Estatuto da Criança e do Adolescente

A criança como sujeito de direito à proteção: dos tratados internacionais ao ordenamento jurídico brasileiro

Maria Aparecida da Silva[i]

Vívian Lara Cáceres Dan[ii]

Resumo. Este artigo descreve o processo histórico da criança como sujeito de direito à proteção, numa perspectiva legal, desde os tratados internacionais até a construção dentro do ordenamento jurídico brasileiro, em 2012, com a implementação do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), demonstrando que, inicialmente, a legislação brasileira teve base paternalista, autoritária, assistencialista e tutelar e suas bases conceituais sustentaram a exclusão e o controle social da pobreza. Trata-se de uma pesquisa de cunho qualitativo, que faz uma análise dos aportes jurídicos protetivos referentes à criança e adolescentes, e também utiliza o procedimento bibliográfico. Apesar dos avanços na legislação e a adequação de rigores das penas para o agressor, a violência doméstica contra a criança permanece sendo praticada sem grandes alterações no comportamento e cultura do abuso escancarando a necessidade de respostas mais eficazes que devem ocorrer para além de leis rígidas.

Palavras-chave:Ciências Humanas e Sociais. Pedagogia e Direito. Violência doméstica. Criança e adolescente.

Os múltiplos espaços em que as crianças são cerceadas dos seus direitos nos orientam a compreender que a violência contra criança não conhece fronteiras, ocorre no mundo todo e está presente nas relações mais elementares do cotidiano dessas crianças.

O estudo do Fundo das Nações Unidas para a Infância (UNICEF, 2021) apresentou 5 (cinco) contextos em que a violência contra as crianças ocorre: 1) em casa e na família; 2) na escola e contextos educativos; 3) noutras instituições como orfanatos e instituições para crianças em conflito com a lei; 4) em situações de trabalho; 5) na comunidade e nas ruas. Esse estudo revelou que nos últimos 4 anos, 180 mil crianças e adolescentes sofreram violência sexual no Brasil[ii]. E ainda, foi divulgado pelo “Panorama da violência letal e sexual contra crianças e adolescentes no Brasil”, que as crianças morrem em decorrência da violência doméstica cometida dentro de casa, enquanto os adolescentes morrem, em grande maioria, em decorrência da violência urbana e racismo[ii].

Esses estudos vêm no sentido de apontar que essa forma de violência atravessa todas as camadas sociais, culturais, religiosas e étnicas, para afirmá-la como um fenômeno complexo potencializado pela ausência de dados, o que impede e compromete o entendimento da proporção do problema e a possibilidade de se tomar as medidas cabíveis.

Assim, esse artigo tem por objetivo abordar como os aportes jurídicos internacionais e nacionais vieram abarcando os direitos e a proteção desses sujeitos de direitos ao longo do tempo e quais os avanços nesse tratamento jurídico.

Trata-se de uma pesquisa de cunho qualitativo com uma etapa bibliográfica e outra documental baseada em referenciais teóricos e legislação internacional e nacional.

A importância do tema está no fato de que a violência na sociedade contemporânea é um desafio que, ao longo dos anos, vem sendo cada vez mais discutido e problematizado por diversos estudiosos e é considerado hoje, um problema social que se apresenta e se reflete em diferentes espaços incluindo a família. (TIELLET, 2010).

 1. UM APANHADO HISTÓRICO SOBRE O TRATAMENTO DA CRIANÇA NOS TRATADOS INTERNACIONAIS           

Quando falamos da infância sabemos que milhões de crianças estão desnutridas, sem acesso ao mais essencial, com a exclusão de seus direitos sendo as violência e abusos muito frequentes.

As normativas são regulamentos por meio dos quais a comunidade internacional se compromete a respeitar os direitos estabelecidos através da ratificação deles pelos países membros. Essa ratificação significa a inclusão dos tratados no ordenamento jurídico do país. Esta não é obrigatória, mas se um país se torna signatário, em alguns casos, tanto a Organização da Nações Unidas (ONU) quanto a Organização dos Estados Americanas (OEA) recomendam ações e até sanções no caso de descumprimento desses direitos previstos. É nesse sentido que esses documentos internacionais tentam efetivar compromissos dos Estados membros para que as crianças tenham assegurados seus direitos essenciais como o da educação e nutrição, por exemplo.

A defesa dos direitos das crianças e dos adolescentes tomaram vulto no final da primeira década do século XX. Foi a Primeira Guerra Mundial, o “pano de fundo” para o surgimento de iniciativas como a da Save the Children[ii], que apoiaram os direitos da infância em nível internacional. Naquele momento, a criança era considerada alguém que se encontrava em fase de desenvolvimento, necessitando de amparo, atendimento às suas necessidades e protegida de todas as formas de exploração.

A Declaração dos Direitos da Criança foi promulgada em 1923, pelo Conselho da União Internacional de Proteção à Infância, e serviu de referência em 1924 para a elaboração de instrumento jurídico internacional em defesa dos direitos da criança, promovido pela Liga das Nações ou Sociedade das Nações[ii].

Não podemos dizer que houve debates filosóficos a respeito das necessidades das crianças, nem que foi um momento de maturação dos conceitos sobre o que é ser criança, sobre os seus direitos, pois não há, nesse tratado, menção explícita sobre a violência contra à criança no interior do seio familiar, sendo que a violência mencionada diz respeito à guerra e ao fato dessa criança se encontrar na condição de órfão ou de explorada materialmente.

Assim, essa Declaração veio como resposta às barbáries praticadas durante a Primeira Guerra Mundial, uma vez que a mesma, foi endossada pelos membros da Liga das Nações, servindo de guia para as demais que vieram em seguida e passando a ser conhecida por Declaração de Genebra. A partir dela, homens e mulheres de todas as nações tiveram que reconhecer que é dever da humanidade dar às crianças o melhor de si independente da raça, da nacionalidade ou credo.

Em 24 de outubro de 1945, após o fim da Segunda Grande Guerra, a Liga das Nações foi substituída pela Organização das Nações Unidas (ONU). Essa sucessão aconteceu na Conferência de São Francisco sob os mesmos princípios da Liga: manter a paz, a segurança e a cooperação entre as nações. No ano seguinte, o Conselho Econômico e Social das Nações Unidas (Ecosoc) recomendou que os Estados-membros adotassem a Declaração de Genebra com o objetivo de direcionar olhares do mundo para os problemas relacionados às crianças, criando no mesmo ano o Fundo de Emergência das Nações Unidas para as Crianças (UNICEF)[ii].

A Declaração de Genebra, de 1948, veio se tornar um documento de repúdio e indignação contra o abandono de crianças no pós-guerra, e que foi apoiado pela comunidade internacional para então responderem o que fazer com essas crianças. Essa declaração criou alguns princípios norteadores em nível internacional para que pudessem trabalhar a ideia de bem-estar das crianças, além de não ser um documento obrigatório para os Estados.

A Segunda Guerra Mundial deixou claro a que ponto a humanidade pôde chegar em relação ao desprezo da dignidade e da vida. Foi neste cenário que o instituto de direitos humanos foi construído, ou seja, como condição sine qua non[ii] na vida em sociedade. E foi do processo de internalização desses direitos pelos aliados, em consenso político, que propiciou o contexto da Carta das Nações Unidas em 1945, criando um Conselho Econômico e Social para tratar da proteção dos direitos dos homens e mulheres. Desse processo também foi criada a Declaração Universal dos Direitos Humanos, que não apenas reforça os direitos fundamentais, mas também responsabiliza os Estados na esfera internacional por suas falhas, ausências, e omissões no que tange à proteção desses direitos.

Essa declaração reconheceu pela primeira vez que a criança deveria ter cuidado e atenção especiais no seu artigo 2, inciso XXV. (ONU, 1948). Especialmente no art. 25, a Declaração legitima direitos de ajuda e “assistência especial” para a “maternidade e para a infância”, declarando que a “proteção social” é um direito que deveria ser igual tanto para as crianças nascidas dentro do matrimônio, quanto para as que nascerem fora dele. (ONU, 1948)

Com o objetivo de estabelecer a proteção universal dos direitos humanos, a Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948, possibilitou a elaboração de um conjunto de tratados internacionais de direitos humanos,[ii] que incluiu em 1989, a Convenção sobre os Direitos da Criança, e estabeleceu a proteção universal dos direitos humanos para as crianças. (ONU, 1989)

Mas, antes mesmo da Convenção de 1989, a ONU aprova em 1959 a Declaração dos Direitos da Criança, e nela estão explícitos dez direitos com objetivo de garantir proteção e “cuidados especiais em decorrência da imaturidade física e mental da criança”, levando em consideração a promoção uma infância feliz e com direitos reconhecidos. (ONU, 1959)

A declaração enfatiza os esforços que devem ser realizados para a proteção da criança contra as discriminações, abusos, violências, exploração ou crueldade, para que ela possa ter condições de desenvolvimento pautadas na dignidade e liberdade. (ONU, 1959)

Portanto, nessa declaração foi desenvolvido o princípio do “interesse superior da criança”, com destaque especial à sua situação específica de pessoa que está em desenvolvimento. Vários direitos dessa declaração foram anexados em convenções posteriores como o Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos de 1966.

Assim como foram instituídos dispositivos específicos que visavam a proteção da criança e do adolescente, entre eles a Declaração sobre os Princípios Sociais e Jurídicos Relativos à Proteção e ao Bem-Estar das Crianças, também ficou normatizado, através da Resolução do Conselho Nacional dos Direitos da Criana (CNDC) n. 41/1995, a regulamentação em nível nacional e internacional a respeito da tutela ou a adoção de criança por uma família.

A Convenção sobre os Direitos da Criança da ONU (CDC) de 1989, da qual existem 193 Estados Partes, reconhece a importância da cooperação internacional para a melhoria das condições de vida das crianças em todos os países em desenvolvimento. É importante esclarecer que a Convenção sobre os Direitos da Criança não faz distinção entre criança e adolescente. Criança é pessoa entre 0 e 18 anos de idade. (ONU, 1989)

O artigo 3º da CDC deixa explícito a proteção e o cuidado à criança, pelos responsáveis, como direito garantido em lei. Os artigos 9º, 19, 34, 35 e 39 apontam para os casos de maus tratos, abandono, negligência, violência física, mental ou sexual, prostituição, exploração pelo trabalho, em espetáculos ou materiais pornográficos e ainda sequestro, venda ou o tráfico de crianças que se encontrarem sob a guarda de seus pais ou responsáveis, oferecendo à criança a proteção necessária ao seu desenvolvimento integral e bem-estar. (ONU, 1989)

Nesse documento, a criança é elevada a um sujeito que deve ser respeitado pela sociedade, elemento chave para se pensar a emancipação e empoderamento da criança. As crianças, enquanto grupo social específico e distinto, podem ter seus direitos levados a sério. (ONU, 1989)

Assim, a CDC combina vários direitos: econômicos, sociais, culturais, civis e políticos, adotando uma perspectiva holística. São os direitos das crianças que demonstram os conceitos de criança que prevalecem na sociedade, sobre as condições de vida e também da infraestrutura relevantes para o seu desenvolvimento, bem como evidencia o próprio estatuto da criança de uma sociedade.

Os princípios norteadores dessa CDC são: participação, proteção e sustento. Participação porque é importante ouvir a criança no processo de decisão e também dela ser considerada na interpretação e implementação dos outros direitos; proteção contra todas as formas de violência, negligência e formas de exploração; sustento abrangendo aí o direito à saúde, educação, segurança social e condições materiais adequadas.

Também enfatiza a proteção à identidade da criança, direito de brincar, dormir, ter atividades culturais, meios familiares alternativos à adoção, e que o Estado deve garantir a reabilitação das crianças vítimas de qualquer forma de violência ou que sofreram exploração. (ONU, 1989)

A Convenção sobre os Direitos da Criança (CDC), foi ratificada pelo Estado brasileiro em 1990, instituindo o paradigma da proteção integral e especial das crianças e adolescentes, sendo que as diretrizes dessa declaração já constavam na declaração internacional de 1959.

Foi esse documento também que estabeleceu parâmetros de orientação e atuação por parte dos estados-membros para efetivar esses princípios e assim, concretizarem o desenvolvimento da criança em condição individual e social de forma saudável, já que esse período é fundamental na formação de caráter e personalidade humana.

A sua promulgação ocorreu pelo Decreto nº 99.710, em 21 de novembro de 1990, e dessa forma reconheceu-se as crianças e os adolescentes como sujeitos e titulares de direitos, criando as bases para a elaboração do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) em 1990.

Porém, no campo internacional questiona-se e encaminha-se para o aprofundamento dos direitos das crianças e dos adolescentes a exemplo da Declaração de Estocolmo de 1998[ii]. Esta declaração retoma o artigo 34 da Convenção das Nações Unidas sobre os Direitos da Criança de 1989, e afirma que todo menino ou menina tem direito a uma plena proteção contra todas as formas de exploração e abuso sexual. E elabora através de diretrizes, ações integradas em nível local, nacional e internacional para o combate ao fenômeno da exploração sexual e comercial de crianças. (UNICEF, 1998)

O documento também chama a atenção para os fatores que colaboram diretamente para a exploração sexual e comercial de crianças, elencando as estruturas socioeconômicas injustas, as questões de educação, o consumismo, a discriminação de gênero, práticas tradicionais nocivas e o tráfico de crianças. Neste sentido, observou que a ausência, a inadequação, o descumprimento da lei e também a corrupção, dão contribuições adicionais a esse tipo de violação fundamental dos direitos da criança. (UNICEF, 1998)

Em 2001, a Assembleia-Geral das Nações Unidas, aprova a realização de um “estudo completo sobre a questão da violência contra crianças” e a nomeação de um perito independente com “vista a liderar a elaboração do estudo, em colaboração com o Alto Comissariado para os Direitos Humanos, o Fundo das Nações para a Infância e a Organização Mundial de saúde” (ALBURQUERQUE, 2005, p. 23).

Em 12 de fevereiro de 2003, o Secretário-Geral nomeou o brasileiro Paulo Sérgio Pinheiro, como o perito independente encarregado de liderar a elaboração do estudo da ONU sobre a violência contra crianças. É a partir da Convenção das Nações Unidas sobre os Direitos da Criança que a situação das crianças, em termos globais, passou a ter a devida atenção e, por conseguinte, as mudanças nas legislações dos Estados Partes da ONU, estabeleceram normas de proteção. No Brasil, teremos como marco o Estatuto da Criança e do Adolescentes (ECA) fixando os ordenamentos jurídicos como antes e depois do ECA.

Foi possível situar o direito da criança e do adolescente no campo dos direitos humanos, alinhado com base no ordenamento jurídico estabelecidos pelas agências internacionais e reconhecido através da legislação brasileira.

De acordo com Figueiredo et all:

A concepção da criança e do adolescente como sujeitos de direitos começou a ser fomentada a partir da década de 1970, na efervescência da luta pelos direitos humanos no Brasil, sendo intensificada na década de 1980 com a luta pela democratização do país e pela garantia de direitos. (FIGUEIREIDO, 2016, p.17).      

Através do ordenamento jurídico estendemos, às crianças e aos adolescentes, os mecanismos legais e jurídicos de proteção, disponíveis a todos os seres humanos em geral.

2. A CRIANÇA NO ORDENAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO

2.1 Estado da arte das normativas nacionais anteriores a 1990 para a caracterização do direito da criança e adolescente

Para nos auxiliar na caracterização dos períodos do direito da criança e do adolescente no Brasil contaremos com os trabalhos de Bitencourt (2009) e de Figueiredo et all (2016). Segundo estes autores são quatro os períodos: Período caritativo-religioso, seguido do Período filantrópico-científico-higienista, posteriormente, o Período militar-científico e atualmente o Período democrático humanista ou da proteção integral.

No chamado período caritativo-religioso, predominavam os valores ocidentais e cristãos da piedade e da caridade, com fortes características assistencialistas (FIGUEIREDO et all, 2016). E, de acordo com Bitencourt (2007), nesse período foi outorgada a primeira Constituição do Império (1824) e nela não consta nenhuma referência às crianças e aos adolescentes como sujeitos de direito (BITENCOURT, 2009).

No período de 1889 a 1964, a caridade e a piedade cristã não são mais suficientes (Figueiredo et all, 2016). A preocupação com a condição material de crianças e adolescentes deixa de ser uma questão de filantropia e caridade para integrar às responsabilidades administrativas dos Estados. É um período marcado pela instalação da República e caracterizado pela racionalidade científica segundo os autores já mencionados.

A Constituição da República dos Estados Unidos do Brasil de 24 de fevereiro de 1891 também não tratou a respeito dos direitos à proteção às crianças e aos adolescentes. O que deixa evidente a necessidade de investir na educação das crianças e adolescentes com foco na capacitação profissional, a fim de garantir-lhes subsistência e evitar a delinquência, além da necessidade de torná-los produtores e reprodutores da dinâmica do desenvolvimento material e social imposta pela vida moderna. (BRASIL, 1891).

Em 1927, é promulgado o Código de Menores de Mello Mattos, que defendia a internação, com viés educacional e disciplinar, para correção ao comportamento contrário às normas, a fim de tornar os/as infratores/as pessoas de comportamento aceitável aos padrões exigidos pelo novo modelo de sociedade desenhado. (BRASIL, 1927)

Somente na promulgação da Constituição dos Estados Unidos do Brasil em 16 de julho de 1934, no seu Art. 138, é que fazem menção aos direitos da criança e do adolescente. Deste modo, mesmo de forma bastante superficial ficou institucionalizado direitos de proteção e defesa. (BRASIL, 1934)

Em 10 de novembro de 1937, durante o governo de Getúlio Vargas, foi promulgada a Constituição dos Estados Unidos do Brasil, que institucionalizou alguns dispositivos que atribuíram ao Estado o dever de garantir os direitos da criança e do adolescente. O artigo 16, inciso XXVII dispõe sobre a competência da União, de poder estabelecer normas fundamentais na defesa e proteção da saúde, especialmente da saúde da criança, definindo neste mesmo dispositivo, no seu artigo 127, a criança e o adolescente como sujeitos de garantias. Na sequência, o artigo 129 e o artigo 130 fundamentam como obrigação da Nação, dos Estados e dos Municípios garantir acesso ao ensino público e gratuito. (BRASIL, 1937)

A Constituição dos Estados Unidos do Brasil de 18 de setembro de 1946, trata do dever do Estado com a obrigação de dar assistência maternidade e auxiliar às famílias com grande número de filhos e reafirma a obrigatoriedade do Estado em possibilitar o direito à educação gratuita às crianças e adolescentes. (BRASIL, 1946)

O terceiro período, de 1964 a 1988, chamado de militar-científico, inaugura uma nova Constituição em 24 de janeiro de 1967, e no seu artigo 167, § 4º reafirma a necessidade de assistência à maternidade, quando determina que se constitua lei de assistência, para que todos os que dela necessitarem encontrem amparo. (BRASIL 1967). Nessa perspectiva, em 17 de outubro de 1969, foi criada a Emenda Constitucional nº 1, que no seu artigo 175, § 4º dispôs sobre “o dever do Estado de assistência à maternidade, à infância e à adolescência” (BRASIL, 1969), e também passa a tratar da educação dos excepcionais, exigindo que esta fosse regida por lei especial.

As crianças e os adolescentes são denominadas de menores, definidos na Lei n. 6.697/1979 (Código de Menores). E segundo essa lei, os menores são aqueles que têm até dezoito anos de idade, que se encontrem em situação irregular ou entre dezoito e vinte e um anos, nos casos expressos na lei. (BRASIL, 1979)

O Código de Menores dispôs sobre assistência, proteção e vigilância a menores. Como proteção, o artigo 45 rezava que a autoridade judiciária podia decretar a perda ou suspensão do pátrio poder e a destituição da tutela dos pais ou tutor que desse causa à situação irregular do menor em conformidade ao inciso II do artigo 2º, em que a criança ou o adolescente (menor), fosse vítima de maus tratos ou castigos imoderados impostos pelos pais ou responsável. (BRASIL, 1979)

Foram duas décadas de regime ditatorial e quase 60 anos de tentativas de reformulação dos Códigos de Menores até a promulgação da última Constituição da República Federativa do Brasil, em 5 de outubro de 1988, quando ocorreu um grande avanço em relação às garantias de direitos às crianças e adolescentes. Dentre elas, podemos destacar o fato de que as crianças e adolescentes passam a ser portadores de direitos e não apenas portadores de “carências”, e também deixa de ter um caráter discriminatório relacionando pobreza à delinquência.

Assim, no quarto e atual período a partir da CF de 1988, chamado de democrático-humanista ou da proteção integral, o movimento de defesa dos direitos de crianças e de adolescentes foi de destaque na década de 1980, quando ocorreu o processo de elaboração da nova Carta Constitucional do País, e o Movimento Nacional dos Meninos e Meninas de Rua (MNMMR) e a Pastoral do Menor apoiaram a emenda popular denominada “Criança, Prioridade Nacional”, que acabou mobilizando a sociedade brasileira com mais de 1,5 milhão de assinaturas para essa emenda popular, que deu origem ao artigo 227 da Constituição Federal de 1988.

Com a aprovação do artigo 227 da Constituição Federal, o Brasil antecipou as diretrizes da Convenção Internacional dos Direitos da Criança, aprovada no ano seguinte em 1989. Não por acaso, o artigo 227 é uma síntese da Convenção, cujo rascunho o Brasil teve acesso privilegiado antes da aprovação da própria convenção.

Foi com a promulgação da Constituição Federal de 1988 que se estabeleceu o Estado Democrático de Direito definindo que todas as crianças e adolescentes eram sujeitos de direitos, universalizando os direitos humanos e determinando ainda a participação popular na gestão das políticas. (BRASIL 1988)

Num momento posterior, os movimentos de defesa dos direitos das crianças e dos adolescentes lutaram pela inclusão dos direitos da criança e do adolescente nas constituições estaduais e leis orgânicas municipais e, simultaneamente, lutaram para remoção do entulho autoritário, substituindo o Código de Menores.

A Constituição Federal de 1988 adotou em absoluto a Doutrina da Proteção Integral, expressando-a no seu artigo 227. Ela atribui a responsabilidade à família, à sociedade e ao Estado, consolidando a proteção total e as garantias desses direitos, estabelecendo medidas de punição sobre abuso, violência e a exploração sexual da criança e do adolescente. (BRASIL, 1988)

De acordo com Figueiredo et all (2016, p. 28):

O Brasil foi o primeiro país a adequar sua legislação às normas da Convenção da Organização das Nações Unidas sobre os Direitos da Criança, incorporando-as na sua Constituição.      

O grande resultado deste momento de luta pelos direitos da infância e adolescência no Brasil é representado dois anos depois, pela promulgação do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) em 1990. Essa lei detalha o art. 227 da CF e é considerada a tradução da Convenção Internacional dos Direitos da Criança.

Portanto, os dois aportes protetivos mais importantes se baseiam nessa normativa internacional e também em outras tais como a Declaração de Riad (1990), Regras de Beijing (1985) e nas declarações universais mencionadas.

2.2 Normativas posteriores a 1990

O ECA, lei n. 8.069 de 13 de julho de 1990, é uma lei importante porque houve uma mudança não apenas no conteúdo normativo, mas também no processo de construção que foi extremamente participativo. Houve a mobilização de crianças, comunidades de base, associações profissionais, entidades de movimentos sociais, igrejas e a academia. Foi ainda instituído nesse estatuto, os Conselhos dos direitos da Criança e adolescentes em diversos níveis de competência e atuação (nacional, distrital, estadual e municipal), tendo os mesmos o caráter deliberativo; passaram a ter controle das ações do governo e também de entidades não-governamentais; passaram a ter composição paritária para que fosse possível efetivar os direitos e assegurar as políticas públicas; passaram a existir ainda os conselhos tutelares, cujo papel é o de zelar pelo cumprimento da lei e atender os casos de violação dos direitos de crianças e adolescentes. (BRASIL, 1990)

A partir do ECA, não se usa mais a palavra “menor” para designar tanto as crianças quanto os adolescentes. Os artigos 3º e 4º do ECA asseguram direitos fundamentais, afim de se desenvolver físico, mental, moral, espiritual e social, em condições de liberdade e de dignidade, sendo responsabilidade da família e das instituições assegurar-lhes os direitos arrolados na Lei 8.069/1990.

Houve ainda uma preocupação em incluir os direitos das crianças e dos adolescentes, tanto no que se refere à criação de lei, quanto nas alterações das normatizações estabelecidas anteriormente.

A exploração sexual das crianças e dos adolescentes é um fato que não era abordado pelo Código Penal até a lei 12.015/09 entrar em vigor, que já era acobertada pelo artigo 227 §4°da Constituição Federal de 1988. Para se tipificar um crime de natureza abusiva em face da proteção desses indivíduos, era necessário tipificar pela Lei 8.069 de 13 de julho de 1990, popularmente conhecida como o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA).

A falta de tipicidade do crime de vulnerável no Código Penal para esse tipo de situação acabou gerando uma situação gravíssima, entretanto, foi criada no Congresso Nacional uma Comissão Parlamentar Mista de Inquérito (CPMI) por meio do requerimento 02/2003, apresentado no mês de março de 2003. Esse requerimento foi assinado pela Deputada Maria do Rosário e pelas Senadoras Patrícia Saboya Gomes e Serys Marly Slhessarenko, com a finalidade de investigar as situações de violência e redes de exploração sexual das crianças e dos adolescentes no Brasil. A CPMI encerrou oficialmente em agosto de 2004, e os resultados da sua investigação eram assustadores diante da exploração sexual, no país. Através dos resultados dessa CPMI foi realizado o projeto de lei de número 253/2004 que, após algumas modificações nas respectivas casas parlamentares foi culminado na Lei de número 12.015 de 7 de agosto de 2009.

A criação dessa Lei trouxe profundas alterações no Código Penal brasileiro, e uma delas foi tornar a ação pública incondicionada referente aos crimes sexuais contra menores. Dessa forma, o Ministério Público pode iniciar uma ação mediante denúncia ao Poder Judiciário, independentemente de qualquer condição, não sendo preciso que a vítima ou outro envolvido queira ou autorize a propositura da ação. Outra mudança importante, foi substituir o conceito de presunção de violência disposto no art. 224 do mesmo código. Nesse artigo era previsto presunção de violência se a vítima fosse menor de 14 anos, gerando uma abolitio criminis[ii] passando a valer o disposto no art. 217-A, e dando uma continuidade normativo-típica. O caput desse artigo aborda a pena para o delinquente que tiver conjunção carnal ou praticar outro ato libidinoso com menor de 14 anos. As figuras do estupro e do atentado violento ao pudor foram acrescentados em uma única tipicidade penal, alterado o artigo 213 do Código Penal, que tratava apenas das mulheres submetidas à conjunção carnal mediante violência ou grave ameaça, e foi criado o artigo 217-A, que encerrou a discussão que havia perante os Tribunais e suas instâncias no que diz respeito à natureza da presunção de violência para o crime cometido contra a vítima menor de 14 anos.

Outras alterações do ECA e das legislações nacionais estão ocorrendo até hoje, e as que destacamos são:

O Decreto n. 3.597/2000 que veio promulgar a Convenção 182 relativa à interdição e eliminação das piores formas de trabalho das crianças bem como promulgar a Recomendação 190 da OIT que trata do mesmo tema.

A lei n. 13. 257/2016 (marco legal da primeira infância) incluiu no art. 8º do ECA acesso a todas as mulheres à política de saúde assegurando entre outros o direito à atenção humanizada à gravidez, nutrição adequada, atendimento pré-natal etc.

A lei federal n. 13.431/2017 (lei da escuta protegida) aprimorou as diretrizes para o atendimento de crianças ou adolescentes vítimas ou testemunhas de violências. Essa lei incluiu no art. 10 do ECA e passou a garantir o acompanhamento para a amamentação nos hospitais e estabelecimentos que lidam com a saúde da gestante.

A lei n. 13.438/2017 determina que o SUS deve adotar protocolos que avaliem o desenvolvimento psíquico das crianças com até 18 meses de idade e portanto, devam ter acompanhamento pediátrico.

Já a lei n. 13.440/2017 incluiu no art. 244-A do ECA mais uma penalidade nos crimes de exploração sexual de crianças e adolescentes.

A lei n. 13.441/2017 acrescentou os artigos 190-A e 190-E prevendo a infiltração policial virtual para combater crimes cibernéticos e contra a dignidade sexual de vulneráveis.

E o Por fim, a lei n. 14. 344 de 2022 que cria mecanismos para a prevenção e o enfrentamento da violência doméstica e familiar contra a criança e o adolescente, dentre eles as medidas protetivas de urgência em relação ao agressor e à vítima. Também altera a redação de vários dispositivos do ECA, Lei de Execução Penal, Código Penal, Lei de Crimes Hediondos e Lei Maria da Penha. E ainda, institui o dia 03 de maio como dia nacional de combate à violência doméstica e familiar contra criança e adolescente, em homenagem ao menino Henry Borel. (BRASIL, 2022)

Todas essas alterações buscam efetivar o princípio da dignidade humana. Segundo Ingo Wolfgang Sarlet, a dignidade da pessoa humana é definida da seguinte forma:

[…] temos por dignidade da pessoa humana a qualidade intrínseca e distintiva de cada ser humano que o faz merecedor do mesmo respeito e consideração por parte do estado e da comunidade, implicando, neste sentido, um complexo de direitos e deveres fundamentais que asseguram a pessoa tanto contra todo e qualquer ato de cunho degradante e desumano, como venham a lhe garantir as condições existenciais mínimas para uma vida saudável, além de propiciar e promover sua participação ativa e corresponsável nos destinos da própria existência e da vida em comunhão com os demais seres humanos (SARLET, 2001, p.60).

E, segundo Alessandro Baratta (1999), o discurso sobre os direitos humanos se estendeu no século XX às crianças e adolescentes confirmando uma tendência internacional que partiu das Nações Unidas.

Assim, para dar efetividade a esse “mínimo invulnerável” que todo Estatuto jurídico deve assegurar, o Estado precisa desenvolver os mecanismos necessários para garantir a proteção integral dessas crianças vistas aqui como sujeitos de direitos.

3 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Abordamos nesse artigo sobre o percurso histórico dos aportes protetivos internacionais no que se refere às crianças e aos adolescentes. Com esse percurso histórico temporal, buscamos demonstrar a evolução das leis que tratam da proteção e promoção dos direitos humanos de crianças e adolescentes. A nível nacional percebemos o avanço legislativo no tratamento e conquista de direitos. Também percebemos um avanço normativo do Estado ao lidar com o fenômeno da violência doméstica contra a criança no âmbito de ampliação dos protocolos normativos.

O código de menores de 1927 foi reformulado em 1979, mas manteve os princípios da teoria menorista da situação irregular. Assim, até 1980 manteve-se, no Brasil, a Doutrina da situação irregular (representada por esse código de menores) cuja inspiração foi o contexto de autoritarismo e regime militarista excludente que o país vivia. E foi construída ideologicamente para intervir na infância e adolescência pobre e estigmatizada. A legislação teve base paternalista, autoritária, assistencialista e tutelar e suas bases conceituais sustentaram a exclusão e o controle social da pobreza dando duas alternativas à criança pobre: trabalho precoce (prevenção ao delinquente latente) e institucionalização (fator regenerador de sua fatal perdição).

Foi a conjuntura nacional de redemocratização pelos movimentos sociais e os documentos iniciais da Convenção dos direitos da Criança, que começam a fortalecer a ideia de proteção integral da criança.

Também entendemos que foi a Constituição Federa de 1988 que concedeu garantia total de direito e proteção, reconhecendo as crianças e os adolescentes como sujeitos de direito, o que se expressa um avanço para que esses sujeitos estejam resguardados em todos os espaços, e protegidos das ações violentas que impedem o seu desenvolvimento físico, psicológico e social. O Estatuto da Criança e Adolescente (1990) também se configura como uma lei importante porque houve a elevação do status da criança como sujeitos de direitos e o reconhecimento de que são vulneráveis, por isso a proteção integral e especial.

Apesar dos avanços na legislação e a adequação de rigores das penas para o agressor, dentre outras legislações que modificaram e continuam a alterar o ECA, a violência doméstica contra a criança permanece sendo praticada. No Brasil, muitos estudos indicam que esse tipo de violência consiste em uma das principais causas de morbidade e mortalidade entre as crianças, tendo como principais perpetradores dessa violência os pais ou responsáveis.

Diante dessa realidade, percebemos que a cultura do abuso não foi estancada e as crianças e adolescentes permanecem sendo alijadas de seus direitos sendo um desafio ao Estado diuturnamente melhorar as redes de proteção para que a criança seja efetivamente um sujeito de direito originário relativo a essas instituições.

REFERÊNCIAS

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[i]SILVA, Maria Aparecida da. Professora Mestra Substituta do curso de Licenciatura e História da Universidade do Estado de Mato Grosso (UNEMAT).

 Curriculum Lattes: http://lattes.cnpq.br/1382535105767056

 ORCID:   https://orcid.org/0000-0001-8178-2929

 E-mail:   tida.h@unemat.br

 [ii] Pós-Doutora em Ciências Jurídicas e Sociais pela Universidade Federal Fluminense (UFF, 2020), Professora Adjunta do curso de Direito da Universidade do Estado de Mato Grosso, vice-líder do Grupo de Pesquisa Políticas Públicas, Direito e Sociedade (PPDES/UNEMAT).

 Curriculum Lattes: http://lattes.cnpq.br/7660376238708441

 ORCID:   https://orcid.org/0000-0001-9880-3028

 Email:   vivian.dan@unemat.br

 

Como citar e referenciar este artigo:
SILVA, Maria Aparecida da; DAN, Vivian Lara Cáceres. A criança como sujeito de direito à proteção: dos tratados internacionais ao ordenamento jurídico brasileiro. Florianópolis: Portal Jurídico Investidura, 2022. Disponível em: https://investidura.com.br/artigos/estatuto-da-crianca-e-do-adolescente/a-crianca-como-sujeito-de-direito-a-protecao-dos-tratados-internacionais-ao-ordenamento-juridico-brasileiro/ Acesso em: 08 dez. 2024