Terras na Amazônia e a receita chinesa
Francisco César Pinheiro Rodrigues*
Desanimadamente consciente da granítica dureza, por dentro e por fora — neurológica, espiritual e até mesmo óssea —, da cabeça humana, venho insistindo, através de artigos — www.franciscopinheirorodrigues.com.br —, na necessidade de fusão do “lado bom” de ambos os sistemas econômicos: o Capitalismo e o Socialismo. Insisto na metáfora, simplória mas verdadeira, de que o barco condutor da raça humana terá futuramente um motor capitalista e um leme socialista, não sendo, porém, aconselhável que o timoneiro exagere na virada á esquerda, ou direita, fazendo a nau girar em torno do umbigo ideológico. A social-democracia escandinava já faz isso com sucesso.
Em vez da costumeira guerra — “fria”, morna ou quente — entre as duas filosofias, gerando conflitos ovacionados pela da indústria bélica e suas centenas de agregadas — uniformes, rações, botas, informática, robótica, etc — o ideal seria que os governantes, em todo o mundo, “pinçassem” os pontos bons de ambos os regimes e montassem o sistema misto ideal, único possível para o mundo globalizado de hoje. É o que vem fazendo a China, até agora com enorme sucesso. Se ainda insatisfatória no que se refere aos direitos humanos, isso será corrigido natural e paulatinamente, como mera decorrência do progresso material. Nações ricas, mais que as pobres, estão em melhores condições de satisfazer os direitos humanos, pois grande parte destes — educação, nutrição, saúde, saneamento básico, etc. — implicam em despesa.
A China, presumo, é o país que mais cresce no mundo, em termos materiais. Retardatária em tecnologia, facilita às multinacionais sua instalação no país mas condiciona essa facilidade à permissão do acesso chinês ao “know how” estrangeiro, quando dele não dispõe. A mão de obra, preponderantemente chinesa, braçal e técnica, assimila o conhecimento necessário à produção moderna e em larga escala. E as multinacionais concordam com esse esquema porque esperam lucrar enormemente antes que os chineses estejam em condições de competir plenamente com a matriz do “know how”. As multinacionais lucram e a China ganha com mais emprego a assimilação de tecnologia. Todos lucram, exceto, claro, os países em desenvolvimento incapazes de inovar e que se atrasam em relação à China.
Essa habilidade chinesa certamente deve algum agradecimento a Confúcio, um filósofo chinês de invulgar discernimento, nascido quinhentos anos antes de Cristo, genial no observar os mecanismos interiores do homem. Ah!, o homem, esse enigma de duas pernas, misto de besta e anjo — geneticamente muito mais besta do que anjo. Animal racional ganancioso, astuto, inteligente e mentiroso mas, paradoxalmente, capaz de alguns rasgos de altruísmo. Inteligentemente consciente da necessidade de se refrear em seu egoísmo natural, elaborando normas jurídicas sem as quais toda a comunidade pereceria na violência e na anarquia.
Por que retomo tais idéias? Porque li, ontem, domingo, 6-7-08, no jornal “O Estado de S. Paulo”, uma esclarecedora reportagem da jornalista Cláudia Trevisan, “O sucesso da China está no socialismo”, confirmatória da tese da referida fusão ideológica. Trata-se de uma breve nas significativa síntese do ponto de vista de Cui Zhiyuan, professor da Faculdade de Administração e Políticas Públicas da Universidade de Tsinghua, segundo a jornalista uma das mais prestigiosas do país.
Referido professor resume os “segredos” explicativos da enorme atração que a China exerce sobre os industriais dos países ricos, e os capitalistas de qualquer nacionalidade, que se instalam na China, não obstante seu “miolo” político socialista — hipoteticamente hostil à concepção capitalista.
Entre as explicações dadas pelo Prof. Cui Zhiyuan, justificando o rápido progresso da China, está o hábil “truque” de livrar o governo chinês do pesado ônus financeiro de fornecer a infra-estrutura necessária à instalação das indústrias das multinacionais. Construir estradas, portos, aeroportos, ferrovias, rede de esgotos, fornecimento de água, etc, implica em gastos imensos. Para contornar esse problema, o que fez a China? Criou “arranjos institucionais” — na expressão da jornalista — de modo a atrair os investidores sem ter que providenciar o fornecimento da infra-estrutura, como é o usual nos países em desenvolvimento.
Qual foi o “arranjo institucional” que permitiu à China livrar-se de tal ônus e mesmo assim atrair o capital internacional produtivo? Resposta: manteve a propriedade pública da terra e concedeu à iniciativa privada o direito de apenas ocupar a terra por um período de
Qual a relação de tudo isso com as “terras na Amazônia”, referidas no cabeçalho deste artigo? É que será oportuno examinar a conveniência de o Brasil estudar algo semelhante para a região amazônica no que se refere à ocupação do solo. Toda a região pertenceria ao Estado brasileiro, insuscetível de usucapião, exceto se já consumado o tempo de efetiva — efetiva, efetiva… — ocupação, pois tratar-se-ia de direito adquirido. Como, no Brasil, já houve muito apossamento injusto de áreas imensas de terra, através de ações de usucapião desvirtuadas — os laudos só mostravam fotografias das construções, sem exibir os imensos vazios entre elas — corremos o risco de ver áreas enormes sendo objeto de usucapião, com ocupação mínima, um truquezinho legal extremamente lucrativo. Com o usucapião, o autor da ação torna-se proprietário absoluto do solo, tornando difícil policiar o uso da terra, principalmente a derrubada de florestas. Se o interessado em enriquecer na Amazônia se tornasse mero “ocupante’ do solo — não “proprietário’, via usucapião — por um prazo de “x” anos, seria muito mais fácil, juridicamente, “discipliná-lo” e “despejá-lo”, com liminar de reintegração de posse, quando ele passasse a desrespeitar a legislação ambiental, derrubando florestas e poluindo rios.
Não estudei até que ponto será factível, política e juridicamente, estabelecer futuramente, por lei, essa vedação à propriedade formal do solo na Amazônia. Quanto ao usucapião de áreas desmatadas, há algo de contraditório no fato de uma devastação, mero fruto da cobiça, servir de fundamento para a aquisição de um direito, no caso o de propriedade, via usucapião.
Repetindo-se: o ideal seria permitir futuramente, na Amazônia, apenas a ocupação, por um prazo de “x” anos, ou, se isso for inviável, pelo menos modificar, já, a legislação sobre o usucapião de terras rurais, quando a área objeto da ação seja grande, superior a “y” hectares. Nestes casos, seria necessário, antes da sentença, a inspeção aérea do terreno, por parte do promotor ou até mesmo a “inspeção judicial” (pelo próprio juiz). Do contrário, a Amazônia logo estará em mãos particulares, comprada ou usucapida por preço vil, tornando mais difícil a preservação ambiental. Que o governo convoque os melhores juristas, especialistas em questões de terras — sem vínculos com os interessados no desmatamento — para assessorar o Min. Mangabeira Unger no esforço de preservar a Amazônia brasileira.
(7-7-2008)
* Advogado, desembargador aposentado e escritor. É membro do IASP Instituto dos Advogados de São Paulo. Website do autor: www.franciscopinheirorodrigues.com.br
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