Pesquisa Jurisprudencial – Art. 35 da Lei n. 11.343/06 X Art. 288 do CP
Otávio Goulart Minatto *
Há grande discussão doutrinária acerca da figura da associação para o delito de tráfico de tóxicos. Isto porque o art. 35 da Lei n. 11.343/06, a primeira vista, parece ir de encontro ao conceito de quadrilha exposto no art. 288 do CP, uma vez que seriam necessários apenas duas pessoas para configurar a associação, ao passo que, para a quadrilha, são necessários, no mínimo, quatro integrantes.]
O art. 288 do CP assim estabelece:
Art. 288 – Associarem-se mais de três pessoas, em quadrilha ou bando, para o fim de cometer crimes:
Ao passo que o art. 35 da Lei n. 11.343/06 dispõe da seguinte forma:
Art. 35. Associarem-se duas ou mais pessoas para o fim de praticar, reiteradamente ou não, qualquer dos crimes previstos nos arts. 33, caput e § 1o, e 34 desta Lei:
Contudo, ao se observar a jurisprudência do Tribunal de Justiça de Santa Catarina, percebe-se que esta discussão já foi superada nos julgados desta Corte. É pacífico o entendimento de que a associação mencionada no art. 35 é uma modalidade especial do conceito de quadrilha, possuindo características especiais. Logo, o fato de a união de apenas duas pessoas já configurá-lo não desvirtuaria o conceito inicial de quadrilha.
Transcrevo parte do voto de lavra da E. Desembargadora Salete Silva Sommariva, na Apelação Criminal de número 2008.070230-4, no qual esta indagação é levantada e devidamente elucidada:
“Compulsando-se os autos, vislumbra-se que o sentenciante condenou os apelantes, ainda, pelo delito tipificado no art. 35, caput, da Lei n. 11.343/2006 (associação para o tráfico). Por conta disso, Claudemir sustenta não haver provas nos autos capazes de comprovar o mencionado vínculo.
[…]
“Com efeito, o crime de associação para o tráfico (Lei n. 11.343/2006, art. 35), para restar configurado, depende da demonstração da convergência da vontade dos agentes, no sentido de se unirem de modo estável e permanente, com o fim específico de violar o disposto nos arts. 33 (tráfico) e 35 (associação para o tráfico) da novel Lei de Tóxicos.
A propósito da questão em referência, é expressivo o magistério doutrinário que encampa esta orientação de observância imperativa.
“Comentando o tema, leciona Luiz Flávio Gomes:
“‘O art. 35 traz modalidade especial de quadrilha ou bando (art. 288 do CP). Contudo, diferentemente da quadrilha, a associação para o tráfico exige apenas duas pessoas (e não quatro), agrupadas de forma estável e permanente, para o fim de praticar, reiteradamente ou não, qualquer dos crimes previstos nos arts. 33, caput (tráfico de drogas), e 34 (tráfico de maquinário) desta Lei. […] Tipo Subjetivo – É o dolo (animus associativo), aliado ao fim específico de traficar drogas ou maquinário. […] ‘Para o reconhecimento do crime previsto no art. 14 da Lei 6.368/76 [atual 35], não basta a convergência de vontades para a prática das infrações constantes dos arts. 12 e 13 [atuais arts. 33 e 34]. É necessário, também, a intenção associativa com a finalidade de cometê-las, o dolo específico’ […]’ (Lei de Drogas Comentada. 2. ed., São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007, p. 204/205) (grifo nosso)
“Idêntica conclusão é revelada na doutrina de Guilherme de Souza Nucci:
“‘Exige-se elemento subjetivo do tipo específico, consistente no ânimo de associação, de caráter duradouro e estável. Do contrário, seria um mero concurso de agentes para a prática do crime de tráfico. Para a configuração do delito do art. 35 (antigo art. 14 da Lei 6.368/76) é fundamental que os ajustes se reúnam com o propósito de manter uma meta comum.’ (Leis Penais e Processuais Penais Comentadas. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007, p. 334)(grifo nosso)
“Nessa mesma diretriz, é o entendimento de Abel Fernandes Gomes e outros:
“‘O núcleo do tipo: associarem-se indica que pelo menos duas pessoas devem se aliar ou se congregar de forma estável, com o fim de praticarem os crimes previstos no art. 33, caput e §1º, e art. 34 da NLA. A estabilidade deriva da idéia de que a associação, com a finalidade que possui, tem como base e fundamento um plano criminoso que só se coaduna com a permanência estável dessa congregação, para atingir suas finalidades.’ (A Nova Lei Antidrogas. Rio de Janeiro: Impetus, 2006, p. 34) (grifo nosso)
“Corroborando o exposto, convém mencionar a doutrina de Isaac Sabbá Guimarães:
“‘Há de registrar-se, ainda, que o disposto no art. 35 tem um alcance maior do que o contido no art. 288, CP. Enquanto que no crime de formação de quadrilha ou bando há a necessidade da associação de no mínimo quatro pessoas, o crime definido pelo art. 35 requer a convergência de vontade criminosa de duas ou mais pessoas. E mais. Com o específico fim de praticarem os agentes, reiteradamente ou não, o tráfico, nas modalidades definidas pelo caput do art. 33 e seu §1º, bem como quaisquer modalidades criminosas do art. 34. […] O que importa para a configuração do crime é a convergência de vontades para a prática de tráfico, bem como dos crimes que o antecedem ou preparam as condições necessárias para o seu proveito, constituindo-se uma sociedade criminosa estável […]’ (Nova Lei Antidrogas Comentada. 2. ed. Curitiba: Juruá, 2007. p. 106)
“Das lições doutrinárias acima transcritas, verifica-se que a caracterização do delito de associação não depende, exclusivamente, da presença de comunhão de vontades voltada para o tráfico, tampouco que haja a contínua e efetiva prática da atividade de mercancia de entorpecentes em conjunto entre os agentes, uma vez que o próprio tipo afasta tal exigência, prescrevendo que a conduta (tráfico) pode ou não ser concretamente perpetrada (‘…reiteradamente ou não…’ art. 35). Assim, não é o exercício da traficância em si que interessa à configuração da associação.
“Para que se legitime a imposição da sanção correspondente pelo cometimento do delito em questão (art. 35), a lei exige mais do que o exercício do tráfico em integração pelos criminosos, porquanto em tal situação, a conduta de cada qual, sem um animus específico e duradouro de violar os arts. 33 e 34 da Lei de Tóxicos, evidencia unicamente a coautoria.
“O preceito legal refere-se à existência de “fim específico de praticar” o tráfico, o que evidencia tratar-se de crime formal, que naturalmente independe de resultado.
“Tal expressão (‘fim específico’) revela ser fundamental à caracterização do delito de associação que duas ou mais pessoas ajustem-se previamente e então unem seus esforços para estruturar uma associação, conferindo-a certo grau de estabilidade e permanência, com o precípuo objetivo de traficar drogas ou portar, fabricar, equipamentos com este desiderato, reiteradamente ou não, conforme anotam Alexandre Bizzotto e Andreia de Brito Rodrigues:
“‘Consuma-se o crime da associação com o momento em que duas ou mais pessoas se ligam com o ânimo de permanência e estabilidade para o fim de cometer crimes descritos nos artigos 33, caput, 33, §1º, e 34 da Lei 11.343/06. Ressalta-se não ser necessário o efetivo cometimento dos crimes, haja vista se tratar de crime formal. […] Contém o art. 35, caput, o elemento subjetivo do tipo condizente na finalidade reiterada ou não de praticar os crimes descritos no tipo penal. […] Associação é a reunião de duas ou mais pessoas que tenham a vontade de se aliarem de maneira permanente e com certo grau de estabilidade. Na associação, exige-se vínculo subjetivo entre os participantes, no sentido da intenção de praticarem os fatos criminosos descritos no art. 35, caput, com uma percepção de que há uma união de aparente durabilidade. Objetivamente, os elementos do crime de associação podem ser fatiados em quatro: a) duas ou mais pessoas; b) acordo prévio dos participantes; c) vínculo associativo duradouro; d) finalidade de traficar drogas. […] Em análise rigorosa, pode ser afirmado que a tipicidade deste artigo não será de fácil identificação, tendo-se em vista que, para alguém ser autor do tipo legal, é importante a prova da conduta voltada a associação, não bastando a mera integração ocasional a grupo. Não é possível o recurso da presunção para se afirmar a associação, pois a conduta deve ser taxativa e expressa […]’ (Nova Lei de Drogas: Comentários à Lei nº 11.343, de 23 de agosto de 2006. 2. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007, p. 78/79)
“Assim, ressalte-se, não é toda ocasião que restar evidenciada a convergência de vontades, vale dizer, mero concurso de agentes, que estará apta a configurar o delito de associação, ressaltando, outra vez mais, a imprescindibilidade do animus associativo com o propósito final de traficar, como pondera Vicente Greco Filho:
“‘Parece-nos, todavia, que não será toda a vez que ocorrer concurso que ficará caracterizado o crime em tela. Haverá necessidade de um animus associativo, isto é, um ajuste prévio no sentido da formação de um vínculo associativo de fato, uma verdadeira societas sceleris, em que a vontade de se associar seja separada da vontade necessária à prática do crime visado. Excluído, pois, está o crime, no caso de convergência ocasional de vontades para a prática de determinado delito, que determinaria a co-autoria. […]
“‘Diante, pois, destas considerações o crime de associação (art. 14) como figura autônoma há de ser conceituado em seus estreitos limites definidores. Jamais a simples co-autoria, ocasional, transitória, esporádica, eventual configuraria o crime de associação. Para este é mister inequívoca demonstração de que a ligação estabelecida entre A e B tenha sido assentada com esse exato objetivo de sociedade espúria para fins de tráfico, ainda que este lance final não se concretize, mas sempre impregnada dessa específica vinculação psicológica, de se dar vazão ao elemento finalístico da infração’ (Tóxicos, 10. ed., atual., São Paulo, Editora Saraiva, 1995, pp. 109/111).
“No caso em tela, observa-se que os elementos amealhados nos autos, suficientes para caracterizar o tráfico em relação ao apelante, como já salientado, também permitem vislumbrar que a ligação entre os réus tenha se concretizado com o desiderato finalístico de estabelecer uma sociedade espúria para fins de tráfico.
“Isso porque, conforme relato dos próprios investigadores, as conversas interceptadas, já citadas alhures, foram evidentes em demonstrar que Rogério auxiliava Claudemir nas transações realizadas para a venda dos entorpecentes, inclusive no dia dos fato, restou combinado que a droga poderia ser pega tanto de Rogério quanto de Claudemir.
Para arrematar, colhe-se jurisprudência desta corte de justiça:
“‘APELAÇÃO CRIMINAL. ASSOCIAÇÃO PARA A PRÁTICA DO NARCOTRÁFICO. ART. 35 DA LEI 11.343/06. ALMEJADA ABSOLVIÇÃO. IMPOSSIBILIDADE. DEMONSTRAÇÃO INEQUÍVOCA DO RESPECTIVO COMETIMENTO. AJUSTE PRÉVIO E ESTABILIDADE EVIDENCIADOS.
“‘Havendo ajuste prévio entre os agentes, que formam uma associação permanente com vistas a traficar entorpecentes, e não sendo esta convergência de vontades apenas momentânea, mas estável, configura-se o delito capitulado no art. 35, da Lei n. 11.343/06, inviabilizando a absolvição’. (Ap.Crim, n. 2008.008285-5, de São Bento do Sul, rel. Des. Sérgio Paladino, j. em 8-7-2008)
Da pesquisa jurisprudencial, colhe-se que o art. 35 é aplicado sem maiores divagações:
“Dessarte, indícios amealhados no processado apontam para a segura condenação dos acusados Donozete Aparecido Damacena, Marcos Antônio Baú e Jaqueline Helena de Freitas pela prática do delito tipificado no art. 35 da Lei n. 11.343/06, os quais apontam para a conclusão de que os acusados, de fato, associaram-se para a prática da mercancia de entorpecentes, de modo que medida outra não há senão ter por afastado o pleito absolutório formulado”. (Ap. Crim. n. 2008.028484-4, de Joinville, Rel. Des. Solon d’Eça Neves).
“Soma-se aos elementos de convicção trazidos até o momento o fato de os milicianos, ao empreenderem laboriosa investigação com vistas à eliminação do tráfico de drogas na região de Itajaí, terem apurado a efetiva colaboração entre os acusados Carlos Alberto Schu e Luciana Banholine, o que reforça a caracterização das figuras dos arts. 33, caput, e 35, caput, da Lei n. 11.343/06” (Ap. Crim. n. 2008.022655-0, de Itajaí, Rel. Des. Solon d’Eça Neves).
“Dessarte, indícios amealhados no processado apontam para a segura condenação dos acusados Osmar e Zenildo pela prática do delito tipificado no art. 35 da Lei n. 11.343/06, a destacar: a grande quantidade de maconha apreendida com o co-réu Osmar, somada à sua confissão nas fases administrativa e judicial, que denotam, com segurança, a destinação comercial da droga; as informações obtidas por meio de denúncias anônimas; o testemunho do adolescente J. d. S.; os depoimentos dos policiais e, sobretudo, as investigações por estes procedidas, que, claramente, indicam que os acusados, de fato, associaram-se para a prática da mercancia de entorpecentes” (Ap. Crim. n. 2008.014602-5, de São José, Rel. Des. Solon d’Eça Neves).
“APELAÇÃO CRIMINAL – TRÁFICO ILÍCITO DE ENTORPECENTES – LEI N. 11.343/2006, ART. 33, CAPUT – PRISÃO EM FLAGRANTE – MATERIALIDADE E AUTORIA COMPROVADAS – DEPOIMENTOS DOS POLICIAIS MILITARES CONDIZENTES COM A REALIDADE DOS AUTOS – EXERCÍCIO DA TRAFICÂNCIA COMPROVADO – ASSOCIAÇÃO PARA O TRÁFICO – LEI N. 11.343/2003, ART. 35, CAPUT – DOLO ESPECÍFICO NÃO DEMONSTRADO – ABSOLVIÇÃO IMPOSTA” (Ap. Crim. n. 2008.022476-9, de Navegantes, Rela. Desa. Salete Silva Sommariva).
“APELAÇÕES CRIMINAIS. RECURSOS DAS DEFESAS. CRIMES CONTRA A SAÚDE PÚBLICA. TRÁFICO DE DROGAS E ASSOCIAÇÃO PARA O TRÁFICO. PRELIMINAR DE NULIDADE DA SENTENÇA. DOSIMETRIA. INDIVIDUALIZAÇÃO. AUMENTO DA PENA-BASE EM RAZÃO DA QUANTIDADE DE DROGA APREENDIDA. CIRCUNSTÂNCIA OBJETIVA QUE SE ESTENDEU AOS OUTROS ACUSADOS. AUSÊNCIA DE PREJUÍZO. NULIDADE AFASTADA. MÉRITO. MATERIALIDADE E AUTORIA DEVIDAMENTE COMPROVADAS. CONFISSÃO EXTRAJUDICIAL CORROBORADA PELOS DEPOIMENTOS DAS TESTEMUNHAS E PELAS DEMAIS PROVAS COLHIDAS EM JUÍZO. RETRATAÇÃO EM JUÍZO DISSOCIADA DO CONTEXTO PROBATÓRIO. PALAVRA DOS POLICIAIS QUE EFETUARAM A PRISÃO EM FLAGRANTE ISENTOS DE MÁCULA E EM HARMONIA COM O CONJUNTO PROBATÓRIO. ESTABILIDADE E PERMANÊNCIA NA ASSOCIAÇÃO. RÉU DISTRIBUIDOR/FORNECEDOR E DOIS OUTROS QUE EFETUAVAM A VENDA DIRETA AOS USUÁRIOS. CONDENAÇÕES MANTIDAS. PENA-BASE DEVIDAMENTE APLICADA. SENTENÇA MANTIDA. RECURSOS DESPROVIDOS” (Ap. Crim. N. 2008.064662-8, de São Carlos, Rel. Des. Hilton Cunha Júnior) (grifei).
“APELAÇÃO CRIMINAL. CRIME DE ASSOCIAÇÃO (ART. 35 DA LEI N. 11.343/06) E CRIME DE PORTE ILEGAL DE ARMA DE FOGO DE USO PERMITIDO (ART. 14 DA LEI N. 10.826/03). AUTORIA E MATERIALIDADE COMPROVADAS. PRINCÍPIO DO CONTRADITÓRIO OBSERVADO. DECISÃO FUNDAMENTADA EM DEPOIMENTOS PRESTADOS NA FASE POLICIAL. VIABILIDADE POR ENCONTRAR SUSTENTAÇÃO EM OUTROS ELEMENTOS PROBATÓRIOS. DEPOIMENTOS, ADEMAIS, UNÍSSONOS E COERENTES. PRETENSÃO DE ABSOLVIÇÃO QUANTO AO CRIME DE ASSOCIAÇÃO PELO FATO DE EXISTIR ALEGAÇÃO NO SENTIDO DE SER O OUTRO ACUSADO INIMPUTÁVEL. IMPOSSIBILIDADE. CIRCUNSTÂNCIA INCOMUNICÁVEL. ALEGAÇÃO DE NECESSIDADE DE LAUDO TÉCNICO PARA SE CONSTATAR O ESTADO DA ARMA. DESNECESSIDADE” (Ap.Crim. n. 2007.050142-4, de Joinville, Rel. Des. Subst. Victor Ferreira) (grifei).
Conclui-se, desta forma, que a associação prevista no art. 35 da Lei n. 11.343/06 não encontra contradição com o conceito de quadrilha do art. 288 do CP.
* Acadêmico de Direito da UFSC