Direito Penal

O Tribunal do Júri e o caso Dorothy

O Tribunal do Júri e o caso Dorothy

 

 

Francisco César Pinheiro Rodrigues*

 

 

Inicialmente, peço escusa por me expressar aqui como realmente penso, sem rodeios — nem todos têm esse privilégio… —, sobre uma instituição ainda muito elogiada mas que há muito tempo caducou. Pelo menos em nosso país.

 

Dizem que o júri funciona bem — não garanto, vejam o caso J. J. Simpson — nos países anglo-saxônicos, em que essa forma de julgamento não é “pura”, tal e qual o uísque escocês. No Reino Unido e nos EUA o juiz profissional também participa do julgamento (“escabinado”), não se limitando, a fixar a pena depois da decisão dos jurados sobre o vago “guilty or “not guilty”. Vago, porque quando há uma condenação, esta sai em um bloco informe (há muitos graus de culpa). E se não estou mal-informado, o juiz, nos EUA, pode rejeitar a decisão dos jurados, com o fundamento de que contrariou a prova e o direito, como que dizendo: “Os ilustres jurados fizeram besteira, decidiram tudo errado!”

 

No Brasil temos, também, felizmente, essa forma de abrandar a “soberania” empedrada” — a tal “cláusula pétrea” constitucional — do júri, pois na apelação, o tribunal pode anular o julgamento quando contraria frontalmente a prova dos autos. A necessidade de estabelecer algum limite a julgamentos disparatados, ou suspeitos, forçou o legislador brasileiro a sair pela tangente, admitindo, não que o tribunal de apelação julgue o caso mas que anule a decisão e o devolva ao tribunal do júri para novo julgamento. Como se vê, essa soberania do júri já não está tão intocada, foi limitada para evitar a desmoralização da justiça penal.

 

No mundo de hoje, todas as profissões empenham-se na especialização. Um cirurgião que entenda necessário operar o coração de um paciente tem o dever de consultá-lo — a ele ou sua família — quanto à intervenção em si mas, decidida a sua realização, não admite que cônjuges ou parentes leigos se oferecem para “ajudar” na sala de cirurgia, dando palpites a torto e a direito, passando álcool nos instrumentos e prendendo a mão do cirurgião quando este parece querer cortar fundo demais na carne do bem-amado.

 

Na área da justiça, ninguém se atreve a sugerir que outras causas, além dos crimes contra a vida — realizados ou tentados — sejam julgados pelo júri. Imagine-se uma complexa questão tributária julgada por leigos. Jurados comerciantes ou industriais sempre absolveriam o alegado sonegador, por entenderem que a carga fiscal é excessiva. Já os jurados que trabalham na fiscalização tenderiam a votar contra o réu.

 

Dir-se-á que nos casos de crime contra a vida não é necessário conhecimento algum de Direito para bem decidir um caso. Crimes de homicídio geralmente estão impregnados de reações súbitas e as emoções são de conhecimento cotidiano de todo ser humano. Realmente, não é necessário ler para saber o que é sentir e sofrer, mas não se pode olvidar que a atividade de julgar é uma característica do espírito humano que pode ser aperfeiçoada pelo treino. Normalmente — a exceção é mais um distúrbio pessoal — quanto mais se julga, mas “afiada” se torna essa qualidade. Tanto isso é dado como certo que os tribunais de apelação de todo o mundo são compostos de antigos e experientes juízes, promovidos após muitos anos de carreira. Se, pelo contrário, a repetição do ato de julgar produz deformação do critério — a tal “boca torta do cachimbo” — como alguns adeptos do júri parecem sugerir — as ações judiciais deveriam ser julgadas primeiro pelos tribunais e depois reexaminadas pelos leigos, pelos mais ignorantes — mais “puros”, não contaminados pelos livros — ou por juízes em início de carreira, ainda não intelectualmente “corrompidos” pelo “pretensioso” ofício de julgar seu semelhante.

 

É, portanto, contrária à experiência comum dizer que os jurados decidem melhor que os juízes profissionais. Isso, se eventualmente ocorrer, constitui exceção, e a lei orienta-se pela generalidade. O mesmo, analogicamente, ocorre com a advocacia. Entre dois advogados igualmente inteligentes e diligentes, é muito melhor escolher um que tenha grande prática da profissão. Juízes que passam a advogar depois de aposentados custam um pouco a dominar os segredos da profissão, principalmente sobre como lidar com o elemento humano, que não lhe obedece automaticamente — é um susto —, tal como ocorria quando ele era magistrado.

 

Jurados, em comarcas conflituosas e distantes dos grandes centros, também estão mais sujeitos às pressões que os juízes profissionais, que contam com uma cúpula de apoio para o exercício da jurisdição. É muito mais arriscado ameaçar um juiz que um jurado anônimo qualquer. Um bancário, pequeno agricultor ou pequeno funcionário teme perder o ganha-pão — ou até a integridade óssea — caso não siga a recomendação de um poderoso local para julgar desse ou daquele jeito, em um caso especialmente importante. E juiz nenhum teme “perder o emprego” por suas decisões, tendo em vista a garantia da vitaliciedade.

 

Os jurados também costumam se atrapalhar na votação dos quesitos. Já li estudo, não me lembro o nome do autor, dizendo que em cada quatro julgamentos de júri cerca de dois são anulados por questões técnicas relacionadas com respostas aos quesitos. Por vezes, as perguntas são extremamente sutis, tanto assim que mesmo nos julgamentos pelos tribunais de apelação os experientes julgadores discutem e discordam sobre o alcance de tal ou qual resposta a quesito. Anulado o julgamento, começa-se tudo de novo, por vezes com uma desmoralizante dança de resultados: ora absolvendo, ora condenando. No caso da freira Dorothy, o réu fazendeiro, suposto mandante do assassinado, foi condenado, primeiramente, a trinta anos, mas no júri seguinte foi absolvido. Havendo um terceiro júri, não está afastada a hipótese de ser novamente condenado e, se anulado novamente o julgamento, ser outra vez absolvido. E assim por diante. Já foi dito que o júri é um tribunal concebido para dizer quem é o melhor advogado, ou orador.

 

E por falar em orador, os grandes defensores da instituição do júri são, geralmente, bons advogados criminalistas que, por coincidência, são também excelentes artistas, capazes de temperar seus argumentos com persuasivos molhos de emoção. Conseguem, por vezes, fazer chorar. Isso quando eles mesmo não choram, sinceramente comovidos com o caso e suas próprias palavras. Digo isso sem ironia. Não fossem advogados fariam sucesso no teatro, cinema ou televisão. Nasceram com duplo talento. Sorte deles. São bons advogados e bons atores/oradores. Se Lawrence Olivier — um dos maiores artistas de todos os tempos, falecido em 1989 —, tivesse estudado Direito, qual especialidade procuraria na hipótese de uma crise no mundo dos espetáculos? Certamente, não a árida área tributária, ou empresarial. Ele seria criminalista, de júri. O mesmo se diga de um Al Pacino. Seu talento seria desperdiçado discutindo artigos e parágrafos de hipotecas, usucapião, patentes e demais itens desprovidos de emoção. Observe, o leitor, quem, no Brasil, mais defende a instituição do júri. É o artista da palavra oral, o advogado de júri, que se sente no seu elemento natural. Se o leitor, empresário, está em busca de um artista eloqüente, será entre os advogados de júri que encontrará o que procura. Não estou aqui atacando os inteligentes profissionais, apenas dando a César o que é de César. Pelo contrário, há aqui um elogio cultural velado. A própria sensibilidade, mais pronunciada, leva tais profissionais para a área do Direito mais próxima da Psiquiatria e da Literatura, com sua peculiar beleza.

 

Compreende-se essa preferência, mas isso não invalida o que foi dito antes: o júri, nos países de regime democrático, não tem mais razão de ser. É uma instituição ultrapassada, saudosista, mais um espetáculo interessante. Os juízes profissionais são recrutados no meio da população em geral, mas tiveram que estudar muito para chegar à função, seja como juiz de carreira, seja como juiz pelo quinto constitucional. E, absurdo maior: os jurados não precisam fundamentar o voto. Se quiserem absolver o réu porque é simpático, ou da mesma religião, ou porque isso agrada um “coronel” local, podem fazê-lo sem problema. Já o juiz togado tem que fundamentar porque julga de tal ou qual maneira, sob pena de nulidade da decisão. Se o mundo caminha contra o arbítrio, como tolerar que os jurados, leigos, possam, arbitrariamente, condenar ou absolver conforme lhes der na veneta? A decisão dos jurados é a oficialização do arbítrio no julgar, escondido no anonimato do voto.

 

Alguém pode argumentar que o legislador penal, por mais cauteloso que seja, não pode prever a infinita variedade do agir humano. Dirá que há casos, embora raros, em que o réu, apesar de cometer um homicídio, merecia uma pena muito inferior à mínima — ou até mesmo uma absolvição —, bem verificada a matéria de fato e a patente canalhice e agressividade da vítima. Nesses casos, os jurados leigos, protegidos pelo anonimato, poderiam fazer a perfeita “justiça do caso concreto”, uma espécie de justiça superior, embora informal, absolvendo o réu, mesmo afrontando a prova. E isso o juiz togado não pode fazer. Está obrigado a aplicar pelo menos a pena mínima. Para isso o júri teria sua serventia.

 

Para resolver essa dificuldade, bastaria que uma lei federal autorizasse o juiz criminal a desconsiderar, em todos os julgamentos penais, a pena mínima, desde que fundamentasse convincentemente porque assim decidiu. Se fundamentar bem, e o órgão de acusação concordar — não apelando e dizendo expressamente que concorda com a decisão —, é porque o específico caso constituiria uma exceção, a merecer aprovação. A pena máxima deve sempre prevalecer, mas a mínima é algo ultrapassado, se bem fundamentado seu afastamento pelo juiz profissional.

 

Realmente, está na hora dos estudiosos do Direito Penal debaterem a possibilidade, pelo juiz, da desconsideração da pena mínima, em casos em que esta se apresenta como excessiva, apesar de descrita, em abstrato, na norma penal. Seja esta criminal, propriamente dita, ou de outra natureza, por exemplo fiscal. Isso porque, como foi dito atrás, se o “legislador é sábio” — velha regra de interpretação — não é um profeta infalível, muito menos um Deus.

 

Não sei se o fazendeiro, acusado de matar a freira Dorothy, é ou não culpado. Não li os autos nem assisti o último julgamento, mas o simples fato de o julgamento ocorrer em local remoto e perigoso — em que os jurados podem não se sentir seguros na função improvisada de juiz — já traz uma sombra de suspeição que não beneficia a justiça nem a reputação internacional do país. Mesmo que a última decisão tenha sido, eventualmente, justa, a suspeita permanece. Não se sabe o que efetivamente pesou na cabeça ou no ânimo dos jurados. Se a decisão fosse de um juiz togado, a sociedade poderia conferir minuciosamente seus fundamentos e até poderia, em tese, concordar com eles. Como os jurados não fundamentam, o mistério enseja especulações. E a Justiça não vale apenas pelo que concretamente decide, mas também — e muito mais —, pela confiança que inspira.

 

 

* Advogado, desembargador aposentado e escritor. É membro do IASP Instituto dos Advogados de São Paulo.

 

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Como citar e referenciar este artigo:
RODRIGUES, Francisco César Pinheiro. O Tribunal do Júri e o caso Dorothy. Florianópolis: Portal Jurídico Investidura, 2008. Disponível em: https://investidura.com.br/artigos/direitopenal-artigos/otrib/ Acesso em: 22 nov. 2024