Direito Penal

Pensando o impensável. Cabe discutir a pena de morte?

Pensando o impensável. Cabe discutir a pena de morte?

 

Francisco César Pinheiro Rodrigues*

 

O Direito, um produto da sociedade — assim como a bile é segregada pelo fígado, e a insulina pelo pâncreas —, deveria, retratando a vontade majoritária, evoluir conforme as necessidades sociais e intelectuais específicas de cada país. Daí o pecado original das Constituições excessivamente rígidas e detalhistas, como a brasileira, de 1988, que pretendeu imobilizar e até mesmo “sufocar” a liberdade das gerações futuras, impedindo-as de mudar conforme opinião própria e exigências — ainda que provisórias —, de seu tempo.

 

As “cláusulas pétreas” da nossa Lei Magna— em grande número, quase uma enxurrada, sem mencionarmos as “implícitas” — são um exemplo marcante dessa entusiasmada mas imprevidente ilusão de que o que é bom hoje só pode ser bom até o final dos tempos, seja qual for a opinião e as necessidade mutáveis dos nossos descendentes. Uma autêntica — embora não intencional —, ditadura ideológica de uma geração sobre as seguintes e que — segundo tradicional doutrina — só poderia ser derrubada — uma confissão implícita de seu absolutismo — através de descabeladas “revoluções”, totalmente desnecessárias e desproporcionais. Algo assim como jogar no ferro velho um Mercedes novo que apresenta uma única peça defeituosa. Para se mudar um artigo, ou parágrafo, ou alínea, seria preciso inutilizar e refazer centenas de artigos e outros textos bem redigidos e com total aprovação da comunidade. — “Há dois tijolos defeituosos na bela edificação? Impossível substituí-los! É preciso implodir o prédio todo e erguê-lo de novo”.

 

Disse “revoluções” porque é da natureza das “cláusulas pétreas”, como todos sabem, não poderem ser modificadas a não ser por uma nova ordem constitucional, com novo poder constituinte. Isso significa — reitero — que para se alterar uma “cláusula pétrea” — por exemplo, a proibição da prisão perpétua ou pena de morte, fiquemos, nesses dois itens — teríamos que inutilizar a Constituição por inteiro, convocar eleições destinada a outorgar poderes constituintes específicos aos eleitos — com despesa de centenas de milhões de reais — e com o risco de introdução de novas “cláusulas pétreas” que poderiam futuramente engessar novamente a nação. Um exagero, convenhamos, que explica a longa duração da “menos empedrada” orientação contrária, adotada pela constituição americana, concisa e seletiva na escolha de comandos fundamentais. Esta contentou-se com algumas poucas regras fundamentais: o direito a um julgamento imparcial, o devido processo legal, o direito de propriedade, a forma republicana de governo, a federação, e mais uns tantos direitos invioláveis, permitindo à Suprema Corte uma contínua adaptação às necessidades de seu tempo. Quando aquela nação eventualmente erra — como vem errando ultimamente em política internacional, segundo opinião predominante dos cientistas políticos —, não é por culpa de sua Carta Magna, mas por falha pessoal dos governantes, que podem ser substituídos periodicamente.

 

Pela leitura de depoimentos, ou audição de entrevistas — transmitidas até pela Internet —, com chefes do crime organizado, é impressionante a segurança e tranqüilidade com que tais criminosos confessam que mataram e continuarão matando, concorrentes e não concorrentes. Não revelam o mínimo temor da lei. Impõem, na periferia — por enquanto é só lá… — a “lei do silêncio”, garantindo a impunidade. Isso porque as testemunhas não vão arriscar a vida apenas pensando no bem comum. Obrigam o fechamento do comércio local ( não existe mandado de segurança disponível contra a força bruta do crime organizado), com “luto oficial”, quando morre algum líder infrator e, se lhes der na veneta matar qualquer prefeito, governador, juiz ou promotor, poderão fazê-lo, pois sempre disporão da mão de obra esfomeada ou intoxicada de algum desesperado. Só não têm feito isso por razões táticas, eis que o assassinato de altas autoridades aumentaria a pressão policial, atrapalhando “os negócios”. Têm o poder de vida e de morte sobre o restante da população. Estão acima do bem e do mal.

 

O que o Estado pode fazer contra isso? Prendê-los? Isso nem sempre é fácil, tendo em vista a intimidação sobre eventuais — assustadas eventuais… — testemunhas de acusação, as que têm a sorte de ainda permanecerem vivas. Autorizar, a polícia, a criação de “esquadrões” com licença para matar? Seria um imenso retrocesso institucional, incompatível com qualquer mínimo Estado de Direito. Além do mais, haveria, com os “esquadrões”, inevitáveis desvirtuamentos de finalidade, gente sendo eliminada por interesses outros que não a luta contra a criminalidade violenta.

 

Mesmo quando os chefes do crime organizado são presos, a impunidade continua em relação a crimes futuros. Isso porque o avanço da tecnologia alterou a moldura tradicional sobre a finalidade da pena: a recuperação. Em teoria, o criminoso ficaria isolado na cela, meditando, remoendo suas culpas, lendo a Bíblia, rezando e se arrependendo. Mas todos sabem que não é isso que acontece. A maioria dos estudiosos concluiu que a prisão raríssimamente recupera. Mais destrói do que corrige o caráter dos condenados.

 

A tecnologia, que avança sem medir conseqüências, introduziu um fator novo no dia-a-dia da criminalidade: o telefone celular e as transferências eletrônicas de dinheiro. A legislação penal, precocemente envelhecida, não consegue, com suas gordas pernas varicosas, acompanhar o marcha vivaz do crime, que não obedece a norma alguma — legal, moral ou até mesmo “imoral”, própria dos marginais (os grandes traficantes praticam a “caridade”, em troca do apoio dos favelados).

 

Constatado, pela experiência, que os chefões do crime organizado continuavam, mesmo dentro da cadeia, via telefone celular, a comandar suas atividades ilícitas — inclusive mandando matar oponentes —, o Estado providenciou maior intensidade das revistas de visitantes. Mas o resultado foi relativo, porque uns poucos funcionários — basta um ou dois maus elementos para criar a brecha —, não resistiam á tentação de ganhar em alguns minutos o que só ganhariam com o salário de vários anos. Além disso, qualquer “revista” corporal, para ser totalmente eficiente, teria que ser vexatória. E detector de metais é encarado como ofensa.

 

Pensou-se, então, em instalar aparelhos que bloqueiam a utilização dos celulares nos presídios. Aí surgiu outro problema: os chefes do crime ficam sabendo qual o funcionário que controla tais bloqueios. E esses funcionários têm família… São vulneráveis, ou pela tentação do dinheiro alto ( para eles altíssimo) ou pelo medo de represálias contra ele e sua família. Com isso o bloqueio dos celulares seria, “discretamente”, interrompido por alguns minutos durante a madrugada. A ‘criatividade” criminosa permitiria a continuação da gerência do crime, feita à distância, dentro do presídio, e com a paradoxal vantagem de o criminoso chefe estar protegido dos ataques dos rivais. A cadeia passa a ser transformada em fortaleza, o “bunker” do grande marginal.

 

Nova tentativa do Estado em neutralizar o problema do desligamento dos celulares: deixar o controle dos bloqueadores nas mãos de pessoas que não trabalham nos presídios. Com isso está encerrado o problema? É duvidoso, porque seja quem for a pessoa responsável pelo bloqueio, os criminosos acabarão localizando-a. E mesmo solvido o problema da comunicação via celular, é impossível impedir totalmente que o líder criminoso continue gerindo sua “empresa” através de visitas de parentes e pessoas de sua confiança.

 

Pessoas inclinadas a conjeturas psicológicas freqüentemente se indagam sobre quão inchado ficará o ego de um chefão do crime organizado quando percebem o “pavor administrativo” de alguns governantes ante a simples idéia de ter, em presídio de seu Estado, um líder poderoso do crime organizado e violento. Afinal, quem, na realidade, está “acuado”, o condenado ou a autoridade que o mantém em problemático isolamento?

 

Constatada, assim, a quase falência das prisões — na prática e na teoria —, qual o mecanismo psicológico capaz de conter os impulsos criminosos, latentes na espécie humana? Alguma “pílula” ou “injeção” de honestidade? Uma operação no cérebro do “meliante por má-índole”? Tais avanços só poderão, talvez, estar disponíveis daqui a várias décadas, quando bem mapeado e explicado o funcionamento do cérebro na área relacionada com o senso moral (já existem algumas “pistas” a respeito). O único “remédio”, hoje, desestimulador, conhecido, ainda é o velho e familiar medo, terapia também largamente usada pelos marginais para garantir seu território e a própria impunidade.

 

Mas se o medo da lei já foi suplantado pela longa experiência na vida do crime e o condenado sabe que morrerá na cadeia, ou dela sairá ancião, inutilizado para qualquer trabalho, o que tem a perder — ele se pergunta — se continuar, dentro do presídio, a comandar sua atividade criminosa, inclusive decretando a morte de pessoas fora dos muros? Nada. Nada a perder. E a essa consideração ele acrescenta o auto-perdão pela vida criminosa confortando-se com o argumento de que os jornais, diariamente, descrevem tanta “bandalheira” de políticos e homens públicos que não há porque ele se envergonhar por fazer, às claras, o que alguns “bacanas” fazem às escondidas, e ainda com ares de honestos.

 

Enfim, o preso, condenado a longas penas, conclui que não tem nada a perder, continuando com sua atividade criminosa, mesmo atrás das grades. Se estiver condenado a mais de cem anos de prisão, não terão importância alguns acréscimos de dez ou vinte anos, gotas d’água no seu balde. Não há, portanto, o que temer na continuação de seu “negócio”. E, quem sabe, poderá fugir um dia, esperança que o sustenta.

 

Com isso, esgotou-se o último “contra-estímulo” à criminalidade. Se a pior ameaça é a longa prisão, ela perdeu, doravante, qualquer efeito. A imunização contra o medo da lei é quase total. Tudo, a partir daí é permitido.

 

Entretanto, o medo da morte ainda assusta, mesmo aos mais valentes. Pouquíssimos estão ansiosos para verificar, pessoalmente, o que há “do outro lado”. Mesmo porque um resquício de religião e julgamento final dormita nos crânios mais endurecidos.

 

Nesse ponto cabe examinar se os Estados, as nações, deveriam ser livres para usar, ou não, o remédio extremo, o último recurso: o medo da morte. E morte sem a barbárie das cenas deprimentes, como é o caso da forca, do fuzilamento, da guilhotina, da cadeira elétrica. A injeção, aparentemente sem dor, não desperta tanta repulsa.

 

Alto percentual — qual, exatamente, ninguém sabe, mas algumas pesquisas poderiam revelar, sem plebiscito — da população gostaria que a criminalidade organizada (e mesmo a desorganizada mas extremamente violenta) tivesse mais receio da lei. Não acredita muito na eficácia do medo da cadeia, porque constata diariamente a tranqüilidade com que se mata neste país. Mas não pode, praticamente, sequer discutir o assunto, transformado em tabu pela cláusula pétrea constitucional. Mesmo que — só para ressaltar um raciocínio —, 90% ou 100% da população brasileira viesse a se convencer da conveniência da pena de morte para o reincidente especialmente insensível e incorrigível, sua adoção seria impossível no Brasil, por contrariar “cláusula pétrea”, a exigir uma “revolução” ridícula (“revolução” contra quem, se haveria quase unanimidade na sua aprovação?).

 

Penso que para se “desengessar” o país é preciso que nossos grandes constitucionalistas, de reconhecida competência, encontrem uma “saída”, teórica e prática, que não implique em uma desnecessária, desproporcional “revolução”, com nova assembléia constituinte para alterar parte mínima de nosso ordenamento máximo. Se a permanência de certos valores espirituais é essencial, é também essencial zelar pela sintonia entre o que quer a população (após devidamente esclarecida) — que também tem espírito — e o que dizem suas leis. A “esquizofrenia” legal é tão daninha ao país quanto a moléstia psiquiátrica, de mesmo nome, é prejudicial aos indivíduos.

 

Não é razoável sustentar que “da discussão nasce a luz”, exceto no que se refere à adoção de remédios mais contundentes, embora aparentemente necessários, no combate à criminalidade.

 

* Advogado, desembargador aposentado e escritor. É membro do IASP Instituto dos Advogados de São Paulo. Website do autor: http://www.franciscopinheirorodrigues.com.br

 

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Como citar e referenciar este artigo:
RODRIGUES, Francisco César Pinheiro. Pensando o impensável. Cabe discutir a pena de morte?. Florianópolis: Portal Jurídico Investidura, 2008. Disponível em: https://investidura.com.br/artigos/direitopenal-artigos/pensar-pena-morte/ Acesso em: 06 out. 2024