Filosofia do Direito

A Mentira Segundo Celso Lafer

A Mentira Segundo Celso Lafer

 

 

Mario Guerreiro *

 

 

Em  nossas freqüentes visitas de mais de 30 anos a livrarias e sebos, deparamo-nos com um livro de ensaios de Celso Lafer intitulado Desafios: ética e política (São Paulo. Siciliano.1995) em que constava um erudito ensaio sobre a mentira. Gostamos tanto que achamos interessante fazer um comentário crítico sobre o mesmo. Em uma passagem, o referido autor – ao contrário de alguns kantianos empedernidos – parece estar de acordo com Benjamin Constant em sua polêmica com Kant:

 

A polêmica Kant/Benjamin Constant merece registro nesta exposição porque permite colocar a seguinte pergunta básica: Por que, na tradição do pensamento ocidental, só Santo Agostinho e Kant sustentavam sem vacilação o dever da veracidade? É porque existem dificuldades para a vigência plena de uma ética de princípios [a expressão grifada é de Lafer], como sabem os juristas, que verificam com base na experiência que na prática não há princípio que não esteja sujeito à exceção na sua aplicação em casos concretos (por exemplo: a legítima defesa como exceção ao princípio de não matar). (Lafer, 1995, p.19).

 

Temos boas razões para entender que o supracitado autor está chamando de “ética de princípios” o mesmo que Max Weber chamava de Gesinnungsethik (ética da convicção) e assim qualificava a ética kantiana considerada por nós rigidamente odontológica. Reforça o que afirmamos o fato de Lafer recorrer ao pensamento jurídico, de modo a justificar as exceções a uma norma, ao contrário de Kant que não reconhecia exceção nenhuma ao dever da veracidade.

 

 Lafer oferece o caso da legítima defesa como exceção ao princípio de não matar, nós observamos que, para ser fiel à ética rigidamente deontológica de Kant, entre outros percalços, não se poderia distinguir um homicídio doloso de um culposo! Mas Lafer prossegue e parece estar dizendo o mesmo que já dissemos, apenas o faz com expressões diferentes…

 

A defesa dos critérios das exceções à regra, na hora do processo decisório, normalmente leva em conta uma prudente avaliação dos resultados destas exceções, provocando, assim, uma interpenetração de ética dos princípios e ética dos resultados. A ética dos resultados que, na formulação de Weber corresponde à ética da responsabilidade, não parte da racionalidade do valor consagrado no princípio, mas sim da racionalidade segundo o fim – o que quer dizer, da adequação dos meios aos fins perseguidos (Lafer, 1995, 19-20). [As expressões em itálicos são de Lafer].

 

Ora, adequação dos meios aos fins perseguidos é o modo como Weber define o que ele entende por racionalidade prática, mas é preciso dizer que este conceito é axiologicamente neutro (Wertfrei) para Weber, de tal modo que uma ação humana poderia estar satisfazendo esse critério e, no entanto, ser eticamente reprovável, caso meios escusos estejam atrelados a boas finalidades. Não é preciso dizer que para que uma ação humana seja eticamente correta, tanto o meio empregado como o fim visado têm que ser igualmente bons. Reiteramos e não nos cansaremos de reiterar: Os objetivos não justificam os meios.

 

Como já vimos, a ética da responsabilidade (Verantwortungsethik) para Weber se caracteriza como assumidamente teleológica, pois o indivíduo que age de acordo com ela, antes de realizar uma ação examina todas as conseqüências podendo ser previstas por ele e, caso ele considere que estas podem produzir maus resultados, ele se abstém de realizá-la. Esta que é a diferença em relação à ética da convicção (Gesinungsethik) em que o indivíduo age de acordo com um princípio considerado correto e não concede o menor interesse às possíveis conseqüências da sua ação. Mas Lafer completa seu pensamento dizendo:

 

Dessa maneira o juízo sobre a ação boa ou má vai além da prudência e torna-se técnico – o que quer dizer  kantianamente, que o imperativo categórico transforma-se num imperativo hipotético – e a relação entre meios e fins tratada como derivação da relação causa-efeito. (Lafer,1995, p.20).

 

Não entendemos por que razão uma avaliação das possíveis conseqüências das ações que serão desempenhadas por um agente moral e que devem ser feitas pelo mesmo antes de encetar um curso de ação “vai além da prudência”. Se entendermos por “prudência” uma virtude dianoética – como Aristóteles a entenderia – que consiste em ponderar seriamente os prós e contras em relação às conseqüências de uma ação, o juízo a que se refere Lafer não “vai além da prudência” : é parte constituinte da mesma.

 

Quanto ao imperativo categórico, Lafer tem razão ao dizer que ele se transforma em hipotético, ao menos para um agente moral que se permite avaliar as possíveis conseqüências de suas ações e, fazendo tal coisa, diz para si mesmo algo como: “Se eu fizer x, poderá ocorrer a conseqüência y”. E ao pensar assim, decide se deve ou não fazer x. Creio que Max Weber, bem como qualquer seguidor de uma ética conseqüencialista, concordaria que esse é o procedimento a ser adotado, mas Kant não poderia concordar com essa preocupação concernente à avaliação das conseqüências de uma ação. Mas é justamente aí que Lafer extrai em seguida uma importante conclusão a respeito da mentira:

 

Isso, do ponto de vista do uso da mentira, significa que, para uma ética de resultados, a derrogação do princípio de veracidade pode ser fundamentada na qualidade específica da pessoa e das dimensões técnicas de suas atividades, que ensejam as assim chamadas éticas profissionais, como é o caso da ética dos médicos que coloca o problema da mentira caridosa [a expressão grifada é de Lafer] – com a intenção de ajudar o paciente ou livrá-lo de algum mal maior – e também o da ética da política [ a expressão grifada é de Lafer] que Weber entende como uma ética da responsabilidade. (Lafer, 1995, p.20).

 

Se rejeitarmos a ética rigidamente deontológica de Kant, não teremos o menor problema em introduzir exceções ao Princípio de Veracidade que, conforme já mostramos, estão plenamente justificadas pela razão e pelo bom senso, toda vez que dizer a verdade acarreta um mal maior do que mentir e/ou fere um valor mais elevado do que ser fiel à veracidade –  a vida, no exemplo dado no caso de Benjamin Constant.

 

Uma vez abandonado o formalismo kantiano, extremamente distanciado das situações reais em que se encontram os agentes morais em seus efetivos cursos de ação, podemos então levar em consideração aquilo que Max Scheler (1966) denominou “ética material dos valores” e as assim chamadas éticas profissionais. Tal como fez Lafer, já examinamos o caso da mentira no contexto da ética médica. Segundo pensamos o procedimento, no caso da mentira, não difere em nada do que deve ser adotado em outros contextos: deve-se mentir toda vez que dizer a verdade pode acarretar um mal maior do que não dizer e/ou fere um valor mais elevado. Mas após ter reafirmado o valor da antikantiana ética da responsabilidade, Lafer tocou num ponto extremamente delicado:

 

Esta, como lei especial derrogaria a geral, e como lei superior derrogaria a inferior, na formulação de Maquiavel que preferia a salvação da pátria à salvação da sua alma. Esta formulação traduz-se num dualismo, vale dizer : na autonomia da política em relação à moral e, no limite, para o ator político, a redução da moral à política, pois nessa visão, para a ação política o que conta não são os princípios, mas os resultados – as gran cose [obs. nossa: “as grandes coisas” no italiano de Maquiavel] (Lafer, 1995, p.20). 

 

Entendendo que, por “esta”, Lafer faz referência indireta à ética na política e a contrapõe à ética da responsabilidade, ele se limita a expor a concepção de Maquiavel, que considerava sua pátria um valor mais elevado do que sua própria alma. Em outras palavras, tal como o Fausto de Goethe – ainda que visando a outra finalidade – Maquiavel estaria disposto a vender sua alma para o Diabo, se isto fosse a única maneira de salvar sua pátria. Para um indivíduo baseado na sensatez e na moderação, isto é um abominável fanatismo, porém de outra cepa diferente da do fanatismo de princípios de Kant: trata-se de um fanatismo de fins. Por exemplo: o de Stalin, que para garantir o desenvolvimento econômico da URSS, deixou 30 milhões de camponeses morrerem de fome e para quem “a morte de um indivíduo é uma tragédia, a de milhões uma estatística”.

 

Pensamos, no entanto, que Lafer interpreta corretamente Maquiavel quando atribui a este a autonomia da ação política em relação à ação moral e até mesmo a redução desta àquela. Ora, esta é uma inevitável conseqüência da adoção da máxima maquiavélica – tenha ele a formulado explicitamente ou não –  de que Os objetivos justificam os meios. Segundo pensamos, trata-se de uma grave distorção de uma ética teleológica, como as éticas de Benjamin Constant e a de Weber. Quando se diz por exemplo que, num dilema ético, devemos sacrificar o valor menos elevado em nome do mais elevado, é porque não há uma terceira alternativa e, neste caso, optamos pela que pode produzir um mal menor.

 

Mas neste caso o objetivo visado não estaria justificando o meio adotado? Não, pois nos casos em que se adota tal procedimento, fica caracterizada uma atitude defensiva e preservativa de um valor mais elevado. Desse modo, quando um assaltante vocifera para nós: “A bolsa ou a vida?!”, devemos entregar nosso patrimônio (o dinheiro) com vistas a preservar nossa vida, porque a vida é mais valiosa do que o patrimônio. No entanto, não é eticamente aceitável assaltar um banco para distribuir o dinheiro entre os pobres, não porque o fim não seja louvável, mas sim o meio empregado é reprovável.

 

Contudo, é preciso não perder de vista que uma coisa é como os políticos agem de facto, outra, notadamente distinta, como eles devem agir de jure. A confusão do ser com o dever ser e/ou do plano da efetiva ação humana com o plano valorativo-normativo é uma das piores que se podem fazer. Se o que está em jogo é uma descrição de como os políticos se comportam no cenário político, não temos a menor dúvida de que a ética fica geralmente reduzida à política e não necessariamente em nome das “grandes coisas”, como dizia Maquiavel, porém em nome de interesses corporativos e pessoais.

 

Mas se o que está em jogo é uma valoração de como eles se comportam, não temos a menor dúvida em afirmar que, na maioria das vezes, eles costumam fazer coisas que nunca deveriam ter feito. E ainda que todo mundo faça determinadas coisa abomináveis, o fato de que as fazem não justifica eticamente fazê-las, nem muito menos nos obriga a fazê-las, para estar de acordo com a maioria, mas não podendo evitar que sejamos considerados indivíduos incapazes de pensar com suas próprias cabeças e adotar seus próprios valores – caindo no popular: um bando de Maria-vai-com-as-outras.

 

 

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Como citar e referenciar este artigo:
GUERREIRO, Mario. A Mentira Segundo Celso Lafer. Florianópolis: Portal Jurídico Investidura, 2008. Disponível em: https://investidura.com.br/artigos/filosofiadodireito/amentira/ Acesso em: 08 dez. 2024