A Febre da Terceirização
Kiyoshi Harada*
A terceirização, que já se tornou uma atividade rotineira no setor privado, caminha a largos passos no setor público por obra e graça de incautos administradores, atraídos pela rapidez e informalidade daquele setor, abrindo mão de prerrogativas inerentes do Poder Público ao ponto confundi-la com a privatização.
Não se sabe exatamente o porquê dessa tendência dos governantes de responder às deficiências e às falhas no serviço público com mudanças, modificações e reformas sem a menor preocupação em analisar as causas dessa deficiência que muitas vezes são notórias, por decorrerem de falta de recursos materiais, prejudicando a eficiente atuação dos servidores públicos. Mas os governantes preferem exercitar a imaginação criadora investindo celeremente no desconhecido, ao invés de investir no que já existe melhorando a infra-estrutura dos órgãos públicos. Essas experiências que resultam no desvirtuamento de serviço público sempre acabam custando muito caro ao cidadão contribuinte.
Entre nós, esse desvirtuamento começou com o setor de transporte coletivo urbano, no qual foi implementado um regime de capitalismo sem risco ao arrepio do que dispõe o art. 30, V da CF, que preconiza a prestação desse serviço de caráter essencial diretamente pelo Município, ou pelo regime jurídico da concessão ou permissão. Resultado: ruas e avenidas estão permanentemente congestionadas com excesso de ônibus circulando semi-vazios anulando, em parte, o esforço imposto pelo rodízio, à população motorizada. Em seguida, o setor de saúde pública sofreu uma ferida mortal com a introdução do mirabolante PAS, formado por entidade privada. Por ironia, a Constituição cidadã de 1988 prescreve em seu art. 196, até com exagero, que a “saúde é direito de todos e dever do Estado”. Muitos poderão pleitear na Justiça a sua saúde!
Ambos os setores retro mencionados já estão exigindo forte injeção de recursos oficiais, muito além dos previstos na lei de meios, o que implica desvio na execução orçamentária comprometendo a vontade média da população espelhada na lei orçamentária anual.
Agora, a imprensa vem noticiando os estudos que a Prefeitura está fazendo para retirar de seu órgão institucional permanente, a Procuradoria Geral do Município, a tarefa de promover com exclusividade a cobrança da dívida ativa, entregando esse serviço público a escritórios particulares. O objetivo seria acelerar a cobrança de cerca de R$ 4 bilhões de tributos em atraso, como se a mudança do “órgão cobrador” tivesse o condão de agilizar a atuação da Justiça. Ironicamente foi a mesma Prefeitura que, na pendência de recurso extraordinário onde se discute a inconstitucionalidade do IPTU progressivo (Adin proposta pelo Procurador-Geral da Justiça), por errônea decisão política, determinou-se o ajuizamento de milhares de execuções fiscais para a cobrança daquele imposto, coincidentemente ou não, logo após o pronunciamento do STF no sentido de sua inconstitucionalidade, proclamada em outro processo semelhante àquele em que ela figura como parte interessada. Felizmente a medida liminar concedida pelo STF naqueles autos da Adin livrou os Anexos Fiscais do desenvolvimento de trabalhos que poderiam restar inúteis com a final proclamação de inconstitucionalidade dessa progressividade que, diga-se de passagem, “não tem pé nem cabeça”.
Pergunta-se, porque desprezar a longa experiência do Departamento Fiscal da PGM? Por que não dotar aquele setor especializado com os recursos materiais à altura das necessidades atuais?
Terceirizar o serviço de cobrança da dívida ativa, além de comprometer a sua eficiência pela cisão da fase administrativa de lançamento do tributo da fase judicial de sua cobrança, implica transformação do serviço público permanente, executado pela Procuradora Geral do Município, de forma global e uniforme (atividades contínuas de consultoria e de representação em juízo) em um “serviço público” temporário e descontínuo, sob a responsabilidade de um particular.
Além disso afronta o art. 87 da LOMSP que comete à PGM, de forma privativa, o serviço de inscrição e cobrança da dívida ativa; contraria o art. 12, II do CPC que prescreve a representação judicial do Município “por seu Prefeito ou Procurador”. Claro que não há e nem poderia haver opção no Município onde haja o cargo de Procurador, caso em que caberá privativamente ao Procurador a representação judicial, em perfeita harmonia com as hipóteses do inciso anterior. E mais, nos termos do art. 7º e parágrafos do CTN não poder haver delegação na execução de serviço público essencial, como o de cobrança judicial da dívida ativa, que difere da mera função de arrecadar os tributos satisfeitos voluntariamente na rede bancária ou fora dele. Finalmente, restaria afrontado o art. 198 do CTN que circunscreve à Fazenda e a seus funcionários o conhecimento acerca da situação econômica e financeira dos contribuintes, bem como sobre a natureza e o estado de seus negócios, impondo-lhes sigilo sob pena de responsabilidade criminal. Esse artigo parte do pressuposto de que apenas os agentes públicos podem participar desse processo de retirada compulsória da parcela de riqueza dos particulares.
Direito privado e direito público, ambos têm importância devendo ser igualmente prestigiados, mas, cada qual no seu âmbito de atuação. O que não pode é confundir a facilidade, a flexibilidade e a liberdade ampla do setor privado com os rígidos princípios da legalidade, da impessoalidade, da moralidade, da razoabilidade e da publicidade que regem a Administração Pública.
Absurda a pretensão de, em nome da modernidade, da celeridade ou seja lá do quer for, livrar o administrador da coisa pública desses princípios retro referidos, que existem exatamente para assegurar que o homem público sirva ao Estado ao invés de dele se servir.
Por tudo isso a Prefeitura deveria investir e aperfeiçoar os serviços afetos ao Departamento Fiscal, bem como desenvolver gestões junto ao governo estadual para melhorar a infra-estrutura dos Anexos Fiscais, ao invés de partir para uma inovação que contraria as normas legais e os princípios constitucionais concernentes à Administração Pública.
* Advogado em São Paulo. Professor de Direito Administrativo, Financeiro e Tributário da UNIP.
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