Tropa de elite e o poder das metáforas
Paulo Queiroz*
A reação de boa parte das pessoas e autoridades aplaudindo a ação do capitão Nascimento (principal personagem do filme “tropa de elite”) ao torturar e matar supostos criminosos, parece mostrar claramente que palavras quase sagradas como lei, direito, estado de direito e justiça são apenas metáforas que nada referem concretamente, pois ora servem para legitimar, ora para deslegitimar atos de violência; são enfim palavras carregadas de sentimento cujo sentido e conteúdo são social e arbitrariamente construídos, mesmo porque a rigor não existem fenômenos jurídicos, éticos ou estéticos, mas só uma interpretação jurídica, ética e estética dos fenômenos (Nietzsche).
Com efeito, em nome do direito, da justiça e da ética, é possível tanto proibir quanto autorizar a morte, por exemplo: quando queremos proibir, designamos o ato como injusto, ilegal, criminoso etc; inversamente, se queremos autorizá-la, dizemos que houve legítima defesa, estado de necessidade ou algo parecido. Assim, se um policial inglês confunde um brasileiro com um terrorista e dispara diversas vezes contra ele, matando-o, dirão os ingleses que houve legítima defesa putativa ou similar, e a morte estará assim legitimada; se uma tribo pratica infanticídio de crianças por nascerem com algum tipo de deformidade física ou mental, dirá a Funai que é preciso respeitar a tradição e cultura dos índios; se o Estado decide fundar uma capital no cerrado e destruir o meio ambiente, chamaremos isso de um grande empreendimento em favor do progresso etc.
Mais claramente: se, em nome da liberdade, por exemplo, é proibido o estupro violento, também em nome dela é considerado delito a relação sexual havida com menores (catorze anos, no caso brasileiro) por mais livre o ato e por mais madura a “vítima” em questão. Enfim, a pretexto de afirmar a liberdade sexual, a lei acaba por negá-la, legitimando uma dupla violência: contra a suposta vítima, a quem se nega o direito de decidir por conta própria, e contra seu parceiro, que é rotulado de criminoso, ficando sujeito à pena, de sorte que a lei que proíbe o estupro é a mesma que tem como tal o que não o é.
Até certo ponto compreende-se que assim seja, afinal não existe lei, direito, justiça, liberdade para além do tempo e do espaço; mais: a distinção entre justiça e vingança, entre legalidade e ilegalidade etc. não preexiste à interpretação, mas é dela resultado. O mesmo se poderia dizer também sobre a igualdade etc.: a igualdade que permitiu que brancos escravizassem negros é a mesma que tolera que pardos excluam negros e que estes preferiram a ambos; subjacente a tudo isso estão sempre relações de poder.
E se não tivermos argumentos estritamente técnicos (se é que existem) para justificar a tortura e a execução por grupos policiais, recorreremos a outros rótulos ou metáforas poderosas e então chamaremos suas vítimas de bandidos, criminosos, traficantes, e não só agradeceremos seus atos, como veremos seus algozes como heróis e diremos que seus atos são necessários, justos ou inevitáveis, ao menos enquanto não somos as vítimas dessa violência; o que se passa, conscientemente ou não, é que, quando nos identificamos com os autores da violência, nós os absolvemos ou buscamos de algum modo atenuar-lhes a culpa; quando nos identificamos com as suas vítimas, os condenamos. O direito tem a forma e o tamanho da hipocrisia humana.
Parece certo assim que, no fundo, direito, estado de direito, justiça etc. são apenas metáforas que associamos às sensações que nos causam algum prazer, conforto, segurança ou sentimento análogo; quando as nossas emoções são em sentido oposto, então diremos que se trata de algo injusto ou cruel. A lei é uma espada que tanto pode proteger como ameaçar: tudo depende de quem a manuseia e como o faz, afinal o que faz o poder das palavras e das palavras de ordem, poder de manter a ordem ou de a subverter, é a crença na legitimidade das palavras e daquele que as pronuncia (Pierre Bourdieu. O poder simbólico. Rio: Bertrand Brasil, 1998, p.15).
De todo modo, se entendermos, como querem alguns, que à polícia é dado torturar ou matar, apesar de a lei (de crimes hediondos inclusive), a Constituição em especial, o proibir terminantemente, já não haverá diferença alguma entre policiais e criminosos; e talvez seja mais barato e eficiente simplesmente extinguir as polícias (e com ela todo o aparato repressivo estatal) e contratar mercenários para promoverem tais execuções e torturas e assumir, aberta e oficialmente, que o estado de democrático de direito é apenas uma farsa, uma conveniente e cruel farsa a serviço de uma política, mais ou menos velada, de extermínio dos indesejados.
* Doutor em Direito (PUC/SP), é Professor Universitário (UniCeub), Procurador Regional da República em Brasília, e autor, entre outros, do livro Direito Penal, parte geral. Rio: Lumen juris, 2008, 4ª edição
Compare preços de Dicionários Jurídicos, Manuais de Direito e Livros de Direito.