Economia

A Ordem da Modernidade

 

19 de fevereiro de 2010

 

No artigo anterior (A fonte da ordem) foi comentado o relevante problema da filosofia política sobre a origem da ordem, a partir da proposição de Olavo de Carvalho. Investigar esse tema leva inevitavelmente à investigação dos elementos que constituem os tijolos que formam o edifício jurídico-político dos Estados atuais e das diferentes correntes que competem para ter o poder de implantar sua visão de mundo, ou seja, conquistar o poder de Estado.

 

Desde meados do século XIX que se vê o paulatino triunfo das idéias coletivistas e as sucessivas derrotas do liberaismo clássico. Primeiro o triunfo totalitário em boa parte do território mundial. Depois o triunfo do Estado de bem-estar social, esse comunismo com outro nome. Agora o ataque final com os direitos humanos, via ONU, em busca da ditadura mundial. O liberalismo clássico morreu.

 

Uma das linhas de investigação muito promissoras para mostrar porque o liberalismo clássico foi suplantado está na discussão dos assim chamados direitos humanos e sua relação com os direitos naturais jusnaturalistas. Tenho escrito bastante sobre o tema porque ele me parece o fio condutor que nos leva a sair do labirinto enevoado do embaralhamento teórico,

 

Os direitos naturais propostos por Hobbes (assim chamados de primeira geração) têm a mesma base teórica em que Rousseau e demais autores que abraçaram historicismo (sobretudo as correntes marxistas) trabalharam. Portanto, os direitos humanos e os direitos naturais são uma única mesma coisa, desde a semente teórica original. No livro A ERA DOS DIREITOS, de Norberto Bobbio, vários ensaios do autor demonstram sem dificuldade. Bobbio sublinha aquilo que Hobbes sublinhou: “Pelo menos desde o início da era moderna, através da difusão das doutrinas jusnaturalistas, primeiro, e da Declaração dos Direitos do Homem, incluídas nas constituições dos Estados liberais, depois, o problema acompanha o nascimento, o desenvolvimento, a afirmação, numa parte cada vez mais ampla do mundo, do Estado de Direito. Mas é também verdade que somente depois da Segunda Guerra Mundial é que esse problema passou da esfera nacional para a internacional, envolvendo ? pela primeira vez na história ? todos os povos”.

 

Bobbio foi preciso. O encanto do seu livro de ensaios é que ele escreve como propagandista erudito da causa e não tem qualquer preocupação em ocultar os fatos. Sente-se seguro de ser um autor consonante o vento dos tempos históricos e políticos. Sabe-se perfeitamente bem como agente da revolução gramsciana em curso, em escala mundial. Sua obra terá sido a mais importante a moldar o mundo na segunda metade do século XX, especialmente no superlativo aspecto das instituições e dos marcos jurídicos. A metástase dos direitos humanos deve muito ao seu empenho.

 

Faça um teste, caro leitor: pergunte a todos os seus amigos que fizeram curso superior se leram Bobbio. Digo-lhe: dez em cada dez tiveram que ler e absorver o italiano.

 

Bobbio não tem dúvida em escrever: “O problema grave do nosso tempo, com relação aos direitos do homem, não é mais de fundamentá-los, mas sim, de protegê-los… Com efeito, o problema que temos diante de nós não é filosófico, mas sim, jurídico e, num sentido mais amplo, político. Não se trata de saber quais e quantos são esses direitos, qual é sua natureza e seu fundamento, se são direitos naturais ou históricos, absolutos ou relativos, mas sim qual é o modo mais seguro de garanti-los, para impedir que, apesar das solenes declarações, ele sejam continuamente violados”.

 

Aqui está a base teórica do famigerado Plano Nacional de Direitos Humanos.

 

O que quero enfatizar é a derrota teórica e política do liberalismo clássico. Claro, algo do seu núcleo científico permaneceu, especialmente no que se refere a algumas visões da economia, depois que ficou evidente que o planejamento socialista é uma quimera impraticável. Como entre um liberal e um socialista não há, a rigor, diferenciação filosófica, pois ambos partem do jusnaturalismo e da destruição maquinada da filosofia aristotélica, do direito natural clássico, vai triunfar entre os dois precisamente aquele que não tem qualquer restrição moral de cativar as multidões, atendendo seus apetites. Esse é segredo de Polichinelo a explicar a rebelião das massas.

 

Os liberais clássicos sempre apelam para a razão no seu discurso; os socialistas apelam sempre para o coração, o coitadismo. O liberal clássico afirma a superioridade do mercado para atender as demandas coletivas e a felicidade geral, ainda tem respeito pela realidade objetiva da lei da escassez. O socialista dirá que os problemas do mundo resultam da falta de vontade política para moldar o mundo à perfeição, a fim de atender o apetite das massas. O igualitarismo é o seu mantra. Mas a igualdade é a palavra mágica dos liberais desde a origem, contra a idéia da hierarquia natural que vem dos clássicos.

 

Noberto Bobbio vai direto ao ponto: “No plano histórico, sustento que a afirmação dos direitos do homem deriva de uma radical inversão de perspectiva, característica do Estado moderno, na representação da relação política, ou seja, na relação Estado/cidadão ou soberano/súditos: relação que é encarada, cada vez mais, do ponto de vista dos direitos do cidadão não mais súditos, e não do ponto de vista dos direitos do soberano, em correspondência com a visão individualista da sociedade, segundo a qual, para compreender a sociedade, é preciso partir de baixo, dos indivíduos que a compõem, em oposição à composição orgânica tradicional, segundo a qual a sociedade como um todo vem antes dos indivíduos… Essa inversão é estritamente ligada à afirmação do que chamei modelo jusnaturalista, contraposto ao seu eterno adversário, que sempre renasce e jamais foi definitivamente derrotado, o modelo aristotélico”.

 

Para Bobbio, liberalismo e socialismo se opõem ao aristotelismo e comungam das mesmas raízes filosóficas. É essa a visão de Leo Strauss e de Eric Voegelin também. Mas os liberais atuais detestam esse parentesco com os socialistas. Deveriam estudar a história das idéias filosóficas, sobretudo a formação da modernidade, para compreender esses elos.

 

Os liberais, como Popper, chegam ao cúmulo da auto-enganação, ao associar o direito natural clássico com o totalitarismo, quando a realidade é precisamente o contrário: o totalitarismo deriva diretamente do historicismo fundado por Hobbes, apoiado em Epicuro, como bem o demonstrou Leo Strauss.

 

A ordem política e jurídica na modernidade abandonou sua fonte transcendente e mergulhou fundo na Segunda Realidade, da qual a obra de Cervantes fez a crônica inigualável. A ordem que persistiu desde então é a ordem criada pelo que Bruno Tolentino chamou de “o mundo como Idéia”. A ordem passou a usar a máxima de Protágoras: o homem é a medida de todas as coisas, o homem vitruviano que impera em toda parte, seu símbolo (o pentagrama) está visível em cada esquina. Deu no que deu, um outro mundo possível foi criado. Essa é toda a tragédia da modernidade. Já se vão 400 anos de sonambulismo em ciência política.

 

 

* José Nivaldo Cordeiro, Executivo, nascido no Ceará. Reside atualmente em São Paulo. Declaradamente liberal, é um respeitado crítico das idéias coletivistas. É um dos mais relevantes articulistas nacionais do momento, escrevendo artigos diários para diversos jornais e sites nacionais. É Diretor da ANL – Associação Nacional de Livrarias.

Como citar e referenciar este artigo:
CORDEIRO, José Nivaldo. A Ordem da Modernidade. Florianópolis: Portal Jurídico Investidura, 2010. Disponível em: https://investidura.com.br/artigos/economia/a-ordem-da-modernidade/ Acesso em: 18 mai. 2024