Direito Penal

Prisão Cautelar: o suplício pós-moderno!

Resumo: O suplício público foi utilizado para mantença do poder político pelo soberano, e consistia num procedimento humilhante e desumanizador. Na modernidade, a prisão, fortalecida pelo afastamento daquela forma punitiva, foi de fundamental importância para normalização dos corpos e sua ligação aos aparelhos de produção, num procedimento de vigilância e punição. Cumpriu seu papel normalizador e como instituição disciplinar não fracassou. Na pós-modernidade, a vinculação dos corpos aos aparelhos de produção não mais se faz possível e necessário, e uma nova forma de punição se faz presente: a imobilização e contenção. A imobilização e contenção daqueles que atentam contras as regras sociais impostas pela classe social dominante não pode esperar uma sentença final de mérito dentro de um procedimento criminal lento, e com garantias diversas. Assim, a prisão cautelar, imposta sumariamente, sem avaliação profunda do contexto probatório, e baseada em critérios discricionários, permite a imobilização imediata e a contenção do desviante. A exposição pública, em tempo real, pela grande mídia, num procedimento humilhante e desumanizador, possibilita identificar o criminoso, que foi seletivamente escolhido, e criar o falso estereótipo do inimigo, dentro de uma forma de suplício pós-moderna. Constatamos que quando a justiça se rende ao espetáculo, na busca de afirmação de sua existência, ela inibe e obscurece outras formas alternativas e muito mais eficazes e democráticas de restauração.

 

Palavras-chave: PRISÃO CAUTELAR; SUPLÍCIO; PÓS-MODERNIDADE.  

 

 

Abstract: Abstract: The public capital punishment was used for maintenance of the political power  for the sovereign, and it consisted in a humiliating and inhuman procedure. In modernity, the arrest, fortified for the dissociation of that punishing form, it was of essential importance for the normalization of the bodies and its coherency to the production devices, in a procedure of safety and punishment.  It accomplished its  normalized roles and as a disciplinary institution it didn’t fail. In post-modernity, the entailment of the bodies to the production devices doesn’t become possible and necessary anymore, and a new form of punishment it puts in an appearance: the immobilization and the containment.  The immobilization and the containment against of those social rules imposed by the dominant social rating can’t wait for a final judgment of merits indide a slowly criminal procedure, and with several guarantees. Therefore, the caution arrest, imposed summarily, without a deep evaluation of the probatory context, and based in discretionary discernments, it allows the immediate immobilization and the containment of the tramp. The public exposition, in real time, for the great media, in a humiliating and inhuman procedure, allows to identify the criminal, who was selectively chosen, and to create the false stereotype of the enemy, inside of a post-modern form of the capital punishment. We certified that when the justice rends to the show, in the search of affirmation of its existence, it inhibits and it disguises other alternatives and much more efficient and democratic forms of reestablishment.

 

Key-words: CAUTION ARREST; CAPITAL PUNISHMENT; POST-MODERNITY

 

 

 

I.          INTRODUÇÃO

 

            Este artigo tem por escopo refletir sobre a exposição pública das prisões cautelares, pela via da mídia, impostas sumariamente, sem avaliação profunda do contexto probatório e baseando-se em critérios discricionários. Partimos da hipótese de que esse fato está relacionado com a atual crise dos paradigmas da punição que pode por sua vez estar relacionada com a transformação do sistema de produção e as transformações da sociedade pós-moderna.

 

            Mediante a análise da história das mutações das formas de punição, percebemos que em cada período histórico a justiça se acomoda ao sistema de produção. O suplício e as penas corporais foram, de modo geral, característicos de sociedades agrárias que tinham como alvo da punição o corpo. Havia espaço para esse tipo de punição, uma vez que no modo de produção feudal o corpo não era valorizado como o seria na era industrial. Seu princípio se baseava no espetáculo público e possuía o poder de atemorizar o maior número de pessoas possível.   

 

            A partir da era moderna os suplícios cedem espaço para outro tipo de punição, mais adequado ao novo sistema industrial, que é a prisão. Ela deixa sua forma marginal e se insere na justiça como a essência da punição. Tem na ética do trabalho sua legitimação e afirmação. O ideal de reabilitação por meio da vigilância, da disciplina, do exame e da correção moral, numa sociedade carente de mão-de-obra, incita a adoção de seu modelo nas demais instituições (tais como escola, fábrica etc.). A “sociedade disciplinar” transforma os corpos dos indivíduos em força de trabalho.

 

            A passagem da sociedade moderna industrial para a sociedade pós-industrial e pós-moderna provoca um desarranjo no sistema punitivo. Se punir corpos por meio do suplício continua a não fazer sentido, discipliná-los também não. Como afirma Bauman (1999), se não há trabalho, não há porque investir energias na preparação de indivíduos para o mercado. As prisões se tornam depósitos de desvalidos e devem promover sua exclusão definitiva.

 

            Nesse contexto de transformações estruturais se afirma, cada vez mais, o que Debord (1997) chamou de “sociedade do espetáculo”. Se estamos presenciando a passagem da era das prisões para a era dos “depósitos”, vemos também que a legitimação da justiça se transforma, como tudo, num espetáculo midiático. A ostentação televisiva das prisões cautelares provoca sensações de alívio e proteção ao mesmo tempo em que inibem ações e estimulam a contemplação.

 

            Constatamos que quando a justiça se rende ao espetáculo, na busca de afirmação de sua existência, ela inibe e obscurece outras formas alternativas e muito mais eficazes e democráticas de restauração.

 

 

II.         O SUPLÍCIO COMO AÇÃO PEDAGÓGICA

 

Uma das formas de compreender a história do direito Ocidental é considerar como divisor de águas a Revolução Francesa. Seguindo os passos de Michel Foucault (1991), percebemos que as medidas punitivas não são apenas “mecanismos negativos”, mas possuem uma série de efeitos positivos e úteis. Isso se evidencia em Rusche e Kirchheimer (2004), quando demonstram a relação entre as penas e os sistemas de produção, ou seja, as penas eram mais brandas em períodos de maior necessidade de mão-de-obra ou mais severas quando estas eram abundantes. Significa que não se deve observar a história das punições como progresso da humanização, mas se deve sempre relacioná-las ao contexto histórico em que está inserida.

 

Ao lado disso, observando o conceito de descontinuidade proposto por Foucault (2006) verificamos que a natureza do direito também se transforma ao longo da história ocidental. Da antiguidade até a Revolução Francesa o princípio fundamental estava no conceito de que todos são diferentes perante a lei; ou seja, do mesmo modo que se acreditava que os indivíduos eram naturalmente desiguais, as penas e punições também eram aplicadas observando-se critérios desiguais. Após a Revolução Francesa, cujos preceitos fundamentais se firmam na liberdade (de contratar) e na igualdade (perante a lei), verificou-se, no Ocidente, uma mudança na essência do direito, que passava a se fundamentar na concepção de igualdade perante a lei. A tese da descontinuidade, que demonstra a alteração radical do princípio da igualdade, opõe-se à idéia de progresso linear do direito. A compreensão dessa mudança histórica deve ser analisada de forma conjuntural avaliando as circunstâncias que a geraram.

 

Podemos, então, compreender e situar historicamente a instituição do suplício sem resvalarmos no engodo de crenças oriundas do “darwinismo social”, que defendem o conceito do progresso do direito, acreditando que a barbárie foi superada progressivamente por punições mais humanas e civilizadas.

 

O suplício é um tipo de punição que tem como alvo principal o corpo do condenado. Sua estratégia é provocar o maior sofrimento possível, no maior tempo possível. Talvez o suplício mais popular da história, em razão de sua implicação religiosa, seja a crucificação, mas há infindáveis maneiras de punir por meio da dor e do sofrimento.

 

Essas penas variavam de acordo com o crime e o criminoso, pois poderiam consistir em marca de ferro quente, açoites, esquartejamento, fogueiras, ou, até mesmo, arrastamento pelas ruas com uma gaiola na cabeça para se prolongar a morte. No Ocidente, a grande difusão do suplício se deu pela Santa Inquisição.

 

O suplício repousa na arte quantitativa do sofrimento. Mas não é só: está produção é regulada. O suplício faz correlacionar o tipo de ferimento físico, a qualidade, a intensidade, o tempo dos sofrimentos com a gravidade do crime, a pessoa do criminoso, o nível social de suas vítimas. Há um código jurídico da dor; a pena, quando é supliciante, não se abate sobre o corpo ao acaso ou em bloco; ela é calculada de acordo com regras detalhadas: número de golpes de açoites, localização do ferrete em brasa, tempo de agonia na fogueira ou a roda (…) (FOUCAULT, 1991, p. 34).

 

O que se buscava não era a morte, mas o sofrimento corporal do condenado. Conforme se observa na teoria de Rusche e Kirchheimer (2004), há espaço para esse tipo de punição, uma vez que no modo de produção feudal o corpo não é valorizado como será na era industrial. “Rusche e Kirchheimer têm razão de ver aí o efeito de um regime de produção em que as forças de trabalho, e portanto o corpo humano, não tem a utilidade nem o valor de mercado que lhes serão conferidos numa sociedade industrial” (FOUCAULT, 1991, p. 50).

 

A inquisição medieval representou o momento de maior emprego do suplício como punição. Como na antiguidade e na Idade Média as questões religiosas também eram questões de interesse de Estado, o tribunal da Santa Inquisição não era meramente eclesiástico. Representou uma resposta ao aumento das contestações aos dogmas da Igreja. A partir do século XII, bispos são nomeados para visitarem paróquias suspeitas de heresia. Para surtir os efeitos desejados foi necessário o apoio da nobreza e, na modernidade, a partir do século XVI, do Estado. Com a intenção de unificação cultural (judeus, católicos e muçulmanos), os reis da Espanha e Portugal instalam, com o ajuda do Papa, a inquisição moderna, que ultrapassou em muito a crueldade da inquisição medieval.

 

O suplício tem uma conotação pedagógica, pois traz como princípio o espetáculo público. Deve ser visto e atemorizar o maior número de pessoas possível. Dessa forma, a punição mais espetacular foram os “autos-de-fé”. Eram dispendiosos e, por isso, realizados em ocasiões especiais. Eram erguidos grandes palcos enfeitados e duravam todo o dia. O povo era avisado com grande antecedência e garantiam-se quarenta dias de indulgência à platéia.

 

Nas primeiras horas da manhã, reuniam-se novamente os condenados nas suas celas, e eram vestidos com os sambenitos. Formavam-se a procissão. No lugar dos presos que haviam fugido ou morrido, erguiam-se suas efígies, que eram queimadas na frente do povo para que seus filhos carregassem a marca da vergonha (NOVINSKY, 1996, p. 67).    

 

A execução era pública e os processos se davam em segredo absoluto. As pessoas poderiam ser presas a qualquer momento sem lhe ser comunicado o motivo da prisão. O nome do acusador e denunciante era guardado em segredo absoluto. Quando denunciado, a inquisição, por meio de um de seus membros, se dirigia até a sua casa, acompanhado pelo Juiz do fisco e, mesmo sem ter provas concretas, seqüestrava todos os seus bens e trancava sua casa, proibindo a entrada de qualquer pessoa, mesmo da família. Geralmente a família ficava na rua sem qualquer auxílio. Seus descendentes eram considerados, por várias gerações, infames e excluídos da sociedade.

 

Para Foucault (1991), o suplício era um ritual político de cerimônia pelas quais se manifesta o poder. O soberano, que congrega todos os poderes, exibe aos olhos de todos seu poder invencível. Portanto, nesse ritual, o personagem mais importante é o povo. Não fazia sentido o suplício ser efetuado reservadamente, pois a consagração da força e do poder do soberano deveria ser exaltada. O povo é chamado como espectador e convocado para testemunhar e participar, sempre à luz do dia (que significava, naquele momento, “horário nobre”) do espetáculo de medo e pavor.

 

 

III.        FIM DOS SUPLÍCIOS: MODERNIDADE E ORTOPEDIA SOCIAL

 

A partir do século XVIII ondas de protestos contra o suplício varrem a Europa e todo espetáculo será substituído, paulatinamente, por uma nova instituição: a prisão. A prisão sempre existiu, mas não na forma como a conhecemos hoje. Era conhecida como cárcere ou masmorra. Os réus, até a modernidade, não eram punidos com a perda da liberdade, mas com a morte, o açoite, o degredo, o trabalho forçado, as galés e o suplício. O cárcere era o lugar onde o condenado aguardava sua pena. Não havia qualquer preocupação com a sua qualidade, sendo lugares aterrorizantes e insalubres. O simples fato de passar alguns dias ali já condenava o indivíduo à morte.

 

O modelo de prisão que conhecemos hoje tem suas origens em duas instituições: as celas eclesiásticas medievais, da Igreja Católica, utilizadas para punir religiosos infratores, onde se buscava a reflexão sobre a falta cometida e a aproximação de Deus; e as casas de correção da Inglaterra do século XVI, que recolhiam mendigos, indigentes e desordeiros, sob a autoridade dos calvinistas, devendo ser disciplinados pela severa orientação ética do trabalho e da religião. Para Foucault (2001), a prisão, mesmo que aparentando ser um depósito humano, esteve desde a sua origem ligada a um projeto de transformação dos indivíduos.

 

A partir do século XVIII a supressão da liberdade por meio da prisão se transforma na essência da punição. Sua finalidade passa a ser a reeducação do detendo. Seu contexto se dá na crescente necessidade de mão-de-obra das indústrias incipientes, cuja conseqüência é a valorização do corpo. Expressa uma resposta à necessidade de utilização racional e intensa de trabalho humano.

 

Portanto, a prisão foi uma alternativa ao problema da reorganização da classe popular, sem a repressão puramente física, uma vez que a economia industrial necessitava da conservação e manutenção da eventual mão-de-obra.

 

            O modelo ideal de sociedade foi projetado a partir da prisão. Todas as instituições (família, escola, fábrica) deveriam ter como fundamento a disciplina fundada no sistema de punição/gratificação das prisões, transformando-se em instituições disciplinares.  “No regime disciplinar, a repressão visível é substituída pela busca de uma conformidade que delimite a normalidade. Ela se expressa numa penalidade perpétua que controla todos os instantes da vida do indivíduo” (SALIBA, 2006, p. 89).

 

            A disciplina se constituía pelo controle do tempo, da distribuição dos corpos no espaço, da vigilância e do exame constante, condicionando o indivíduo ao autocontrole. Essas instituições, apoiadas nos novos saberes das ciências humanas (pedagogia, psicologia, psiquiatria, serviço social etc.) são destinadas a moldar o corpo e a subjetividade dos indivíduos para que fossem obtidos os efeitos de utilidade necessária para o regime de trabalho capitalista, dispensando a relação custosa de violência utilizada no período da escravidão e das penas de flagelos. Moldar o corpo e a subjetividade do indivíduo significa aumentar a força útil dos trabalhadores por meio dos treinamentos rigorosamente organizados. Em suma, podemos dizer que essa estratégia parte do pressuposto que os indivíduos não são espontaneamente aptos ao trabalho e muito menos ao trabalho manual, repetitivo e alienado da sociedade industrial, mas são transformados pelas instituições disciplinares, ao longo de sua vida, pela docilização e domesticação dos corpos. Dessa maneira, o corpo só se transforma em virtual força de trabalho, quando exercitado pelo poder disciplinar.

 

As análises foucaultianas permitem perceber que o trabalho, tal como foi concebido na era mecânica, de maneira nenhuma constitui “a essência natural do homem”; para que tal traço passasse a estruturar os corpos e as subjetividades ocidentais, pelo contrário, foi preciso efetuar uma complicada operação biopolítica e disciplinadora (SIBILIA, 2003, p. 164).

 

Na modernidade, o encarceramento deixa de ser um meio para ser o fim e a essência da punição. O cárcere é remodelado pelas normas da higiene com a finalidade de recuperação moral do detento, promovendo a ilusão da missão civilizatória e do humanismo.  Para Foucault (1991), há um redirecionamento da arte de fazer sofrer, uma vez que se extingue a violência contra o corpo.

 

A modernidade é permeada por alterações econômicas, sociais e políticas que dão suporte aos novos discursos e saberes. A Europa é varrida por novas teorias políticas que criticam a violência contra o cidadão e defendem as liberdades individuais.

 

Não se pode aplicar grandes punições (…) sem colocar nas mãos de alguns cidadãos um grande poder. É melhor, portanto, nesses casos, muito perdoar do que punir; exilar pouco do que exilar muito (…). Cumpre retomar tão logo seja possível esse ritmo normal de governo em que as leis tudo protegem e não se armam contra ninguém (…) (MONSTESQUIEU, 1982, p. 229).

 

            Dessa forma, estimulado pelos novos saberes, o poder na modernidade abandona seu aspecto teatral e investe na discrição tornando-se circunspeto. Para Lebrun (1981, p. 85-7), “o poder moderno não é mais, essencialmente, uma instância repressiva e transcendente (…) mas uma instância de controle, que envolve o indivíduo mais do que o domina abertamente (…)”. Para ele, o Estado moderno é menos dominador e mais manipulador, uma vez que se preocupa menos em reprimir a desobediência do que em preveni-la.

 

 

IV.        A PRISÃO: O SUPLÍCIO PÓS-MODERNO

 

Durante a modernidade, o sistema penal que se construiu assentou-se na pena como resposta, não aceitando ou propondo outras formas de resolução dos conflitos, e a prisão é a medida punitiva mais severa de contenção. Pode-se identificar uma expansão das penas privativas de liberdade dentro do paradigma, o que levou Thompson a descrever essa forma de sanção como “uma loucura meta-humana” (2003, p.7). As formas de composição de conflito, por meio de medidas restaurativas e não-punitivas, foram afastadas, e o positivismo jurídico, com base em sua cientificidade, estabeleceu regras para a solução das lides de natureza criminal calcadas na punição corporal ou pecuniária.

 

A forma como foi implementada a prisão levou Baratta a apresentá-la como a “ponta do iceberg que é o sistema penal burguês, o momento culminante de um processo de seleção que começa ainda antes da intervenção do sistema penal” (2002, p. 167), útil na auto-reprodução do sistema social existente e, portanto, dos interesses dos detentores do poder, visando à manutenção das relações de produção e de distribuição desigual de recursos (1987, p 626). Esse processo prisional não se dá de forma indolor, ao contrário baseia-se na exclusão de membros da sociedade, eliminando-os do ‘mundo livre’, e preservando outros tantos naquela incômoda presença. A ressocialização ou reinserção social daqueles que sofreram privação da liberdade como punição, por conseguinte, é uma proposta não cumprida; prometida, numa falsa ideologia salvadora, porém não realizável, num mundo capitalista globalizado.

 

            Para Foucault, a prisão, “instituição de seqüestro”, tem por fim “fixar os indivíduos em um aparelho de normalização das condutas” e “todas essas instituições não têm por finalidade primeira ‘excluir’, mas fixar as condutas, fixar os indivíduos” (FONSECA, 2002, p. 168). Há uma exclusão física, porém o fim não é eliminar a pessoa. Já numa visão pós-moderna, Bauman, ao discorrer sobre a prisão, destaca seu caráter eliminatório, que “significa uma prolongada e talvez permanente exclusão”, imposta a partir de um ritual “rigidamente estruturado de rejeição simbólica e exclusão física”; a humilhação do procedimento tem por fim fazer o “rejeitado/excluído aceitar sua imperfeição e inferioridade social” (1999, p. 134-5).

 

            A prisão é vista por Ferrajoli como uma “instituição ao mesmo tempo antiliberal, desigual, atípica, extralegal e extrajudicial, ao menos em parte, lesiva para a dignidade das pessoas, penosa e inutilmente aflitiva”, o que o leva a pugnar pela “progressiva minimização da duração da pena carcerária” (2002, p. 332).

 

Adotada universalmente como forma de punição extrema, nenhuma alternativa foi apresentada nos últimos séculos a substituir sua eficácia na contenção daqueles que atentam mais severamente contra interesses sociais, sem meios de conviver em sociedade. Essa ausência de opções induz os membros do corpo social a acreditar na necessidade de sua expansão como forma de contenção dos desvios; todavia, essa enganosa visão precisa ser superada e a vulgarização contida.

 

A prisão cautelar, imposta antes de uma decisão final de mérito, sem avaliação profunda da prova, muitas vezes colhida sem o direito à ampla defesa e ao contraditório, baseada em critérios subjetivos (garantia da ordem pública, da ordem econômica, por conveniência da instrução criminal, ou para assegurar a aplicação da lei penal), é utilizada corriqueiramente, transformando a exceção em regra. Além disso, há exposição e humilhação pública da pessoa presa cautelarmente, apresentada pelos agentes policiais como prêmio, e o julgamento final de mérito torna-se dispensável.

 

            O suplício público humilhante e estigmatizante tem início com a conduta policial – policiais armados e fardados, numa grande operação –, passa pela postura do detido – cabeça baixa, algemas à mostra, seguro pelos braços – e termina com a imagem divulgada amplamente pela mídia, com comentários pejorativos e preconceituosos, identificando e marcando a classe social a que pertence aquela pessoa.

 

As prisões cautelares apresentaram vertiginoso crescimento nos últimos anos, tornando-se assunto obrigatório na política brasileira e Ocidental. A contenção maciça e imediata transmite uma falsa sensação de segurança e permite sua expansão com apoio social e poucos questionamentos quanto à sua eficiência. Após crises ou episódios de conturbação social, sejam eles provocados pela criminalidade organizada ou não, a resposta do poder político se consubstancia num pacote de medidas punitivas e repressivas, com grandes operações policiais. Até mesmo para situações que não envolveriam, em regra, intervenção do sistema penal, o poder político impõe sua atuação. O encarceramento processual é, então, posto, numa falsa ideologia, como o esgotamento da tutela, apaziguando os ânimos da mídia e das classes populares sedentas por uma forte resposta estatal. Ao final de cada projeto ou pacote, restam o aumento do sistema repressivo e a deslegitimidade do mesmo.

 

            A falsa idéia da privação da liberdade como única medida capaz de pôr ordem ao caos ou eliminar os problemas sociais foi propalada e sedimentada durante a modernidade. A associação da criminalidade ao lixo a ser varrido e da implementação da limpeza nos meios sociais permitiu e sustentou a eliminação da liberdade, muitas vezes sem qualquer amparo legal. A sujeira a ser cortada do corpo social se cristalizou nas classes sociais mais desprestigiadas, e, ao ser levada à prisão, a marginalidade foi criminalizada, numa prova “inconteste da periculosidade das classes populares” (MORAES, 2005, p. 93). Há um paralelo entre esse modelo de isolamento na prisão e o isolamento nos guetos ou bairros periféricos das classes pobres, enquanto a classe social média e alta vive protegida nos “enclaves fortificados”, conforme bem analisado por Caldeira (2000, p. 214).

 

            Por tudo isso, a prisão cautelar tem se mostrado como o ponto final na vida do ser humano, e sua mínima utilização, em situações excepcionais, não pode ser afastada como instrumento processual válido, desde que pautada por regras insuperáveis de respeito à dignidade do ser humano e aos Direitos humanos.

 

 

V.         CONSIDERAÇÕES FINAIS

 

            Vivenciamos atualmente a crise do sistema judiciário, que se expressa num grande paradoxo punitivo. Por um lado, a estratégia disciplinar de adestramento dos indivíduos passa por um momento de crise de seus paradigmas, uma vez que a sociedade pós-moderna não mais se estrutura no trabalho e na produção em massa e, portanto, não exige, como dantes, a fabricação de corpos dóceis. Foi a sociedade industrial, com base na ética do trabalho e na reeducação do indivíduo, que fundamentou a transformação da prisão em essência da punição. Para Bauman (1999), só faz sentido promover esforços para levar detentos de volta ao trabalho quando há trabalho para se fazer. Assim, se o confinamento era uma escola para o emprego, hoje é uma “alternativa ao emprego”. Se não há mais emprego, não há mais motivos para se reeducar e a prisão perde seu fundamento.

 

Por outro lado, o suplício público, utilizado pedagogicamente antes do advento da sociedade industrial como ideologia punitiva, sobreviveu oculto e protegido no interior dos presídios pelo manto das ações disciplinares. A violência física, a tortura e o suplício não eram mais a essência da punição, mas parte do projeto de reabilitação e se justificavam na conexão do ideal disciplinar/normalizador. 

 

Dessa forma, o paradoxo judicial pós-moderno está relacionado à crise estrutural de uma sociedade em transição. Ou seja, o que fazer com os marginais, frutos da exclusão de um mercado cada vez mais estreito e precário?  Há uma crise aguda nos paradigmas do modelo prisional em conseqüência da crise da sociedade industrial. 

 

Mas podemos identificar uma tendência se firmando na ideologia judicial quando observamos a prisão cautelar e sua exibição pública sob a ótica da teoria da “sociedade do espetáculo”. Para Debord (1997), a sociedade e suas instituições foram transformadas em espetáculo. O espetáculo predomina em todos os níveis, tais como a religião, a educação, a mídia e, conseqüentemente, a justiça. Para ele, toda a vida das sociedades nas quais reinam as condições modernas de produção se apresenta como uma imensa acumulação de espetáculos.

 

Sob essa perspectiva, podemos compreender que a contemplação televisa cotidiana do espetáculo das detenções cautelares transmite a ideologia da prisão como local ideal de realização da justiça. O espetáculo midiático das ações judiciais (invadindo favelas, prendendo e arrastando indivíduos pelas algemas) possui como mensagem oculta a idéia de eliminação completa do inimigo pelas novas prisões de segurança máxima que se expressa na exclusão total. Ou seja, essas prisões são, segundo Bauman (1999), “fábricas de exclusão”. Evidencia-se o abandono da ética reabilitadora pela exaltação da imobilidade absoluta.

 

A sociedade pós-moderna, segundo Debord (1997), pode ser definida como o reino absoluto do espetáculo, consagrando toda a glória do reino da aparência. Para o autor, há uma submissão coletiva aos valores propagados pelo espetáculo, anestesiando a população, de forma geral, inibindo a ação e provocando a contemplação.

 

As alardeadoras prisões cautelares expressam a manifestação do poder, restaurando o princípio medievo de espetáculo público. Como afirma Debord (1997), as imagens manipuladas da realidade pela mídia exaltam o reino das emoções (como medo, raiva, felicidade), apresentando a justiça como espetáculo, criando a partir daí uma realidade própria e fazendo dela a base pela qual a sociedade redefine os conceitos de solidariedade e os critérios honestidade e justiça. Ficção e realidade se misturam dificultando a percepção dos fatos e não permitindo a compreensão integral dos fenômenos sociais. Para Debord (1997), se a mídia não noticiou nada sobre determinado acontecimento, as pessoas tornam-se céticas quanto à veracidade da informação. É mais importante o resultado do “boca de urna” do que a real apuração de uma eleição, da mesma forma que o é a prisão cautelar que o resultado final de mérito num processo judicial. Espera-se o noticiário para se saber a “verdade” de um acontecimento presenciado publicamente.

 

Quando a justiça se rende ao show está procurando afirmar sua existência, uma vez que, na sociedade pós-moderna, só existe aquilo que se dá pela mediação do espetáculo televisivo. Mesmo que se busquem formas alternativas de justiça e de solução de conflitos, elas só se legitimam, na “sociedade do espetáculo”, pelas lentes das câmeras e pela confirmação do fato nos noticiários pelo letárgico espectador.

 

 

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Como citar e referenciar este artigo:
SALIBA, Marcelo Gonçalves. Prisão Cautelar: o suplício pós-moderno!. Florianópolis: Portal Jurídico Investidura, 2008. Disponível em: https://investidura.com.br/artigos/direitopenal-artigos/prisao-cautelar-o-suplicio-pos-moderno/ Acesso em: 28 jul. 2025