutilação, a linguagem insultuosa, o tratamento insolente.” Com isso, Kelsen faz questão de destacar que todos esses crimes supracitados são puníveis pela ótica do Direito Positivo, sendo este, por natureza, uma ordem coercitiva.
É sabido que tanto na concepção platônica quanto na aristotélica não se chega a uma definição fixa de Justiça. Contudo, se chega a um único conceito que a filosofia racional é capaz de definir, segundo a visão kelseniana, através da relação entre o princípio de justiça no sentido de igualdade perante a lei (o Direito) e legitimidade, sendo este: “a lei lógica da contradição no que diz respeito à aplicação de uma norma geral do Direito Positivo a casos particulares”.
Desse modo, Kelsen conclui que ao essa filosofia racionalista pretender explicar o que é “justo” e tentar prescrever ao poder vigente a forma de legislar, “acaba por legitimar o poder estabelecido ao definir justiça como igualdade perante o Direito e, assim, declarar que o Direito Positivo é justo”.
Assim, percebe-se a postura pretenciosa de Kelsen à sua predileção ao positivismo jurídico, área pelo qual é reconhecida toda sua concepção teórica. Não obstante, cabe questionar: se tudo o que é justo consiste na obediência na lei estabelecida, infrações à dignidade humana cometidas, por exemplo, durante a vigência do nazi-fascismo europeu e no período da ditadura militar, protegidas na época por lei, podem ser consideradas justas? Até que ponto o justo é o que está previsto em lei?
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Diante do exposto, ambos os filósofos gregos do período clássico abordados possuem concepções que são basilares para o Direito e para a Filosofia do Direito.
Primeiramente, no presente trabalho, foi exposta uma concepção generalizada do que é justiça junto com apontamentos históricos sobre esse conceito.
A partir daí, obteve-se o conceito primitivo de justiça, oriunda do conhecimento mítico-religioso. Também é apresentada uma visão mais positivista de tal tema, tendo como base o pensamento de Norberto Bobbio. Todavia, fixou-se em analisar e estudar os conceitos oriundos do período socrático na Grécia, além de um ponto de vista defendido pelo alemão Hans Kelsen.
Em seguida, tem-se em foco a definição de justiça segundo o filósofo grego Platão, que diz: “concebe a justiça como virtude, que dá a cada um o que lhe é devido, sendo essa justiça exercida pelo homem em seu íntimo e na pólis, onde ele se relaciona com os demais homens”.
Ademais, põe-se em foco a definição sob as concepções de Aristóteles. Na obra Ética a Nicômaco, o filósofo dividiu a justiça universal em justiça geral e particular. Sendo a primeira, a que designa como justo toda conduta que for conforme a lei moral. Já a segunda, consiste na realização da igualdade entre o sujeito que age e o que sofre a ação.
Por ultimo, é feito uma análise das concepções de Hans Kelsen às definições de justiça dos pensadores acima abordados. Para ele, o pensamento platônico é influenciado nitidamente por Sócrates, afirma que essa concepção não vai além de tentativas formalistas de definição e, por isso, seu resultado não ultrapassa análises conceituais inteiramente insuficientes.
Já no que diz respeito à analise do jurista acerca da doutrina de Aristóteles, Kelsen distingue a justiça em seu sentido geral e em seu sentido estrito, particular. Além de debruçar-se sobre os conceitos de legitimidade e igualdade. Dessa forma, verifica-se que a justiça relaciona-se com o cumprimento e conformidade à lei estabelecida.
Em suma, cumpriram-se todos os objetivos propostos em relação à elaboração desse trabalho. O mesmo tem como importância primordial apresentar as concepções dos filósofos Platão e Aristóteles, além de expor uma crítica a eles deferida pelo jurista alemão Hans Kelsen.
REFERÊNCIAS
BOBBIO, Norberto. O Positivismo Jurídico: lições de Filosofia do Direito. São Paulo: Ícone, 2006.
COTRIM, Gilberto; FERNANDES, Mirna. Conecte Filosofar. São Paulo: Saraiva, 2011.
FERREIRA, Walace. Justiça e Direito em Platão, Aristóteles e Hobbes, 2012. Disponível em: <http://jus.com.br/artigos/23037/justica-e-direito-em-platao-aristoteles-e-hobbes>. Acesso em: 05 nov 2014.
LEITE, F. T. Manual de Filosofia Geral e Jurídica: das origens a Kant. Rio de Janeiro: Forense, 2011. 186p.
KELSEN, Hans. A ilusão da Justiça. 3ª ed, São Paulo: Martins Fontes, 2000.
KELSEN, Hans. O que é Justiça? 3ª ed, São Paulo: Martins Fontes, 2001.
KELSEN, Hans. O problema da Justiça. 5ª ed, São Paulo: Martins Fontes: 2011.
[1] Acadêmico do curso de Direito, da Universidade Estadual do Maranhão (UEMA). E-mail: lucasdicassio@gmail.com