Direito Penal

Tortura

Introdução 

Não gostaríamos de nos ater nesse trabalho com as questões básicas a que todos se remetem ao discursar sobre o problema da tortura. Seria melhor analisarmos a questão como um problema diretamente ligado a toda a sociedade e suas tradições. Nosso país tem 500 anos de história de autoritarismo que reflete até em nosso governo democrático, como por exemplo as funestas medidas provisórias que nos remetem aos decretos-leis dos regimes autoritários.

Onde e em que momentos está acontecendo a tortura, por quais motivos ela tem ocorrido e o porque dos antagonismos pró e contra a prática, que em momento algum se pode negar como crime. Um crime considerado hediondo pela nossa legislação, num patamar muito acima de repúdio que um outro crime qualquer. A sociedade brasileira proíbe até o cogitar da prática, quanto mais sua apologia. A verdade é que poucos a apóiam declaradamente enquanto muitos a apóiam veladamente sem sequer dar-se conta.

 


 

A funesta imagem da tortura

 

Não queremos nos estender por conceitos históricos remetentes à idade média, tão execrada por suas práticas pouco convencionais para nós em nossa época. As práticas que nos dizem respeito, em nossa época têm origem mais recente quanto ao modus operandi, mais precisamente no período militar.

O país vivia em estado de guerra contra seus próprios cidadãos, qualquer um poderia ser acusado de comunista e levado para interrogatório junto ao DOPS onde sofreria as mais tenebrosas afrontas e indignidades diretamente em seu corpo. Há casos em que os sofrimentos impostos às pessoas chegaram a tal ponto que as mesmas deixavam-se morrer em meio à tortura. Todo esse aparato de combate aos “subversivos” deixou seqüelas nos indivíduos e na sociedade, há histórias de indivíduos brilhantes que tornaram-se mendigos após uma sessão de tortura, não por não quererem trabalhar mas pelo impacto psicológico que destruiu completamente a auto estima do indivíduo.

Largamente utilizada no intuito de se obter informação rápida do suspeito, a tortura é uma prática que se utilizada pelo aparelho do estado só irá criar uma quantidade maior de indivíduos revoltados ou com distúrbios psicológicos. E isso em se tratando de segurança nacional, como pretendiam os torturadores, em nada ajuda a saúde da nação e principalmente de seus cidadãos.

 

O conceito de tortura

 

Em 10 de dezembro de 1984, a Assembléia Geral da ONU em sua sessão XL aprovou a Convenção Contra a Tortura e Outros Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanos ou Degradantes. Nosso congresso ratificou o documento através Decreto Legislativo n° 4 de 22 de maio de 1989. A referida convenção define tortura, em resumo, como a imposição de sofrimento físico ou mental a alguém no intuito de colher informação ou confissão, desde que praticado por funcionário público ou por ele instigado (grifo nosso). Vale ressaltar que no mesmo dispositivo encontra-se de forma clara que “não se considerará como tortura as dores ou sofrimentos que sejam conseqüência unicamente de sanções legítimas, ou que sejam inerentes a tais sanções ou delas decorram.” ( MACHADO, 2001, p.18)

Resumindo não será tortura o espancamento de uma pessoa, embora para retirar dela alguma informação, se praticado por um criminoso qualquer. Também é equívoco pensar que o agente do estado que flagrando o referido ato, dá voz de prisão ao criminoso e passa a castigá-lo na intenção de devolver-lhe a condição de vítima, responderá por tortura. Falso pelo fato que o agente não deseja arrancar-lhe confissão, na prática essa situação tem sido encarada como tortura e levada dessa forma aos tribunais.

 

O torturador

 

Policiais envolvidos em corrupção são os tipos perfeitos que se encaixam na descrição oficial de tortura. Seqüestram testemunhas que podem comprometê-los e tentam arrancar uma confissão dessas pessoas que transfira para outrem a culpa que lhes cabe. Quando o instrumento de intimidação não mais tem efeito esses criminosos costumam executar os que tentarem denunciá-los. Quando se descobre essas práticas ainda há as ameaças de represálias contra possíveis denunciantes.

Há também os casos de policiais que tendo efetuado a prisão de um traficante, exige dele a informação de para quem o mesmo estaria levando no intuito de desmantelar todo um esquema criminoso. A ausência de respaldo legal para exigir a confissão do criminoso muitas vezes não impede o policial de exigi-la na prática. E nessa situação ele não está protegido pela ressalva legal estipulada pela Convenção Contra a Tortura.

 

A participação da população

 

Em um país que tem 500 anos de história de autoritarismos, está intrínseco na sociedade brasileira o apoio e até o estímulo à tortura. O ato da tortura nada mais é do que a violência sendo utilizada como uma forma de fazer justiça sem esperar pela morosidade do estado. Nisso podemos dizer que é o estado, com a ineficácia de suas leis e ineficiência de suas políticas criminais, que é o grande responsável pelo apoio popular à tortura. Apoio que pode ser visto em casos como quando um estuprador é pego em flagrante por uma comunidade, o que acontece geralmente é o seu linchamento por populares. Estudiosos defensores dos direitos humanos lamentam essa prática que acreditam ser uma forma velada de apoio à tortura, mas ainda citam casos de apoio mais direto:

O primeiro é de uma respeitável senhora da alta sociedade, promotora de festas beneficentes, que estimulou policiais a torturar sua empregada doméstica para confessar o roubo de uma jóia. Outro exemplo foi a transferência do delegado para uma pequena cidade. Lá ele pôde montar uma equipe de sua confiança, que encantou a cidade com sua eficiência, passando a receber excelente tratamento da sociedade. Porém, três meses depois, ao processar um agente de segurança de um armazém que espancou um adolescente por ter furtado uma caixa de alimento, e ao prender em flagrante um rico fazendeiro homicida, o delegado e sua equipe passaram a ser hostilizados pela mesma sociedade que lhe homenageara. O delegado Luz afirma também que é comum cidadãos da classe média sugerir tortura contra suspeitos para tentar reaver seus carros roubados. (Comissão de DH da câmara dos deputados,2007)

Aprendemos que o direito serve para regular a vida em sociedade, manter-nos seguros, ou como diria Rousseau “é para não se tornar vítima de um assassino que se consente em morrer caso vir a tornar-se um”. Essa sensação de segurança escapa das mãos do estado e fragiliza a confiança da população em seus institutos quando vemos a morosidade da justiça e a ineficácia das leis frente o crescente número de transgressores como assassinos, estupradores, latrocidas entre outros. A população enquanto não sofre da síndrome de Estocolmo, que significa tratar seu algoz ou seqüestrador como herói, que é o que acontece na maioria das favelas dominadas pelo tráfico, vê na atitude violenta do policial a única maneira de coibir o crescimento da criminalidade, enquanto o marginal tiver medo da polícia ele evitará cometer o crime uma vez que da lei ele não precisa mais ter medo. Rousseau nos ensina que as leis devem ser sempre mal negócio para os infratores, de maneira que impeça sua proliferação, na prática a máxima que o crime não compensa é ultrapassada.

 

A aversão aos defensores dos direitos humanos

 

Existe por parte de alguns membros da sociedade uma certa aversão aos defensores dos direitos humanos. Essa aversão vem principalmente de profissionais da segurança pública, que inconformados acreditam ser perseguidos por esses defensores. Alegam os policiais que os defensores atentam-se demais à questão da tortura e pouco ou nada fazem por famílias de vítimas de criminosos sejam essas vítimas policiais ou não.

Esse tipo de atitude acarreta aos observadores dos direitos humanos a fama de defensores de bandidos, uma vez que não os vemos em apoio à famílias de vítimas da criminalidade crescente na nação. Essa imagem desgasta os observadores e de fato não se pode negar sua frieza diante de problemas como os atentados feitos às instituições policiais do estado de São Paulo no mês de maio de 2006. Mesmo naquelas circunstâncias em que policiais lutavam por suas vidas os observadores mais pareciam dispostos à caçar os policiais pelas vias que os criminosos não podiam fazer, ou seja as vias legais. Em entrevistas dadas durante aquelas duas semanas de terror no estado de São Paulo, o próprio Subdefensor Público Geral, Pedro Giberti criticou a “atitude da polícia judiciária em não investigar com dedicação, empenho e profundidade os casos de homicídio suspeitos de terem sido cometidos por policiais em situações de desvio de conduta e abuso de autoridade, ou seja, em manifesta violação dos direitos da pessoa humana.” Essa posição tal radicalmente fria em face aos acontecimentos colabora para o desgaste das instituições de defesa dos direitos humanos frente a população.

A situação dos ataques de maio de 2006, demonstrou a fraqueza do estado, enquanto pessoas eram mortas nas ruas o governo do estado estava mais preocupado em tentar convencer que não tinha perdido o controle da situação. Contrata-se escritores para dizer porque o estado não havia desaparecido enquanto não se admitia que vivia-se ali uma verdadeira guerra. Os governantes provavelmente não decretavam estado de guerra porque as vidas em questão não valiam muito, apenas policiais e cidadãos pobres que não fariam falta.

 

Considerações finais

 

O perigo que essas circunstâncias nos trazem é a possibilidade do governo ter carta branca para um dia voltar a fazer as reais práticas de tortura, como castigar fisicamente pessoas até que se tornem desvairados ou apáticos. Cesare de Beccaria já apontava o erro em se flagelar um sujeito sem condenação, e a maneira impopular como tem se tornando os grupos de direitos humanos, fragilizam a certeza que temos de não mais suportar essas afrontas de nossos governantes. Ninguém quer um estado com tortura novamente, que se ache no direito de invadir a casa de um cidadão e espancá-lo a troco de informações, isso lembra a situação que os moradores de morros e favelas sofrem na mão de traficantes que imporam um estado paralelo nesses morros no molde de estados totalitários.

Ao mesmo tempo desejamos do nosso governo leis que apóiem mais os policiais para que possam fazer seu trabalho respeitando a dignidade da pessoa humana alheia e a própria. As entidades de direitos humanos devem trabalhar em defesa dos direitos de todos os cidadãos. Também é dever dessas entidades saber o sofrimento que passam moradores de favelas nas mãos do tráfico. O quanto sofreram as famílias dos policiais executados nos atentados de maio de 2006. A frieza com que trataram do assunto à época de uma atitude deveras desumana para com cidadãos que trabalham e tem família como todos os outros. Deve ser de consciência desses defensores que se os mesmos caírem em descrédito, as portas da ditadura e da tortura estarão escancaradas e o Brasil estará novamente mergulhado em um período de trevas. Beccaria enfatiza que já na Roma Antiga a sociedade não tolerava tortura em julgamentos, porque deveríamos aceitar um retrocesso histórico desse tipo?

Não haverá benesse alguma para a sociedade se tivermos que encarar esse retrocesso caquético e desmoralizador, exigimos porém dos órgãos defensores dos direitos humanos maior vigília sobre as áreas que eles tem falhado. Como o atendimento à vítimas de criminosos e cobrar dos nossos governantes leis que impeçam que juízes e/ou policiais possam ser vítimas de ameaças ou até mesmo de virarem caça de criminosos. Se os defensores da ordem na nação não são capazes de sentirem-se seguros, muito menos então se sentirão os que deles dependem.

*Acadêmico de Direito na UFSC

REFERÊNCIAS

MACHADO, Nilton João de Macedo. Da Tortura, aspectos conceituais e normativos. Disponível em:< http://www.cjf.gov.br/revista/numero14/artigo2.pdf >. Acesso em 02 dez. 2007.

COMISSÃO DE DIREITOS HUMANOS DA CÂMARA DOS DEPUTADOS. A tortura no Brasil. Disponível em:< http://www.dhnet.org.br/dados/estudos/dh/br/torturabr.htm >. Acesso em 02 dez. 2007.

ROUSSEAU, Jean Jacques. Do contrato social. São Paulo: Edipro, 2000.

AGÊNCIA CARTA MAIOR. Falta de testemunhas e discurso repressor dificultam investigação de responsáveis. Disponível em: < http://www.cartamaior.com.br/templates/materiaMostrar.cfm?materia_id=13516&editoria_id=5 >. Acesso em 02 dez. 2007.

BECCARIA, Cesare. Dos delitos e das penas. São Paulo: Martins Fontes, 2002.

Como citar e referenciar este artigo:
SOUZA, Misael Torquato. Tortura. Florianópolis: Portal Jurídico Investidura, 2008. Disponível em: https://investidura.com.br/artigos/direitopenal-artigos/tortura/ Acesso em: 26 jul. 2024