MAURO FERNANDO DOS SANTOS
RESUMO
As utopias permeiam o pensamento literário e político da humanidade. Com sua descrição de uma cidade que já superara os problemas crônicos que se observavam em sua pátria Thomas Morus com sua obra A Utopia utiliza uma obra literária não só pra expor de forma politicamente segura suas críticas, mas também para apresentar um modelo ideal. Em pleno iluminismo grego Platão também imbuído de críticas à sociedade em que vivia apresentou um modelo de sociedade com sustentação em sua teoria do mundo das idéias para sugerir uma sociedade onde se concretizaria em harmonia a sua filosofia a justiça, verdade, beleza e sabedoria.
Essas duas obras tão díspares no tempo foram de certa forma reunidas na tentativa de Karl Popper de demonstrar a estupidez dos regimes coletivistas ao trazer para a filosofia política a aplicação de seu racionalismo crítico ao frisar a necessidade de submissão de qualquer teoria cientifica ao escrutínio de terceiros. A crítica principal de Popper ao apontar as bases do totalitarismo são historicismo, o perfeccionismo e o utopismo, os quais estão presentes na narração de Platão sobre a Republica ao colocá-lo como inimigo da sociedade aberta. Popper ao mesmo tempo critica o utopismo e sua tendência a estipular modelos ideais que requerem para sua concretização medidas de grande repercussão e que por isso não pode prever todos os efeitos não pretendidos da ação humana. Nesse sentido a proposta de Francis Wolf de uma utopia pós-humana de supressão de fronteiras e de cidadania mundial a todos apesar de seus fins irretocáveis, ainda que seja momentaneamente irrealizável como reconhece o autor deve se submeter ao principio da racionalidade crítica dado que não se possa conjecturar quais efeitos práticos que decorreriam de tão profunda alteração.
Palavras-chave: UTOPIA, UTOPISMO, RACIONALISMO CRÍTICO, UTOPIA PÓS-POLÍTICA.
ABSTRACT
Utopias permeate humankind’s literary and political thought. With his description of a city that had already overcome the chronic problems observed in his homeland, Thomas Morus with his work A Utopia uses a literary work not only to expose its criticisms in a politically secure way, but also to present an ideal model. In full Greek Enlightenment, Plato also imbued with criticism of the society he lived in, presented a model of society based on his theory of the world of ideas to suggest a society where his philosophy of justice, truth, beauty and wisdom would materialize in harmony.
These two works so disparate in time were somehow brought together in Karl Popper’s attempt to demonstrate the stupidity of collectivist regimes by bringing to political philosophy the application of their critical rationalism by emphasizing the need to submit any scientific theory to the scrutiny of third parties. Popper’s main criticism in pointing out the bases of totalitarianism are historicism, perfectionism and utopianism, which are present in Plato’s narration about the Republic by placing him as the enemy of open society. Popper, at the same time, criticizes utopianism and its tendency to stipulate ideal models that require measures of great repercussion for their realization and that, therefore, cannot predict all the unintended effects of human action. In this sense, Francis Wolf’s proposal of a post-human utopia of the suppression of borders and world citizenship for all despite its irreproachable purposes, even if it is momentarily unrealizable, as the author recognizes, must submit to the principle of critical rationality since it is not can conjecture what practical effects would result from such a profound change.
UTOPIA
De tempos em tempos emergem os profetas e as utopias. Visionários e religiosos profetizam uma realidade que acontecerá necessariamente. A profecia aparece assim como uma antecipação de um futuro usualmente trágico, mas sempre inafastável. Diferentemente das profecias as utopias podiam significar um futuro possível ou meramente desejável, mas também um retorno a uma era passada. Na história cultural não faltam alusões a idades ou eras perdidas como o paraíso edênico bíblico ou as eras de ouro e de prata descritas na mitologia grega contadas por Hesíodo ou na filosofia como na platônica Atlântida perdida no tempo. Quando retrata um futuro apresenta-se como paradigma de uma sociedade servindo como forma idealizada de aspirações suscitadas por insatisfações coletivas e difusas como na República do mesmo Platão.
Essas utopias sempre representam um final desejável de uma progressão ou um retorno a um estado idílico. Podia ser uma proposta filosófica de cidade como propunha Platão em sua República de iguais, salvo guerreiros e sábios, que dividiam filhos e mulheres, como podia ser apenas um “lugar nenhum” habitado por homens sem vício como retrata a obra de Thomas Morus geradora do neologismo. Em todos os casos sempre como uma crítica à sociedade presente, ainda que velada por força de realidades políticas. Platão insatisfeito com os rumos democráticos de sua Atenas do século IV, Thomas Morus com a política licenciosa e conturbada do reinado de Henrique VIII.
Em ambiente cultural propiciado pelo Renascimento e pelo Humanismo, tendo como pano de fundo as lutas religiosas opondo católicos e as seitas protestantes as grandes navegações alargaram os limites do mundo real e imaginário. Supriam o imaginário popular e os debates sobre os estados nacionais em formação. Na mais conhecida obra do gênero com a descrição de uma cidade construída sob a forma racional que recebeu o sugestivo nome de Utopia – lugar nenhum, de localização misteriosa, escrita por Thomas Morus no século XVI, um crente católico que prenunciava com seu humanismo o início da modernidade inaugurada pelas obras de Descartes
Nesse livro se relatam viagens marítimas de um português chamado Rafael Hitlodeu, em especial a descrição de uma ilha atlântica chamada Utopus por seus habitantes, literalmente lugar nenhum. Dotada de instituições que conciliavam rigor da lei com honestidade, riqueza e frugalidade, poder militar e espírito de paz, essa alcançara um grau de ordem e paz apenas imaginado pelos habitantes dos países cristãos europeus. De forma semelhante Francis Bacon descreveu uma terra desconhecida – Nova Atlântida – que se notabilizava pela prodigalidade de seus produtos decorrentes do conhecimento científico de seus principais, sábios que integravam a Casa de Salomão. Em contraposição a essas sociedades racionalmente construídas ou administradas Michel de Montaigne apresentava uma sociedade natural.
Caldo fértil para essa literatura relatos como o de Hans Staden[1] ou de Jean de Lery[2], ambos visitantes do sudeste do Brasil no século XVI traziam curiosidade e espanto para leigos e filósofos. Escrevendo em uma época que as viagens oceânicas ainda empolgantes já não eram tão raras, a descrição de uma sociedade utópica seria substituída por outro tipo de utopia da sociedade natural onde também se projetam valores, hábitos e condutas que teriam sido suprimidos pela força das sociedades corrompidas objeto da critica, em um indigenismo que anteciparia as qualidades do “bom selvagem” de Rousseau. Montaigne inspirado no relato de um viajante sobre o idílico Brasil e de um indígena brasileiro transplantado para a França, já não podendo fantasiar como Morus uma sociedade civilizada por força dos relatos sobre o modo de vida dos habitantes do Novo Mundo contestou aqueles que chamavam os habitantes dessa terra de selvagens, para afirmar que eles ao contrário dos europeus estavam mais pertos das primeiras leis da natureza e ainda não pervertidos pelos costumes destes. Montaigne em seus Ensaios chegou a censurar Platão e sua República tão afastada da perfeição de tal lugar (1996, p. 196). E prossegue em seu panegírico ao parafrasear Platão “Todas as coisas produzem-nas a natureza ou o acaso, ou a arte. As mais belas e grandes são frutos das duas primeiras causas, as menores e mais imperfeitas da última.”.
Percebemos que na descrição de Montaigne sobre os canibais brasileiros que sua preocupação desloca-se da construção ou imaginação de uma sociedade desenvolvida ao supor inexistir hierarquia política para focar no interesse da felicidade do indivíduo colocado em primeiro plano. Uma sociedade onde inexiste contrato, sucessão e partilhas, ao tempo que raramente empregam por falta de oportunidades palavras como traição, avareza, dissimulação e calúnias. A descrição açucarada da sociedade indígena talvez decorra do seu ceticismo quanto ao sucesso de propostas utópicas de reformas da sociedade.
As utopias no sentido que se apresentam aquelas apresentadas por Morus e por Montaigne não se dissociam de um tipo de gênero literário. Nesse gênero a ambição de utilização do escrito em fins políticos ou panfletários não se dissocia de sua natureza de literatura. As utopias literárias ou filosóficas podem ainda se apresentar como uma antecipação metafórica de um futuro ainda distante e que serve para inspirar os contemporâneos e os leitores de futuras gerações através de demonstração lógica, sátiras ao lado daqueles que desejam com sua obra uma atitude efetiva de transformação e realização da utopia proposta. Nesse ultimo sentido Almeida (2018, p.28) ressalta o aspecto revolucionário da utopia que contem em seu germe uma potencia de realidade que pode ser materializado quando revolucionários instauram no presente bolsões de futuro, fato que se incompatibilizaria com a pretensão de mudanças graduais em direção aos valores propostos.
Essa característica foi registrada por Ghibaudi (2016, p. 250) que além da utopia literária acrescenta que em uma segunda acepção de utopia pode ser considerada como predominantemente política tendo a função principal de renovação da sociedade fundada sobre valores que não podem ser olvidados como liberdade, igualdade, justiça e fraternidade. Essa segunda característica estaria cerzida à literatura sendo indissociável uma da outra. Por fim uma terceira corrente que despreza a questão literária para ater-se ao problema de fundo que aquela literatura trouxe, mas que poderia ser trazida por qualquer outro meio. No primeiro e segundo caso a análise da obra não implica abstrair de pretensões transformadoras, apologéticas ou panfletárias, mas ressalta também os méritos ou qualidade literária da obra individualmente considerada em conjunto com uma fase literária ou conjunto de obra do autor. Seriam as últimas utopias em ação por prever sua efetiva realização.
Sem dúvida a perenidade das obras citadas já demonstra sua qualidade literária e dispensa análise de sua forma ou estilo, não sendo objeto do presente trabalho. Relevante no presente momento as utopias em ação quando ensaiam um objetivo mais geral de transformação da sociedade e suas repercussões para o fim aqui pretendido que é a análise da pretensão utópica frente a um projeto de sociedade aberta. Fica assim esclarecido que utopia implica um projeto ainda que não amadurecido de uma sociedade e que se distingue da realidade a ser modificada. Podendo ter proposta ou não de efetiva modificação em vista da realização de seu projeto.
A utopia é assim um termo polissêmico e polimorfo que vai da literatura à transformação da sociedade na sua versão utopia em ação. Pode ter conotações fortemente religiosas e políticas. Karl Popper demonstrou que o critério de demarcação das ciências é a possibilidade de sua refutação. Esse critério perpassa inclusive as ciências sociais, de forma o projeto utópico que se pretende racional, especialmente quando deixa de ser somente literatura para transformar-se em utopia em ação, deve se submeter ao principio da refutabilidade ou falseacionismo. Para Popper ao consideramos os limites do nosso conhecimento não podemos desprezar a possibilidade de que possamos estar errados e nossos interlocutores estejam certos, podemos sempre deixar a possibilidade de reformar nosso pensamento e nossas atitudes frente a situações reais que se dariam no âmbito político no fim de preservação da democracia e evitar sofrimentos desnecessários a nossos semelhantes. Nas ciências sociais Popper demonstrou que alterações de grande porte na sociedade quando fundadas em um tipo de historicismo tende valer da chamada engenharia utópica o qual ao não se submete a críticas de falibilismo. Nesse sentido as utopias políticas deixam a desejar por não resistirem ao teste da refutabilidade.
Contudo a utopia deslocou-se da política para o homem. Se na política o utopismo sustenta idealmente intentos reacionários, conservadores, progressistas e democratas-liberais. Além das utopias políticas temos que considerar a emergência da existem as utopias pós-humanas decorrentes da evolução biológica mediante seleção artificial e engenharia genética, as utopias animalista e ecológica que englobam seres sensíveis como senhores de direitos e igual consideração que os humanos. Essas utopias decorrem do abandono ou superação das utopias políticas. São utopias pós-políticas. Não pretendem mais a construção de um estado político humano ideal, mas a reforma do homem. Após classificar e conceituar as chamadas utopias pós-humanas Frnacis Wolf apresenta a utopia cosmopolítica em oposição àquelas em uma nova utopia dissociada da construção de um estado soberano. Ao abandonar a utopia fundada em um estado reivindica a utopia e contornos universais. Ele abandona a proposta de Kant de uma cosmopolitica limitada para uma verdadeiramente universal a integrar toda a humanida. Para ele não haverá mais estrangeiros ou estranhos. Na ética que a sustenta o lema é “Ou todos, ou todos, ninguém larga a mão de ninguém”.
UTOPISMO
De mito religioso a gênero literário e deste a tornar-se motor de transformações radicais da sociedade mostra-se um itinerário possível. Ocorre que apenas o primeiro e o terceiro sentido propostos possuem a potencialidade de serem impostos compulsoriamente a terceiros. São as utopias em ação. Ao contrário das utopias literárias e a de Platão que previam um Estado perfeito, mas evitavam informar os meios de alcançá-lo as utopias em ação retardam a realização do ideal para empregar os melhores meios de realizá-lo (Wolf, 218, p. 9).
Enquanto o ideal não se realiza ocorre oposição tanto daqueles que combatem os valores propostos nas utopias, quanto daqueles que sem negar a validez da proposta utópica defendem um progressivo percurso à sociedade através de métodos pacíficos e não-revolucionários. Nesse caso, há sempre a possibilidade choques na medida em que se a diversidade de valores e de fins para uma sociedade pode conviver em uma mesma sociedade a percepção positiva ou negativa de uma obra utópica pode transformá-la em distópica e vice-versa. Ou como registra Ghibaudi (p. 252) “Para o intérprete, pode ser distópica a utopia, se seus pressupostos essenciais não são compartilhados, ou utópica a distopia, se a deformação caricatural da realidade não é aceita”.
A utopia quando se transforma em projeto político implica na necessidade de fundar uma ordem racional ainda que sustentada em sua origem em conteúdo irracional. Essa necessidade decorre do dogmatismo do projeto utópico que transparece seu racionalismo implícito ainda que a proposta esteja contida na linguagem literária. Essa característica pressupõe que a verdade dos fundamentos do projeto seja indiscutível de forma que a concreção real deve espelhar o projeto original por constituir-se em sua conseqüência necessária. Impõem-se assim um compartilhamento de convicções e de valores com um denominador comum quanto a idéia de equidade e justiça, sob pena da ocorrência de conflitos quando diferirem quanto a seu conteúdo material. Como alerta Ghibaudi (2016, p. 252):
A conotação de possibilidade de um único projeto compartilhado por todos, seja ilustrada com um romance ou com tratados e programas, lança luz sobre o dogmatismo implícito da utopia. O dogmatismo de alguns utopistas é caracterizado pela convicção de serem portadores da verdade, da qual deriva o perigo de se incorrer na opressão, o que faz com que não seja unanimemente compartilhado. A distopia, que é o medo da opressão totalizante, pode ser lida pelos opositores da utopia como a face especular da própria utopia
Visões de mundo que ainda permeadas de valores positivos como igualdade, equidade e fraternidade ao serem implementados requerem transformações de estruturas e mentalidades em velocidade compatível com o fim buscado. Não é à toa que grandes projetos utópicos foram frustrados.
A demonstração de utopias transformadas em distopias como reflexo invertido de uma sociedade perfeita é vasta na literatura. A sociedade totalitária retratada por Orwell e a sociedade anestesiada descrita por Huxley remetem a distopias imaginárias que retratam respectivamente um estado opressor ao estilo de uma caricatura do regime soviético instaurado em uma Inglaterra socialista e um estado futuro desconectado com regras morais onde a felicidade é saciada com química. Nesses casos o socialismo e a contracultura passaram de emancipatórios a escravizadores de corpos e mentes.
Pode-se, todavia, defender que a União Européia atende a expectativas positivas de exeqüibilidade de um projeto outrora considerado utópico. Medidas como a relativização de fronteiras, adoção de um único Banco Central com uma mesma moeda e a reger-se por normas supra-estatais já foram consideradas como utópicas e irrealizáveis. Alguns poucos chegaram a firmar como Francis Fukuyama (1982, p. 69) que a sociedade democrática-liberal chegou em um grau de evolução social que qualquer projeto de utopia política estaria condenado por supérfluo. Para ele após a queda do muro de Berlim o modelo inaugurado pela civilização ocidental sagrou-se vencedora não restando qualquer paradigma de estado competidor para disputar corações e mentes. A conseqüência da queda do muro de Berlin seria sintetizar a democracia e os valores liberais clássicos, que acrescidos de variada dose de direitos de segunda e terceira geração, apresentavam-se como paradigma irretorquível de uma sociedade que já não tinha oposição paradigmática ou ideológica. De uma forma ou de outra realizadas as utopias e chegado ao Estado ideal não haveria mais espaço para outras.
O desenrolar dessa história mostrou quão precipitada fora a conclusão, mostrando por um lado que nem todos eram beneficiados com essa realidade ou não acreditavam que viriam a ser tão cedo satisfeitos. Na verdade, pode-se sustentar que apesar da derrota de outros paradigmas ideológicos o sentimento utópico permanece vivo por completar uma carência inerente à natureza humana que não pode ser compreendida sob critérios de racionalidade formal.
Um exemplo foi a reação romântica no século XVIII surgida na Alemanha que recusa as aspirações universalistas das luzes advindas do Iluminismo Francês. O projeto iluminista transpassou os métodos do racionalismo antes circunscrito a conhecimento filosófico para o conhecimento científico e político. Adotando a física de Newton e a perspectiva de completo domínio sobre a natureza mostrou a mesma pretensão poderia ser empregada nas ciências sociais. Nesse sentido a convocação kantiana “sapere aude” para que os homens saiam da menoridade valendo-se de seu entendimento e sem a guia de outrem, implica em não abdicar de exercer escolhas morais e exercitar sua capacidade de discernir sobre estas e ainda sujeitar-se às conseqüências que derivam do exercício da liberdade.
O romantismo enfatizava o local em contraposição aos valores universais. Nesse sentido o romantismo se apresenta em oposição ao Iluminismo e sua pretensão de superar a tradição mediante o uso esclarecido da razão como fonte do verdadeiro conhecimento, da felicidade e do progresso. O romântico exaltava sua cultura local e valores frente aos valores universais apregoados pelos iluministas, gerando uma constante e “perturbadora herança do movimento romântico; ela se faz presente na consciência moderna, a despeito de todos os esforços envidados para eliminá-la, contorná-la ou explicá-la como sendo um mero sintoma de pessimismo …” (Berlin, ).
Ao recusar valores universais substituídos por tradições e valores locais tão caros ao movimento romântico, deu-se um passo importante rumo a um sentimento tribal que glorifica a nação, raça ou com Marx uma classe. Não tardou que fossem absorvidas características do racionalismo iluminista ao sentimento originalmente romântico que é a idéia que a historia se desloca em direção ao progresso e que as sociedades podem ser modeladas segundo critérios racionais.
O pensamento utópico apresenta assim características do racionalismo e do romantismo. O emprego da razão como método e a busca da perfeição perdida como fim. Apresenta dessa forma uma dupla fronte: de um lado obediente a projeto racional conforme aos critérios de verdade e sujeito a valores universais; e um segundo sob a forma de uma natureza romântica individualista e afeita a um grupo exclusivo quer seja nacional ou de classe social universal. Ao ser capturado por uma visão romântica revolucionária a utopia em ação transforma-se em utopismo, ou seja, utopia qualificada pela ação em busca de sua concreção, para afastar-se de vez de um mero projeto literário direcionado para um futuro distante, que por se assumir como portadora da verdade da ciência se constitui em um projeto racional e a realização da história como sua justificativa.
Essa característica encontra-se nas raízes inconscientes presentes em regimes totalitários. Os exemplos coletivistas tinham em comum a aceitação de que dispondo de princípios adequados agregados ao perfeito manejo de meios racionais seria possível a construção de sociedades racionais e adequadas à natureza humana. As sociedades políticas utópicas seriam fundadas em critérios científicos e dirigidas de forma racional mediante normas deliberadamente criadas em obediência a leis de evolução social.
Em sociedades coletivistas a supressão do individuo do debate político tachado como egoísta em favor do coletivo implica que as aspirações individuais devem dar passagem ao interesse do grupo. A voz do individuo é abafada pela voz coletiva como bem exemplifica a vontade geral preconizada pelo contratualismo de Rousseau não por acaso um romântico iluminista.
Exercer a liberdade é se comportar de acordo com o deliberado em assembléia, sendo a única postura racional a ser tomada. Rousseau justifica assim a conduta do corpo político em coercitivamente obrigar o homem a ser livre, dado que eventual comportamento de forma distinta equivaleria a desobedecer a vontade geral, e essa é a verdadeira vontade de todos, ainda que estes individualmente dela discordem, o que só pode ocorrer em aparência, mas nunca na realidade, já que o constrangimento a obedecer à vontade geral, que afinal é sua ainda que contrarie seus interesses e suas vontades de forma que nesse caos caso ele estaria na verdade sendo forçado a ser livre (Rousseau, p.73).
Transparece uma sombra mística onde o homem descobre seus verdadeiros desejos ainda que nunca tenha tido consciência deles ou chance de confirmá-los, transferindo essa tarefa para a inteligência coletiva da Assembléia. Em Rousseau como resultado do pacto fundante a vontade geral originada de um pacto voluntário avança para uma noção de vontade coletiva:
“vontade personificada de uma vasta entidade superindividual, de algo chamado ‘o Estado’, que já não é o leviatã esmagador de Hobbes, mas algo mais parecido com uma equipa, com uma Igreja, uma unidade na diversidade, algo maior do que nós, no qual mergulhamos a nossa personalidade apenas para voltarmos a descobri-la” (Berlin, 2002, p.69).
Com a criação do Estado Civil mediante um pacto o homem perde sua liberdade natural, mas ganha a liberdade civil Haveria uma convergência presumida entre a vontade individual e a vontade geral que representa a totalidade daquelas. Em que pese amar a liberdade e preconizar a libertação do homem de todos os constrangimentos que limitavam sua liberdade natural Rousseau tornou-se um dos maiores inimigos da própria liberdade, segundo interpretação de Isaiah Berlin que em trecho extenso que vale a pena transcrever:
“(Rousseau) … teve que recorrer ao monstruoso paradoxo no qual a liberdade acaba por se tornar uma escravidão, no qual desejar algo não é desejá-lo a não ser que o façamos de uma maneira particular de uma maneira tal que possamos dizer a um homem; ‘Pode pensar que é livre, pode pensar que é feliz, pode pensar que quer isto ou aquilo, mas eu sei melhor aquilo que é, o que quer, o que o libertará’, e assim por diante. Este é o paradoxo funesto de acordo com o qual um homem, ao perder a sua liberdade política, a sua econômica, é libertado num sentido mais elevado, mais profundo, mais racional, mais natural, que apenas o ditador ou apenas o Estado, apenas a assembléia, apenas a autoridade suprema conhece, pelo que a liberdade mais ilimitada coincide com a autoridade mais rigorosa e limitadora”( Berlin, p. 73/4)[3].
A diminuição do indivíduo do espaço público em prol de uma vontade coletiva invoca a a impossibilidade de dissentir do corpo político, habilmente justificada na doutrina da vontade geral. O obedecer à norma coletiva é obedecer a si próprio ainda que discorde de seu teor. Concordar com a vontade coletiva é obedecer à razão, presunção que se encontra na base de teorias utopistas.
O utopismo encontra-se nas raízes inconscientes presentes em regimes totalitários. Os exemplos coletivistas tinham em comum a aceitação de que dispondo de princípios adequados agregados ao perfeito manejo de meios racionais seria possível a construção de sociedades racionais e adequadas à natureza humana. As sociedades políticas utópicas seriam fundadas em critérios científicos e dirigidas de forma racional mediante normas deliberadamente criadas em obediência a leis de evolução social. Obedecer a leis inflexíveis da história é igualmente fazer uso correto da razão. As teorias que descrevem a evolução da sociedade como necessidade histórica respaldam de forma mais agressiva as utopias modernas. No mesmo sentido, embora reconheça que tal filosofia é pouco defensável, Noberto Bobbio defende que dado um serie de eventos a filosofia da história considera o decurso histórico como algo orientado para um fim. Fia-se na antropologia, quer dizer nas raízes animais do ser humano, para afirmar que somos animais teleológicos e que embora não haja como provar, a transposição dessa tendência individual finalista da ação para a da humanidade, como se fosse um corpo ampliado, é o propósito da filosofia da história (1992, p. 61).
Provavelmente a que rendeu mais frutos fora o positivismo de Auguste Comte fundado em uma idéia teleológica da sociedade informada na lei dos três estados que culminaria necessariamente no estado positivo, após passar por uma sucessão de fases teológica e metafísica em uma evolução progressiva do menos ao mais científico. Com respaldo em uma filosofia científica as idéias de Comte se encontrariam posteriormente na base das idéias de progresso e impregnariam todas as ciências sociais. As idéias de Comte se encontram na base das idéias de progresso moral da humanidade e exaltação da ciência e seus métodos a todos os ramos do conhecimento, induzindo a rejeição de tudo que não fosse baseado em fatos como sendo mera metafísica seria a raiz do neopositivismo do Círculo de Viena, como ressalta Michel Villey (2008, p.316).
O utopismo tem como se vê possui pressupostos racionais. Se a sociedade ideal projetada aparece como modelo a ser alcançada satisfazendo o requisito de um fim a ser alcançado por um meio racional, ela cumpre o desiderato de cumprir a história. Por ser um empreendimento racional sua execução implica também a observação de meios adequados ao fim proposto. Dessa forma, perpassa todo empreendimento utópico a aceitação de que dispondo de princípios adequados agregados ao perfeito manejo de meios racionais seria possível a construção de sociedades racionais e adequadas à natureza humana. Dessa forma, amparados em doutrinas fundadas em critérios científicos e dirigidas de forma científica e racional mediante normas deliberadamente criadas em obediência a leis de evolução social as sociedades concretizariam o reino da fé, da história ou da razão. A realidade mostrou o malogro dessas tentativas.
O RACIONALISMO CRÍTICO ANTIUTÓPICO
O principal ataque ao pensamento utópico atual é que as mais recentes experiências totalitárias observadas pela humanidade tiveram sua origem em teorias que comungavam simultaneamente fé na razão e fins românticos. Entre esses o regime mais racionalmente requintado e também mais duradouro foi sem dúvida a experiência socialista inspirada na obra de Karl Marx. Com seu reconhecido sincero interesse na melhoria da qualidade de vida dos trabalhadores, Marx conjugou em seu projeto político, apesar da riqueza teórica de sua obra sobre economia, “uma análise do funcionamento econômico e histórico do capitalismo, mas a idéia comunista e a abolição da propriedade privada permaneceram […] um ideal abstrato e por assim dizer um ideal utópico” (Wolf, 2018, p. 80).
As experiências totalitárias do século XX lograram por toda primeira metade do século grande aceitação filosófica. Ainda quando gozavam de grande prestigio Karl Popper identificou as semelhanças entre essas doutrinas políticas e o pensamento utópico. Para ele o utopismo e historicismo configuram a base irracional do coletivismo pressuposto dos regimes autoritários, já que reúne características de atavismo, eis que são estruturas mentais que não morreram e continuam assombrando de tempos em tempos a demonstrar o risco à espreita como antecipa NOBERTO BOBBIO a respeito da sociedade fechada.
Ela é uma tentação perene do homem primitivo que dorme dentro de cada um de nós, que esperta e se solta nos momentos de perturbação social; é a tentação de ignorar que os outros não são somente os meus filhos, os da minha terra e da minha raça, mas de todos os homens indistintamente; de fazer calar o apelo de nossa consciência moral, que é tal enquanto consciência de uma lei universal que une todos os homens acima das diferenças sociais; de fazer triunfar a obscuridade do instituto sobre a evidência da razão, a paixão perturbadora sobre a inteligência moderadora, as mais desacreditadas superstições sobre o saber científico, o furor cego do fanatismo sobre a obediência aos princípios de uma educação civilizada[4].
Como antítese desses regimes apontados como modelos de sociedades fechadas, estados supostamente fundados em princípios racionais, Karl Popper descreveu as sociedades abertas que seriam aquelas que cultivam instituições que possibilitem a crítica aos governantes e possibilitem sua substituição sem derramamento de sangue, onde se permite que convivam pontos de vista incompatíveis e se persigam objetivos conflitantes (Magee, 1973, p.79). A descrição deliberadamente aberta decorre de que se trata de uma sociedade que permite conviverem pessoas com objetivos de vida e escala de valores distintos. Sendo suficientemente largo para garantir a proteção à coerção estatal de esferas de liberdade individual.
Para Popper a sociedade fechada é a sociedade do status. As relações são orgânicas e marcadas por lugares fixos e imutáveis. Sociedades fechadas são aquelas onde as relações sociais são concretas e orgânicas baseadas no sangue, coabitação ou defesa contra perigos comuns. Sua origem filosófica remonta à República de Platão, assentada no hermetismo entre as classes, a ausência de mobilidade social, a predeterminação das funções sociais, a delimitação das relações familiares e sociais, o governo exercido sem controle externo à classe dos governantes, o controle social por guardiães e punição dos faltosos pelo Conselho Noturno são características quase caricaturais da sociedade tribal ou fechada.
Popper identifica na sua origem a noção daquilo que ele chamou de historicismo, idéia na qual a sociedade é regida por inflexíveis leis históricas que levaria a um modelo determinado independente da ação humana, a qual poderia no máximo acelerar o processo ou retardá-lo. Além de uma segunda definição que complementa a primeira aquela que sustenta ser o futuro totalmente aberto. Sendo passível de intervenções em larga escala ex nihilo, abstraindo das esferas de proteção individual e da realidade concreta. Veja que na sociedade aberta a possibilidade de reforma também existe, porém como registra Almeida (2018, p.109) “Antiutopistas preferem a evolução à revolução, a mudança gradual a transformação abrupta – entendem que as leis e as instituições são frutos de um multimilenar processo de tentativa e erros, e não de rupturas radicais”. Considera Popper que buscar ou entender ter encontrado leis da história, com a conseqüente capacidade de predizer desenvolvimentos futuros da sociedade, induz ao iluminado julgar-se por isso apto a conduzir os povos e prescrever quais as ações políticas mais aptas para direcionar a evolução. Essa atitude política ou filosófica é denominada historicismo. Quando esse historicista convencido da perfectibilidade de um estado ideal, seu projeto racional torna-se mágico ou profético.
Sem um objetivo não se pode estipular os meios para alcançá-los. As teorias coletivistas partem do pressuposto que conhecem o objetivo final ou modelo de Estado ideal a que deve chegar a sociedade. Ao se imunizarem à crítica quanto aos objetivos o utopismo agride ao racionalismo sendo pseudo-racional. A crença historicista em sua versão mitigada ou menos radical requer por seus mentores que a atuação de planejamento seja em larga escala. As fragilidades democráticas dessa forma de intervenção drástica para alcançar o modelo de sociedade idealizado decorrem do fato que chegar ao fim preconizado implica mudanças abrangentes na sociedade e que antes de alcançá-lo necessariamente passam-se por fases intermediárias. Nessas fases podem ser geradas conseqüências não pretendidas. Nessa forma de intervenção é possível, que nesse processo deixe-se de perscrutar se esses fins parciais são efetivamente hábeis para alcançar o fim ideal de sociedade. Sendo negativa a resposta as medidas adotadas deixariam de ser racionais. Uma ação de reforma da sociedade originalmente decalcada em princípios racionais transmuta-se em um projeto irracional. Malgrado as manifestações em suporte da necessidade histórica de certos eventos a sua capacidade preditiva é falha e implica em riscos reais se efetivada em larga escala como costumam ser as propostas no campo político. Conhecido como mecânica ou engenharia utópica intenta intervenções abrangentes de grande repercussão na sociedade, as quais mostram-se irracionais na medida em que desconhece-se a exequíbilidade do ideal buscado, além de ignorar quais os meios necessários para alcançá-los considerando a ocorrência de situações não premeditadas decorrentes das intervenções.
Em oposição Popper ciente do conhecimento apenas parcial convém a adoção de medidas de menor envergadura que resolvam problemas definidos que causam sofrimento e injustiça e que podem alcançar um consenso e aprovação com maior probabilidade, já que impossível obter conhecimento que possibilite um planejamento racional da sociedade inteira como pressupõe a engenharia utópica, sugere um método apelidado como Engenharia de Ação Gradual (Piecemeal methods), com a utilização do conhecimento prático no empenho, eis que esse método reconhece “que apenas algumas instituições sociais brotam por força de um planejamento consciente, enquanto a grande maioria delas tão-somente surge como imprevistas consequência de ações humanas” (Popper, 1980, p. 52).
Disso decorre que aqui as alterações nas instituições sociais se dão por força da avaliação das conseqüências possíveis e preferenciais entre estas, quer dizer mediante critérios racionais os métodos e as conseqüências são avaliados mediante a utilização do método crítico permitindo feedback a cotejar seus efeitos reais com aqueles planejados.
A utilização de métodos aparentemente racionais nas sociedades fechadas acentua que também em um nível epistemológico pode-se demonstrar a incorreção da racionalidade empregada para justificar os regimes coletivistas. O contrário do pressuposto no utopismo não existe qualquer critério cientifico para designar um objetivo final ou Estado ideal. A busca da perfeição, beleza e justiça ideais, atitude já verificada na República platônica, tendem no seu implemento a desprezar-se efeitos intermediários inesperados e não planejados ainda que esses efeitos sejam danosos para terceiros. Isso porque para Popper evidencia o risco da eclosão de violência já que dentro da moldura intelectual do historicismo, os entraves sociais e políticos causados são considerados como etapa histórica temporária e necessária para alcançar o estágio final. O bem ideal por ser abstrato “não exige a atitude crítica e racional de um julgador imparcial, mas sim a atitude irracional de um apóstolo apaixonado” (Popper, 1994, p.10).
Segundo as críticas popperianas ao método científico qualquer teoria científica deve ser passível de refutação. Popper acreditava no poder da crítica e na sua capacidade de aprimoramento tanto de teorias cientificas como de soluções políticas. Em consonância a essa concepção concluiu que o critério de demarcação da natureza cientifica de uma asserção cientifica é a possibilidade de submissão a testes deliberadamente pensados para refutá-las.
Nesse sentido, somente as teorias que podem ser objeto de refutação são consideradas científicas. Um único teste negativo para a teoria demonstra sua falsidade. Contudo, não há qualquer teste empírico que possa confirmar o acerto da teoria, já que sempre podem ser imaginados novos testes empíricos a serem submetidos. A verdade assim é sempre provisória, sendo admitida como verdadeira somente enquanto resistir a tentativas de refutação. Esse método é único para as ciências empíricas, como para as ciências sociais. O utopismo e o racionalismo que ele engendra se chocam com o verdadeiro racionalismo crítico na medida em que este se caracteriza pela busca contínua da verdade, e não da pretensa certeza e exercício da autoridade; pelo reconhecimento de que possamos estar errados e requer como método a admissão de tentativa e erro, que considerados em conjunto levam à descoberta de nossos próprios preconceitos, além da já ressaltada discussão crítica (Popper, 2006, p.199).
Para Popper (1974, p.177) o risco maior não decorre da tentativa de predição, de resto de quase improvável consecução, mas na fé depositada nos atos necessários para alcançar o fim proposto. Por ser o utopismo em ação um projeto que se pretende racional ao ser escolhido um determinado alvo deve-se buscar os meios para alcançá-los. Ocorre que escolhido um Estado ideal serão necessários projetos que influenciaria a sociedade com um todo. Para isso é necessário um regime centralizado que pode conduzir a uma ditadura.
Denominamos de utopismo todas as tentativas que fundadas em doutrinas e filosofias historicistas, eis que entende inapta pata prever o desenvolvimento futuro das sociedades e, ainda que possível, não afastaria os riscos inerentes a experimento sociais que requerem uma modificação drástica da sociedade, com uma quase sempre convergência para regimes autoritários. Por considerar-se possuidor da verdade tende a valer-se de métodos que não admitem contrariedade e óbices de terceiros. Sentimento que contrasta com a de Popper para quem mesmo haja verdade absoluta, jamais terá certeza que a alcançou e que reconhece no cientista não um descobridor de verdades definitivas sobre o universo, e que por isso são tentadoras em serem aplicadas compulsoriamente aos demais, ou seja, o resto de nós, mas como um descobridor de erros que busca reduzir o grau de incertezas humanas, mediante a criação de hipóteses testáveis e confrontáveis com dados.
UTOPIA COSMOPOLÍTICA
As utopias que alcançam prestígio de público e críticas abrangem aquelas que envolvem o homem considerado agente biológico e a possibilidade de sua evolução com seus reflexos na ordem moral. Também as utopias que elevam a natureza em todas as suas manifestações em objeto de respeito como senhores de direitos e não meros reflexos de direitos humanos. Para Wolf há uma terceira geração de utopia moderna. Essa utopia encontra suas formulações na Grécia clássica em suas manifestações hospitalidade para com estrangeiros e no Iluminismo nas pretensões universalistas da ética kantiana. Essa utopia pode ser resumida na abolição das fronteiras. Trata-se da utopia cosmopolítica. Sua raiz moderna encontra-se nas teorias liberais.
A utopia cosmopolitica é uma utopia mais ampla que a utopia em um estado. No que tem em comum com o marxismo ao pregar o fim dos estados na implantação do comunismo. Com esta também partilha sua origem nas teorias liberais criadas na modernidade. Ao contrário desta não prever o poder coletivo sobre os meios de produção e uma igualdade material absoluta. Wolf (2018, p.92) chama de utopia em segundo grau por essa visão supra-estatal, para ele:
Pois mesmo um Estado ideal, uma república fraterna ou uma cidade perfeitamente justa sempre se baseiam na distinção entre interior e exterior, cidadão e estrangeiro, território de dentro (o nosso) e território (o outro). Na utopia cosmopolítica não existe distinção entre interior e exterior, consequentemente não existe distinção entre política e moral”
Sua origem pode ser buscada no Iluminismo. Os valores universais do iluminismo de razão e tolerância expandidos para a humanidade. Mas que podem ter uma conotação negativa e realista na medida em que se constata a exclusão de grupos consideráveis.
Como toda teoria que tenha pretensão política, a utopia pós-política tem uma ética vinculada que atualiza seu ideário de valores. A ética cosmopolítica não almeja a exclusiva consideração e respeito individuais, ou mesmo considerar os demais como beneficiários de uma concessão, mas todos sem exceção usufruírem de uma integralidade que Wolf chamou de ética de terceira pessoa. Todos os humanos seriam detentores dos mesmos Direitos, isto é, liberdade igual. Ocorre que a proteção da liberdade, juntamente com a vida os mais paradigmáticos direitos, dá-se dentro do estado soberano. Isso pode ser constatado tanto nas leituras do arauto do estado absolutista Thomas Hobbes constituída a sociedade civil em oposição ao estado da natureza ocorre a renúncia da liberdade natural em prol de uma nova e mitigada liberdade no estado civil; como apóstolos do libertarismo contratualista como John Locke, para quem a instituição da sociedade civil mediante o contrato social assegurou um direito já preexistente no estado da natureza ao súdito à propriedade da sua vida e liberdade. Estando cumprida essa missão a defesa do estado como o locus onde indivíduos iguais e racionais mediante um pacto entregaram sua liberdade em troca de segurança de suas vidas, somente um fator grave faria a renúncia dessa garantia pela aquisição de uma maior, mas menos certa de um estado universal.
Wolf alertara que mesmo Kant já pressentira a dificuldade que seria algum intento dessa magnitude ao citar seguinte trecho de A paz perpétua do filósofo de Konigsberg “O direito cosmopolítico deve limitar-se ás condições de uma hospitalidade universal. Hospitalidade significa simplesmente o direito de cada um não ser tratado como inimigo no país onde esteja”
Apesar das restrições de Kant dado que é da essência do pensamento utópico ser irrealizável a princípio não pode servir como desestímulo. Evidentemente a utopia cosmopolítica sujeita-se ao mesmo itinerário das demais utopias. Começa com literatura, podendo chegar à fase da utopia em ação e submeter-se ao crivo da realidade. Ocorre que qualquer tentativa de realização de tal intento requererá a adoção de medidas de grande repercussão para o comercio mundial, transportes, habitação. Não há parâmetros em qualquer época humana ou sociedade passada de tão radical experiência. Falta de experiência que sequer pode ser suprida pela experiência européia que envolveu apenas países de um mesmo continente, compartilhando uma mesma matriz religião e apesar das disparidades econômicas e educacionais já supridas, dividem uma história comum pelo menos desde o advento da modernidade.
Por outro lado, pode-se falar nesse caso apenas como teoria seu potencial é uma aspiração digna, o que superaria o primeiro obstáculo de ser uma ética convergente com valores humanos consagrados. Wolf vai além ao apresentar as oposições mais contundentes (guerras e , e as esperanças mais auspiciosas, como aqueles decorrentes dos efeitos da globalização econômica e certa forma cultural com aceleração de comunicações, facilitação de transportes e aumento de comercio mundial ao aumentarem de certa forma a consciência planetária. O exemplo de cosmopolitização da União Europeia no campo político que de certa forma implementou regionalmente a realização do pensamento utópico sem qualquer oposição ideológica séria ou como sociedade de nações européias na forma de federação de nações com soberania parcialmente limitada.
Referências bibliográficas
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WOLF, Francis. Três utopias contemporâneas. Tradução de Mariana Echalar. São Paulo: Editora Unesp, 2018.
[1] Fez duas viagens ao Brasil. Feito prisioneiro na segunda viagem passou 09 meses como prisioneiro em uma aldeia Tupinambá. Escreveu Duas viagens ao Brasil um relato de grande sucesso.
[2] Huguenote acompanhou a expedição de Villegainon ao Rio de Janeiro. Escreveu um livro sobre a viagem chamado História de uma Viagem Feita à Terra do Brasil, Também Chamada América
[3] Berlin, p. 73/4
[4] Entre duas Republicas: as origens da democracia italiana, p. 98