Filosofia do Direito

A destruição do senso comum pela filosofia de Gramsci (Primeira Parte)

 

 

A expressão “senso comum” vem do latim sensus communis que, por sua vez é uma tradução do conceito aristotélico de koiné doxa, conceito este aparentado com o que Euclides, na sua geometria, entendia por “noção comum” e que hoje denominamos “axioma”.

 

Se quisermos buscar uma locução capaz de satisfazer, tanto a precisão conceitual da geometria como a da filosofia voltada para uma forma de conhecimento, temos razões para acreditar que a melhor é autoevidência, i.e. aquilo que é em si mesmo e por si mesmo portador de evidência.

 

Desse modo, trata-se de uma forma de conhecimento: o conhecimento comum, pensado em contraposição ao conhecimento especializado. Se este só é possuído por alguns indivíduos e desconhecido por muitos, aquele é possuído por todos os indivíduos humanos dotados de mínimo discernimento, inclusive pelos possuidores deste ou daquele subtipo de conhecimento especializado.

 

Isto se dá, porque qualquer que seja ele, trata-se um acréscimo feito àquele, não uma exclusão ou eliminação, ou seja: a ciência e a filosofia são refinamentos do senso comum.

 

Embora esta última asserção tenha sido endossada por Aristóteles, pela tradição escolástica e pela maioria dos filósofos britânicos, tem sido contestada pelos do continente europeu por estes entenderam que tanto a ciência como a filosofia só se fazem contra o conhecimento comum ou contra o senso comum, o que para todos efeitos é a mesma coisa.

 

Não iremos aqui apontar os equívocos gerados do outro lado do Canal da Mancha e que chegaram até nós, brasileiros, caudatários que sempre fomos de filósofos franceses e alemães. Já fizemos isto em nosso livro Ceticismo ou Senso Comum? (Porto Alegre. Edipucrs. 1999).

 

Limitar-nos-emos a continuar expondo as razões embasadoras do ponto de vista favorável a uma continuidade do conhecimento comum e do especializado. Embora a geometria não seja o objeto em questão no presente artigo, ela serve para caracterizar o papel do senso comum em relação ao especializado.

 

A geometria sempre começa – e tem mesmo de começar assim – pela apresentação de axiomas, chamados por Euclides de noções comuns. Um axioma é uma proposição autoevidente, cuja verdade expressa por ela é de reconhecimento imediato, prescindindo de demonstração, e cujo reconhecimento de sua veracidade pode ser feito por todo e qualquer indivíduo humano dotado de um mínimo de discernimento e de nenhum conhecimento especializado.

 

Numa memorável passagem do Teeteto de Platão, deparamo-nos com Sócrates fazendo uma demonstração de um teorema geométrico para um escravo ignorante, mas não burro, é claro. Temos assim um exemplo de um indivíduo carente de todo e qualquer conhecimento especializado, mas não carente de conhecimento comum.

 

E é justamente esta forma de conhecimento que o faz apreender a verdade expressa pelas proposições autoevidentes, ponto de partida para compreender as demais, obtidas unicamente por dedução daquelas.

 

Supondo que as proposições autoevidentes expressassem um conhecimento certo e seguro e as deduzidas a partir delas fossem corretamente deduzidas, o resultado não poderia ser outro senão igualmente certo e seguro, adjetivos que complementam o sentido do conceito grego de episteme (conhecimento) desde Platão.

 

E é preciso acrescentar que esse é o pressuposto acalentado pela filosofia cartesiana: tomar como ponto de partida somente proposições autoevidentes expressando certezas além de toda e qualquer dúvida, para deduzir a partir delas outras proposições não-autoevidentes, mas tão certas e seguras quanto as imediatamente evidentes.

 

Porém, nosso objetivo aqui não é o conhecimento geométrico, nem mesmo as particulares teorias do conhecimento de filósofos – como as de Platão, Descartes e outros – que tomaram o método dedutivo da geometria como modelo para a elaboração dessas mesmas.

 

Queremos chamar a atenção para a importância das proposições autoevidentes, tanto para a construção do edifício do conhecimento do senso comum como para os da filosofia e da ciência.

 

Em outras palavras: as verdades autoevidentes do senso comum são os alicerces de toda e qualquer forma de conhecimento. Embora essas mesmas verdades expressem trivialidades acachapantes, não devemos desprezá-las, sob o risco de reduzir a ruínas as mais complexas teorias filosóficas e científicas.

 

Tomemos como exemplo uma dessas proposições autoevidentes: “Corpos físicos não se interpenetram”.

 

Esta é uma proposição que não será encontrada em nenhum tratado de Física, mas é assumida como pressuposto tanto por um físico na investigação particular no domínio da mecânica dos estados sólidos como por um ignorante camponês ao se deparar com um rochedo e não tentar passar através do mesmo, tal como o famoso mágico americano David Copperfield uma vez nos fez acreditar que teria passado através da Muralha da China (por um habilidoso truque de prestidigitação, it goes without saying).

 

Certamente, tanto o aludido camponês como o escravo do Teeteto de Platão não teriam se expressado nos mesmos termos em que expressei “Corpos físicos não se interpenetram”, por ser esta uma forma de expressão erudita e inteiramente fora de seus repertórios léxicos, mas poderiam dizer a mesma coisa com outras palavras, digamos: “Uma coisa não pode passar por dentro de outra”.

 

Importa saber que, como todo e qualquer indivíduo humano, que não esteja nos limites da oligofrenia, ambos o camponês e o escravo são possuidores da crença que uma ou outra das duas formulações expressa. E atrevo-me mesmo a afirmar que a teriam adquirido na mais tenra infância quando, em seu engatinhamento pelo chão, esbarraram neste ou naquele objeto sólido interpondo-se nas suas trajetórias.

 

Além disso, todo e qualquer indivíduo humano, independentemente de seu grau de instrução e especial maneira de ver o mundo que o cerca, fornece-nos a mais contundente prova de que possui a supramencionada crença, quando, ao sair de uma sala, o faz pela porta e não tentando passar através da parede!

 

É desnecessário expressar mediante palavras esta ou aquela crença, desde o momento em que a adquirimos e a incorporamos ao nosso vastíssimo repertório das crenças adquiridas mediante nossa interação com o mundo que nos cerca, nosso Umwelt (mundo circundante).

 

Neste momento, por exemplo, tenho na minha mente centenas ou mesmo milhares de crenças verdadeiras do senso comum, mas que não estão à flor da minha consciência, porém na minha memória de longo termo – uma espécie de memória rígida no jargão da Informática – mas que podem emergir até mesmo que eu não emita nenhum comando para meu cérebro, basta apenas que alguma coisa as suscite por associação, trazendo-as à flor da consciência.

 

Embora seja razoável pensar que todos os espíritos amantes do esclarecimento e os filósofos, principalmente, levem em séria consideração o caráter fundamental do conhecimento comum como seguro alicerce do conhecimento especializado, a história tem nos mostrado que o apreço por tal coisa nem sempre tem ocorrido. Ao contrário, ele tem convivido com contrariedades e tendo que enfrentar a negligência e até mesmo o profundo desprezo pelo mesmo.

 

Desde os filósofos pré-socráticos, porém mais acentuadamente a partir dos sofistas pode-se detectar um movimento generalizado que se caracteriza como tentativa de destruição do conhecimento do senso comum.

 

Como sabemos o movimento sofístico era abertamente contra qualquer critério de verdade, contra o conceito de proposição autoevidente e a favor de um relativismo não só ético como espistemológico. Diante desta devastação do conhecimento universal e objetivo, cabe indagar que alternativa restava.

 

Não podendo comunicar nenhuma verdade portadora de convencimento universal, tudo que se podia fazer era apelar para a persuasão capaz de produzir motivação e aquiescência de um interlocutor, ou seja: foram postas de lado a lógica e o conhecimento e conferida toda importância à retórica e ao encantamento produzido pela linguagem.

 

É preciso acrescentar que tanto a persuasão como o convencimento se identificam quanto à finalidade a ser alcançada, que é a adesão de um interlocutor a uma tese apresentada, mas diferem radicalmente quanto aos meios empregados com vistas à finalidade almejada.

 

 Se o convencimento, atento tanto quanto aos meios como aos fins, procura obter o assentimento por meio de razões – quem é convincente é no fundo a razão inerente à tese, não o portador da mesma – a persuasão, subjugando os meios aos fins, procura obter a aquiescência por meio de motivos, que são sempre apelos de caráter afetivo unicamente voltados para produzir eficácia na inoculação de crenças na mente do interlocutor.

 

Que importava para os sofistas se a finalidade buscada era alcançada por meio de fortes emoções, de argumentos falaciosos ou de quaisquer outros expedientes escusos? “Se o gato pega o rato, que importa a cor do gato”, já dizia o camarada Deng-Chiao-Ping, mas num outro contexto bastante distinto desse dos sofistas, em que a supracitada asserção passa a ser verdadeira.

 

Na realidade, tudo o que eles exigiam de um discurso era a eficácia discursiva e se ele se mostrava eficaz na persuasão de um interlocutor, não tinha a menor importância quaisquer coisas relativas à qualidade discursiva, tais como a coerência, a veracidade, a relevância, a moralidade, etc.

 

Está claramente implícito no pensamento dos sofistas o pressuposto igualmente implícito no pensamento de Maquiavel: Os objetivos justificam os meios. Pensamos que concordar com tal recomendação metodológica consiste em decretar a morte da Ética (como procurei mostrar em meu livro inédito As Formas da Mentira). 

 

Ainda que se considere estar em jogo uma finalidade boa, louvável, produtora de um bem para poucos ou muitos, é inadmissível que ele seja obtida por meios escusos, portadores de males em si mesmos, independentemente dos fins visados.

 

 

* Mário Antônio de Lacerda Guerreiro, Doutor em Filosofia pela UFRJ. Professor Adjunto IV do Depto. de Filosofia da UFRJ. Ex-Pesquisador do CNPq. Ex-Membro do ILTC [Instituto de Lógica, Filosofia e Teoria da Ciência], da SBEC [Sociedade Brasileira de Estudos Clássicos]. Membro Fundador da Sociedade Brasileira de Análise Filosófica. Autor de Problemas de Filosofia da Linguagem (EDUFF, Niterói, 1985); O Dizível e O Indizível (Papirus, Campinas, 1989); Ética Mínima Para Homens Práticos (Instituto Liberal, Rio de Janeiro, 1995). O Problema da Ficção na Filosofia Analítica (Editora UEL, Londrina, 1999). Ceticismo ou Senso Comum? (EDIPUCRS, Porto Alegre, 1999). Deus Existe? Uma Investigação Filosófica. (Editora UEL, Londrina, 2000) . Liberdade ou Igualdade? ( EDIPUCRS, Porto Alegre, 2002). Co-autor de Significado, Verdade e Ação (EDUF, Niterói, 1985); Paradigmas Filosóficos da Atualidade (Papirus, Campinas, 1989); O Século XX: O Nascimento da Ciência Contemporânea (Ed. CLE-UNICAMP, 1994); Saber, Verdade e Impasse (Nau, Rio de Janeiro, 1995; A Filosofia Analítica no Brasil (Papirus, 1995); Pré-Socráticos: A Invenção da Filosofia (Papirus, 2000) Já apresentou 71 comunicações em encontros acadêmicos e publicou 46 artigos. Atualmente tem escrito regularmente artigos para www.parlata.com.br,www.rplib.com.br , www.avozdocidadao.com.br e para www.cieep.org.br , do qual é membro do conselho editorial.

Como citar e referenciar este artigo:
GUERREIRO, Mário Antônio de Lacerda. A destruição do senso comum pela filosofia de Gramsci (Primeira Parte). Florianópolis: Portal Jurídico Investidura, 2009. Disponível em: https://investidura.com.br/artigos/filosofiadodireito/a-destruicao-do-senso-comum-pela-filosofia-de-gramsci-primeira-parte/ Acesso em: 22 abr. 2025