Ana Eduarda Souza de Oliveira[1]
Iasmin da Silva Petrus[2]
Laura Veloso Castro[3]
Liliane Morais Leite[4]
Luciana de Jesus Silva Lobato Almeida[5]
Taylanne Barros[6]
RESUMO
Esse trabalho tem como objetivo geral analisar a possibilidade de incidência dos crimes contra a ordem pública e agentes públicos – desobediência, resistência e desacato ou prevalência do direito constitucional à liberdade de expressão e cidadania no que concerne às manifestações sociais de Junho de 2013. Nesse sentido, tem-se como objetivo específico retratar de forma contextualizada as manifestações de 2013, refletir sobre o direito à liberdade de expressão e cidadania e formular questionamentos e indagações sobre a predominância ou não do direito de liberdade de expressão frente à repressão policial. Como fonte de estudo, foram adotadas doutrinas de Direito Penal e Direito Constitucional, artigos científicos e sites de pesquisa, tendo o método dialético como base.
Palavras-chave: Desobediência. Resistência. Desacato. Liberdade de expressão. Manifestações sociais. Repressão policial.
Sumário: 1-Introdução 2- Crimes de resistência, desobediência e desacato 2.1 Resistência 2.2- Desobediência 2.3- Desacato 3- O que é Estado democrático de direito? 3.1- Liberdade de expressão 3.2- Exigir, opor, e participar 3.3- A limitação dos direitos 4- Movimentos sociais 4.1- Movimentos sociais de 2013 4.2- Projetos de lei 8.125/2014 e 2.769/2015 4.3- O Estado em detrimento do cidadão 5- Conclusão 6- Referências
1. INTRODUÇÃO
O método de abordagem que foi considerado ideal a este trabalho foi o método dialético, por se tratar de um método predominantemente qualitativo, exploratório e bibliográfico, no método existe um conjunto de regras que permitem a formação dos objetos do discurso, ou seja, suas condições de aparição e instâncias de delimitação. Ao invés de reconstituir cadeias de conclusões, se estabeleceu formações discursivas.
Em um segundo momento, finca-se o objetivo de explicar os crimes de Resistência, desobediência e desacato, bem como analisar o bem jurídico protegido, que correspondem a crimes que atingem a Administração Pública, especialmente sua moralidade e probidade administrativa. O trabalho tem o condão de analisar a tipificação desses crimes nas manifestações sociais, bem como apresentar perspectivas e tipificação desses crimes a partir dos movimentos sociais de 2013, e a forma com que o Estado brasileiro enfrentou os movimentos.
Nesta senda, o terceiro capítulo deste trabalho é destinado à análise do Estado democrático de direito, nesse espeque, propõe-se uma análise crítica aos julgados emblemáticos apresentados a fim de enriquecer a discussão, além desses pontos, passar-se-á a discutir o que é o estado democrático de direito e seus elementares, que são a liberdade de expressão e a cidadania, bem como os limites desses direitos fundamentais e a tutela do bem jurídico da administração pública.
O quarto capítulo, por fim, apresentará uma perspectiva a partir dos crimes em comento, bem como, uma abordagem das manifestações sociais que está amparada pelo direito da liberdade e da cidadania. Percebe-se nitidamente um conflito entre a proteção da administração pública em detrimento dos direitos de liberdade e cidadania o que se pontuam como uma proposta de problema a ser discutida, pois existe uma linha tênue entre esses crimes e esses direitos, conforme se passará a analisar no decorrer do trabalho.
2 CRIMES DE RESISTÊNCIA, DESOBEDIÊNCIA E DESACATO
2.1 Resistência
O crime de resistência corresponde a uma oposição à execução de um determinado ato amparado pela lei, de forma violenta ou através de ameaça a funcionário competente para executá-lo ou a quem lhe esteja prestando auxílio[7]. Nesse crime o bem jurídico protegido é a Administração Pública, especialmente sua moralidade e probidade administrativa. Conforme consta na inteligência do artigo 329 do código penal:
Art. 329 – Opor-se à execução de ato legal, mediante violência ou ameaça a funcionário competente para executá-lo ou a quem lhe esteja prestando auxílio:
Pena – detenção, de dois meses a dois anos.
§ 1º – Se o ato, em razão da resistência, não se executa:
Pena – reclusão, de um a três anos.
§ 2º – As penas deste artigo são aplicáveis sem prejuízo das correspondentes à violência.
Nessa concepção, se o ato imposto não possui amparo legal, a resistência não será considerada crime, pois a ausência desse elementar torna a sua resistência uma conduta atípica. Quanto a tutela penal, cumpre ressaltar que não possui a essência em relação ao funcionário público, e sim ao ato funcional que se pretende apreciar, considerando-se a presunção da legalidade do ato que é a elementar do crime, sem a qual não teria a configuração do crime[8].
No tocante ao sujeito ativo pode ser qualquer pessoa que, mediante violência ou ameaça, impeça a prática de ato legal, independentemente de qualidade ou condição especial. Pode, inclusive, ser pessoa estranha daquela contra a qual o funcionário executava o ato[9]. Por consequência, a conduta típica, ou seja, o que caracteriza o crime, incide em opor-se à execução de ato legal, legalidade essa que pode ser tanto formal quanto substancial, mediante violência caracterizada por força física ou ameaça, intimidações a funcionário que possui a competência para executar o ato ou a quem lhe esteja prestando auxílio.
Conforme preconiza o autor César Roberto Bitencourt, a consumação do crime de resistência ocorre com a efetiva oposição à pratica do ato legal, no momento e no lugar em que praticava a violência ou ameaça, independentemente de onde o ato ilegal seria realizado[10]. Não tem relevância jurídica o êxito do agente em seu fim pretendido, que é o de obstaculizar a realização do ato legal. O simples fato de ameaçar ou praticar violência, independente da realização ou não do ato funcional, torna-se o ato consumado[11].
A não realização do ato por quem é competente, tratando-se de crime formal, representaria o simples exaurimento do crime e elemento qualificador do crime. A tentativa é admissível especialmente por tratar-se de um crime que pode facilmente ser objeto de fracionamento[12].
Nesse sentido, a função do artigo é de impedir a concretização amparada por um ato legal praticado por autoridade competente, o que não se está a falar em qualquer ato proferido por agente público, tampouco a qualquer agente público, mas aquele que é competente para determinar a execução do ato.
O crime de resistência, portanto, é composto dos seguintes elementos constitutivos: oposição ativa, mediante violência ou ameaça; a qualidade ou condição de funcionário competente do sujeito passivo ou seu assistente; legalidade do ato a ser executado; elemento subjetivo informador da conduta.
2.2 Desobediência
Heleno Cláudio Fragoso já ressaltava, com sua sensibilidade crítico-liberal, uma opinião a respeito do crime de desacato ao afirmar que “é esta, sem dúvida, uma disposição perigosa e autoritária”.[13]
Art. 330 – Desobedecer a ordem legal de funcionário público:
Pena – detenção, de quinze dias a seis meses, e multa.
O que se objetiva fincar especificamente é garantir o prestígio e a dignidade da máquina pública, garantindo a legitimidade dos atos expedidos pelos agentes públicos. O bem jurídico protegido é a administração pública, mais especificamente sua moralidade e probidade administrativa, tutela-se de fato a probidade de função pública, sua reputação, bem como a integridade de seus funcionários[14].
O sujeito ativo do crime pode ser qualquer indivíduo, uma vez que se trata de crime comum. É imprescindível destacar que, neste caso, o sujeito ativo pode ser até mesmo um funcionário público, no entanto, para que isso ocorra, o sujeito não pode se encontrar exercendo sua função de agente estatal. Em contrapartida, o sujeito passivo é o Estado, assim como no crime de resistência, este também tem amplitude, posto que inclui todos os entes federados. Em segundo plano, também se pode considerar sujeito passivo o funcionário que detém a autoria da ordem descumprida.
Com este dispositivo, objetiva-se punir o indivíduo que descumpre ordem legal vinda de um funcionário público. Para uma melhor caracterização do crime é necessário observar que a punição deve adequar-se somente àquele que descumpriu ordem, logo, a negação de atender a um mero pedido não deve ser considerada desobediência. No que diz respeito às condutas que podem ou não ser entendidas como desobediência, César Roberto Bitencourt faz importantes considerações:
A conduta incriminada consiste em desobedecer ordem legal de funcionário público, que significa descumprir, desobedecer, desatender dita ordem. É necessário que se trate de ordem, e não de mero pedido ou solicitação, e que essa ordem dirija-se expressamente a quem tenha o dever jurídico de obedecê-la; deve, outrossim, a ordem revestir-se de legalidade formal e substancial. Ademais, “o expedidor ou executor da ordem há de ser funcionário público, mas este, na espécie, entende-se aquele que o é no sentido estrito do direito administrativo”, como pontificava Nélson Hungria 3. Em outras palavras, a ordem deve emanar de funcionário competente para emiti-la; não sendo funcionário competente, não se poderá falar em crime, por carecer de legalidade em seu aspecto formal[15].
Este crime tem como elemento subjetivo o dolo. Logo, o ato de desobedecer deve ser consciente e intencional. Atenta-se para os casos em que o agente atua na dúvida, a desobediência deve ser caracterizada como dolo eventual, que é satisfatória para a tipificação subjetiva[16]. Não existe previsão da modalidade culposa do crime.
Quanto à consumação, ocorre somente com a efetiva ação ou omissão do sujeito ativo. Porém, ao tratar da modalidade omissiva, o crime só consuma-se em momento posterior ao decurso do prazo para o cumprimento da ordem, ou, no exato momento de sua expiração[17]. Somente admite-se a tentativa na forma comissiva.
De acordo com o autor César Roberto Bitencourt, a classificação da desobediência é crime formal, uma vez que não é necessário resultado naturalístico; comum, porque não determina uma qualidade ou uma condição específica do indivíduo; de forma livre, porque pode ser praticado por qualquer meio ou forma; instantâneo; unissubjetivo, pois, pode ser praticado por somente um agente; plurissubsistente, por ser praticado com mais de um ato.
No que diz respeito à pena e ação penal do crime de desobediência, afirma-se que a aplicação de pena é cumulativa e o agente ativo poderá ficar detido por um período de quinze dias a seis meses, acrescida na pena o pagamento de multa. A ação penal do crime é pública incondicionada.
2.3 Desacato
No crime de desacato o bem jurídico tutelado vem a ser a Administração Pública. Neste dispositivo, tutela-se, especificamente, a moralidade e a probidade administrativa. Dessa forma, o tipo penal protege a autoridade e o prestígio da função pública. Tem o objetivo de proteger e manter a respeitabilidade do Estado e sua força, assim como a integridade de seus funcionários[18]. Ressalta-se que o interesse de tutela não se direciona, em essência, para o funcionário, mas sim para a função que este cumpre, ou seja, é prestigiada a função pública. Conforme prevê o artigo 331, código penal:
Art. 331 – Desacatar funcionário público no exercício da função ou em razão dela:
Pena – detenção, de seis meses a dois anos, ou multa.
No que tange aos sujeitos, considera-se sujeito ativo deste crime qualquer indivíduo que, mediante violência ou ameaça, dificulte a prática de um ato legal. Por outro lado, o sujeito passivo vem a ser o Estado em sentido amplo, isto é, todos os entes federativos (União, Estado, Distrito Federal e Municípios). A conduta que tipifica o crime de desacato consiste no ato de opor-se à execução de ato legal, mediante ou a ameaça feita ao funcionário competente para executá-lo ou ao sujeito que auxilia o funcionário[19].
O crime é consumado no momento em que ocorre a efetiva oposição à prática da atividade legal exercida por agente do Estado, no momento e no lugar em que pratica a violência ou ameaça. A tentativa é, teoricamente, admissível, isso porque o ato de resistir pode ser objeto de fracionamento[20].
O desacato é classificado como crime comum, formal, de forma livre, instantâneo, unissubjetivo (uma vez que pode ser praticado por apenas um agente, sendo desnecessário concurso de pessoas), plurissubsistente (em regra, pode ser praticado com mais de um ato).
O autor César Roberto Bitencourt distingue o concurso de crimes do sistema de aplicação de penas quando afirma que o primeiro relaciona-se à teoria da pena e o segundo, à teoria do crime e, por esse mesmo motivo, a confusão é injustificável. O autor ainda adverte sobre a possibilidade de haver pena cumulativa no seguinte trecho de sua obra:
Quando da violência praticada no ato de resistir resultarem lesões corporais ou morte, haverá a aplicação cumulativa das penas correspondentes à resistência e as decorrentes de dita violência (lesões corporais ou homicídio). Somente nessas hipóteses haverá aplicação cumulativa de penas. O fato de determinar-se a aplicação cumulativa de penas não significa que se esteja reconhecendo aquela espécie de concurso, mas apenas que se adota o sistema do cúmulo material de penas, que é outra coisa. Com efeito, o que caracteriza o concurso material de crimes não é a soma ou cumulação de penas, como prevê o dispositivo em exame, mas a pluralidade de condutas, pois no concurso formal impróprio, isto é, naquele cuja conduta única produz dois ou mais crimes, resultantes de desígnios autônomos, as penas também são aplicadas cumulativamente.[21]
No que diz respeito à pena e ação penal, as penas aplicadas são de detenção, de dois meses a dois anos, e multa. Já para a forma qualificada, aplica-se pena de reclusão, de um a três anos. Em qualquer dos casos, a lei prevê o cúmulo material da aplicação das penas do crime de resistência e daquele que a violência produzir, seja homicídio ou lesão corporal praticados pelo sujeito ativo. A contravenção de vias de fato fica, naturalmente, absorvida. A ação penal, assim como os demais crimes praticados contra a Administração Pública, é pública incondicionada.
3 O QUE É ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO?
Vários são os conceitos dados pelos estudiosos ao Estado Democrático de Direito. Contudo, diante da perspectiva visada neste artigo, escolhe-se como mais adequado o conceito dado pelo Ministro Alexandre de Moraes:
O Estado Democrático de Direito, que significa a exigência de reger-se por normas democráticas, com eleições livres, periódicas e pelo povo, bem como o respeito das autoridades públicas aos direitos e garantias fundamentais, proclamado no caput do artigo, adotou, igualmente, no seu parágrafo único, o denominado princípio democrático, ao afirmar que ‘todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição’.[22]
Desse modo, percebe-se que o Estado Democrático de Direito abrange a cidadania, garantindo que cada cidadão possa participar da vida política do País, escolhendo representantes e expondo suas crenças e ideais.
Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos:
[…]
II – a cidadania […]
Além disso, também abrange a necessidade de respeito aos direitos e garantias fundamentais impedindo que as autoridades ajam com abuso e arbitrariedades. E é nesse viés que são garantidos por toda a Constituição amplos direitos que ratificam o Estado Democrático de Direito.
Diante do exposto, entende-se que, sendo o Estado Democrático garantidor dos direitos e garantias fundamentais, é inegável que dentre estes se encontra a liberdade de expressão, exercida no contexto dos movimentos sociais. Logo, o papel do Estado é nada menos que respeitar e zelar pelo exercício desse direito, pois, de acordo com a Constituição Federal de 1988:
Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:
[…]
IV – é livre a manifestação do pensamento, sendo vedado o anonimato;
[…]
IX – é livre a expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente de censura ou licença;
[…]
XVI – todos podem reunir-se pacificamente, sem armas, em locais abertos ao público, independentemente de autorização, desde que não frustrem outra reunião anteriormente convocada para o mesmo local, sendo apenas exigido prévio aviso à autoridade competente;
[…]
Tais incisos do art. 5º são alguns demonstrativos da garantia constitucional ao direito à liberdade de expressão reunido à liberdade de reunião. Com isso, abordaremos o próximo ponto que trata da Liberdade de Expressão.
3.1 Liberdade De Expressão
Cabe aqui, para início de discussão, uma citação do ex-ministro Joaquim Barbosa, presente na obra de comemoração dos 25 anos da Constituição Federal “A Constituição de 1988 na Visão dos Ministros do Supremo Tribunal Federal”:
Como conjunto de atividades e sensações inerentes ao intelecto humano, o pensamento pode ser abordado de diversas formas pelo Direito. Quando confinado à vida interior do indivíduo, sem qualquer exteriorização, escapa completamente ao Direito e a qualquer tipo de regulação social. Traduz nesse estágio uma simples faculdade do espírito humano e é, por esta razão, incontrolável. Porém, uma vez exteriorizado, submete-se aos influxos característicos da convivência social: pode agradar a alguns e desagradar a outros, e provocar uma variada gama de consequências. No plano jurídico, a exteriorização de pensamento assume especial relevância, pois é precisamente a partir do momento em que deixa os recônditos intimistas do indivíduo que o ato de pensar passa a gozar da elevada proteção que os ordenamentos jurídicos dos países democráticos conferem aos direitos fundamentais. De traço característico do ser humano transforma-se em direito fundamental do cidadão.[23]
É nessa perspectiva que podemos encontrar a grande polêmica da liberdade de expressão, da manifestação do pensamento, pois, bem como menciona Joaquim Barbosa, no momento em que o indivíduo expõe o que se encontra no seu âmago gera consequências, de forma que agrada a uns e desagrada a outros.
Imaginemos, portanto, o que foi dito, só que de modo que saia do âmbito individual, ou seja, da expressão de um único indivíduo, para o que se insere em uma ampla escala, isto é, da reunião de diversos indivíduos expressando seus pensamentos.
O que se tem, dessa forma, são grandes e maximizados conflitos de opiniões. Grandes grupos de pessoas saem às ruas para manifestarem suas ideologias, pretensões, ambições, buscando formas de instigar o Poder Estatal chamando a atenção para problemas sociais, econômicos, políticos.
Ocorre que tais atos irão agradar a uns e desagradar a outros. Entretanto, o fato de não ser agradável a todos não deve ser empecilho para as manifestações sociais, pois, como já dito anteriormente, o Estado Democrático de Direito garante a cada cidadão o direito de participar da vida política, de votar e outorgar poderes aos representantes além de garantir os direitos e garantias fundamentais.
Até agora, tem-se falado de agradar ou desagradar indivíduos. Mas e o Estado? Entende-se que este não pode, de acordo com a convicção dominante no poder, se posicionar de maneira a coibir manifestações sociais dependendo do viés ideológico, uma vez que seu papel é garantir que ocorra plenamente o direito de expressão.
Entretanto, temos observado uma crescente tendência do aparato estatal de repreender manifestações sociais e, até mesmo, criminalizá-las, sendo elas não agradáveis a seus interesses, como bem observa Ilse Gomes Silva, doutora em Ciências Sociais, em seu artigo “Democracia E Criminalização Dos Movimentos Sociais No Brasil: as manifestações de junho de 2013”:
Em que pese as novidades e os limites desses movimentos, um ponto que merece destaque foi a reação violenta do Estado burguês diante das mobilizações. De norte a sul do planeta os Estados reagiram de modo excessivamente violento para uma democracia burguesa e deixaram claro que não tolerariam qualquer questionamento à política econômica, mesmo que isso custasse o respeito a um dos principais pilares da democracia liberal, a liberdade de expressão.[24]
É assim que nos surge o questionamento, diante desses fatos, se o Estado, diante de sua insatisfação com a exteriorização de ideais que contraponham seus interesses, através das manifestações sociais, não estaria agindo com abuso de poder, violando direitos fundamentais.
Nota-se que, a partir dos conceitos de desacato, desobediência e resistência, anteriormente expostos, há uma carência de clareza, que abre ampla margem para atuações abusivas dos entes públicos perante os movimentos sociais. Há uma linha muito tênue, nesse caso, do que seria conservar a ordem, proteger a Administração Pública de atuações excessivas das manifestações sociais e do momento em que há violação dos direitos à liberdade de expressão e cidadania.
No atual cenário político, em que há constante tensão quanto a manifestação de pensamentos contrários à ideologia política dominante, essa linha fica cada vez mais estreita e deixa a sociedade em permanente estado de alerta.
3.2 Exigir, Opor, e Participar
É nesse contexto que falamos do direito de ser cidadão e de ser permitido ser cidadão. Não se pode admitir que a sociedade seja cerceada de participar daquilo que é seu, pois não haveria sentido em nos denominarmos como sendo uma forma de governo republicana, em que República, em sua etimologia, significa “coisa do povo”.
O cidadão tem direito sim de exigir as prestações do Estado, de se opor àquilo que não lhe representa e não lhe satisfaz e, consequentemente, ter uma voz ativa, tendo a possibilidade de alterar o status quo.
E isso, ou seja, a mudança do status quo, em sua grande parte ocorre através da reunião de vários cidadãos, reunidos em prol de causas comuns, juntando vozes e fazendo com que sejam ouvidas. É dever do Estado preservar as garantias constitucionais e não violar os direitos do seu povo. Este deve estar aberto a críticas e sugestões, uma vez que não vivemos em um Estado Totalitário que não admite contestações. É só assim que se preenche o verdadeiro sentido do que o Estado Democrático de Direito, da liberdade de expressão, da cidadania e de tantos outros direitos.
3.3 A Limitação dos Direitos
Nenhuma ordem jurídica protege os direitos fundamentais de maneira ilimitada, pois, estes não são absolutos[25]. Por isso, é possível observar, no plano fático, colisões ou conflitos entre valores constitucionais, seja entre direitos individuais, ou direitos individuais e bens jurídicos da comunidade, e entre bens jurídicos coletivos[26].
Dessa forma, diante da ocorrência de colisão de um direito fundamental com outros direitos fundamentais ou bens jurídico-constitucionais, é legitimo a estabelecimentos de restrições, ainda que não expressamente autorizado pela Constituição[27]. Nesse sentido afirma Ingo Sarlet:
Em outras palavras, direitos fundamentais formalmente ilimitados (isto é, desprovidos de reserva) podem ser restringidos caso isso se revele imprescindível para a garantia de outros direitos constitucionais, de tal sorte que há mesmo quem tenha chegado a sustentar a existência de uma verdadeira ‘reserva geral imanente de ponderação’.[28]
Ademais, diante da ausência de limitação expressa, a eventual limitação deve ser de caráter excepcional, de forma que haja a realização de cada um dos valores jurídicos. Assim decidiu a Corte Constitucional Alemã:
[…] tendo em vista a unidade da Constituição e a defesa da ordem global de valores por ela pretendida, a colisão entre direitos individuais de terceiros e outros valores jurídicos de hierarquia constitucional pode legitimar, em casos excepcionais, a imposição de limitações a direitos individuais não submetidos explicitamente a restrição legal expressa.[29]
Muitas vezes, a realização de um direito se faz em detrimento de outro; os valores tutelados constitucionalmente estão sujeitos, portanto, a ponderações em face de situações concretas de colisão[30]. O questionamento que se abre nesse caso, é até que ponto se pode mitigar um direito em favor de outro, tendo em vista a realização de ambos.
Considerando que não há uma hierarquia abstrata dos valores constitucionais, de forma a sacrificar um bem jurídico em favor de outro, o autor Ingo Sarlet declara que:
Com efeito, a solução amplamente preconizada afirma a necessidade de se respeitar a proteção constitucional dos diferentes direitos no quadro da unidade da Constituição, buscando harmonizar preceitos que apontam para resultados diferentes, muitas vezes contraditórios. [31]
No contexto brasileiro, é possível observar a existência de três tipos penais: resistência, desobediência e desacato; direta ou indiretamente ligados a mitigação da liberdade de expressão e direito de cidadania em determinados casos concretos. Essa limitação se faz em nome da proteção a Administração Pública, sua moralidade e probidade.
Especialmente, no âmbito dos movimentos sociais realizados em 2013 e 2014, a aplicação destes preceitos penais se mostrou abrangente em face dos manifestantes, principalmente no que concerne ao crime de desacato[32].
Nos crimes de resistência e desobediência é mais evidente o limite entre a legitima atuação do agente público e o abuso de seu direito, uma vez que a resistência e obediência apenas se configura diante de ato legal ou ordem legal. Nestes casos, o abuso de direito se mostra presente na ilegalidade formal do ato ou ordem, isto é, quanto à forma ou meio de sua execução; e na ilegalidade material, o fundamento legal da concreção do ato ou ordem[33]. Diante dessas ilegalidades, seja formal ou material é legítima a resistência, a oposição:
A obediência passiva à ilegalidade não se admite. O súdito é um homem, não um escravo. Dispõe do direito de revoltar-se contra o ato indevido e do dever de obedecer à ordem legal. A oposição, ainda que violenta, ao ato ilícito da autoridade, é válida, é legítima, secundum jus[34].
Durante as manifestações sociais de 2013, houve decretação de prisões fora dos casos determinados em lei, justificado pela necessidade averiguações, ou sem que houvesse fortes indícios, cerca de 2.608 pessoas foram detidas, com maior concentração nos meses de junho e outubro[35]; assim como o uso de algemas de forma desproporcional, conduções violentas, uso de armas letais e abuso das armas menos letais[36].
Por outro lado, no crime de desacato este limite é mais tênue, pois, apresenta um elemento subjetivo voltado a desconsideração, a depreciação da função pública[37].
Segundo César Roberto Bittencourt, a doutrina liberal reconhece ao cidadão o direito de se opor a ato abusivo, arbitrário ou negligente. Este direito tem como fundamento o direito à dignidade pessoal de cidadania, que somente pode ser afastado nos casos e limites previstos em lei[38]. Assim, o Estado Democrático de Direito atesta ao cidadão o direito de se opor, de criticar livremente os atos praticados pelo Estado, personificado por seus funcionários públicos[39].
Conforme relatório elaborado pela ONG artigo 19:
[…] centenas de pessoas foram hostilizadas por policiais e, ao rebaterem as ofensas, foram detidas por desacato. Houve casos em que pessoas foram obrigadas a ficar imóveis em determinada posição física por grande tempo, pois policiais ameaçaram de enquadrá-las no crime de desacato caso desobedecessem à ordem. Além disso, outras pessoas foram detidas e indiciadas por desacato sem nem ao menos ter dirigido a palavra a um policial. […][40]
O que se observa, portanto, é a utilização do aparato legislativo para criminalizar a atuação legítima de movimentos sociais, em nome de uma proteção falaciosa do prestígio e probidade da Administração Pública.
4 MOVIMENTOS SOCIAIS
Os movimentos sociais detém importante relação com os tipos penais anteriormente citados: desobediência, resistência e desacato. A análise desses movimentos perpassa justamente pela questão sobre até que ponto se exerce o direito constitucional à liberdade de expressão e até onde incide os crimes penais presentes nos arts. 329, 330 e 331 do Código Penal.
Nesse sentido, essencial é esclarecer, primeiramente, o conceito de Movimentos Sociais, aqui adotada a visão do sociólogo francês Alan Touraine.[41] Segundo esse autor, os movimentos sociais são espécies de ações que acarretam em progresso social, tendo como característica, a durabilidade, a grande adesão de pessoas, e um sentimento de insatisfação coletiva. Destaca-se, portanto, três princípios fundamentais: o princípio de identidade, que se refere às pessoas envolvidas; o princípio de oposição, relativo ao adversário em comum, e o princípio de totalidade, em decorrência do objetivo pelo qual se luta. Todos esses princípios unidos auxiliam na formação de uma “consciência coletiva”, possibilitando assim um movimento mais forte e resistente.[42]
4.1 Movimentos Sociais de 2013
Dentre os movimentos mais significativos e atuais no Brasil, têm-se as manifestações de 2013, também conhecidas, como “Jornadas de Junho”, nome dado em comparação às revoltas ocorridas na França, no contexto da Revolução de 1948.[43]
Essas manifestações foram reportadas em inúmeros veículos de comunicação, tendo destaque até mesmo internacionalmente, e foram consideradas, pelos meios midiáticos, as maiores manifestações brasileiras desde o impeachment de Fernando Collor, em 1992.[44]
As “Jornadas de Junho” se iniciaram em 6 de Junho de 2013, em São Paulo, em decorrência do aumento da passagem de ônibus, estimuladas pelo MPL (Movimento Passe Livre)[45]. Com a aderência de um número razoável de pessoas, as manifestações aumentaram ao longo dos dias, devido à divulgação intensa dos movimentos nas redes sociais, assim como pela própria postura violenta utilizada pelos policiais presentes para coibir os protestos, gerando mais revolta na população, como afirma Juana Keweitel, diretora-executiva da ONG Conectas Direitos Humanos:
Do ponto de vista dos direitos humanos, as Jornadas de Junho de 2013 podem ser lembradas como marco na disputa pelas ruas como espaço de exercício da política e da cidadania. Não tanto pela adesão massiva ou pela estratégia de reivindicação – que não são propriamente novas para o?s movimento?s? socia?is -, mas pela reação violenta ?das autoridades e das forças de segurança.[46]
A partir de então, os movimentos se espalharam pelo país, principalmente nas capitais do Sul e Sudeste, chegando ao Nordeste (incluindo São Luís), contabilizando mais de um milhão de pessoas no dia 20/06, segundo dados do Portal G1[47], porém não mais restritos à questão do aumento da tarifa de ônibus. Questionava-se a política brasileira como um todo. Dentre as reivindicações, destacaram-se como pautas primárias: a corrupção, questões trabalhistas, a PEC nº 37[48], serviços públicos de má qualidade, e gastos em eventos esportivos internacionais, referentes à Copa do Mundo, segundo Ilse Scherer-Warren, em seu artigo “Manifestações de rua no Brasil 2013: encontros e desencontros na política”.[49]
Os protestos que consistiam em marchas pelas principais avenidas das capitais, chegando até mesmo à ocupação da área externa do Congresso Nacional em Brasília, além das táticas dos famosos Black Bloc[50] trouxeram um número significativo de adeptos das mais diversas ideologias, gênero, idade e classe social.
Pode-se dizer que as manifestações de 2013 foram marcadas, portanto, por um enorme e heterogêneo número de pessoas insatisfeitas com a política atual e ao mesmo tempo dispostas a participarem das decisões do Estado de forma ativa e não só através do voto, como infere o cientista social Humberto Laudares:
O maior legado das manifestações de 2013 foi deixar claro que o cidadão, empunhado de seu telefone, pode se organizar e fazer política. Nesse sentido, 2013 foi um grande grito de insatisfação com a representação política, com as mais diferentes mensagens e sotaques[51].
Em contrapartida também se destacou, negativamente, a atuação policial, que na maioria das vezes, usou de meios violentos para reprimir os manifestantes, acarretando em abundante número de feridos, prisões injustas, sem mencionar o número de mortos, sem nem ao menos terem sido responsabilizados, como expõe a diretora executiva da ONG Conectas Direitos Humanos, Juana Kweitel:
A repressão daquela noite [13 de junho de 2013] se repetiu muitas vezes desde então, consolidando uma visão bastante problemática de como o Estado deve lidar com ?os protestos sociais. Essa tendência foi ?consolidada, em grande medida, com a conivência do sistema de Justiça, em especial do Ministério Público, incapaz de exercer seu dever legal de averiguar abusos da polícia. ?Até hoje, nenhum agente ou autoridade foi responsabilizado pela violência daquela noite.[52]
Os protestos, contudo, não foram encarados de forma positiva por toda a sociedade. Alguns setores visualizaram certos atos dentro das manifestações como excessivos, a exemplo dos Black Blocs, conhecidos por táticas que chocam o público, como a depredação de patrimônio público, pichações, e por isso, vistos pela grande maioria como vândalos ou anarquistas.[53]
Na obra “Mascarados, a verdadeira história dos adeptos da tática Black Bloc” são colocados aspectos que não são identificados de primeira quanto à prática dos Black Blocs. Em tese, existem justificativas por trás de seus atos. As táticas de desobediência civil e violência são vistas como formas de resistência legítimas para eles. Fazendo parte dessa espécie de “organização” em que não há lideranças, apenas ideias em comuns, os integrantes conseguem “chamar a atenção” das pessoas e do Estado, sendo, na verdade, indivíduos completamente pacíficos quando sem máscaras, são extremamente racionais e envolvidos em suas causas, não possuem filiações partidárias, mas também não se consideram anarquistas, em sua maior parte. Trata-se de pessoas que pretendem mudar o status quo, que desejam serem ouvidas e expressar seu descontentamento com o atual sistema político assim como os demais participantes de manifestações sociais.[54]
O Estado, por sua vez, não enxergou as manifestações de 2013 como uma forma de liberdade de expressão quanto aos governos atuais, mas sim como atentado à ordem pública e desrespeito às instituições. Chegou-se a cogitar até mesmo a possibilidade de aplicação da Lei de Segurança Nacional, configurando os manifestantes como terroristas ou a possibilidade de se enquadrar os movimentos como um Estado de exceção, sustentou-se, por fim, que deveria haver leis mais rígidas para coibir as manifestações de rua.
4.2 Projetos de Lei 8.125/2014 e 2.769/15
Como consequência direta das manifestações de 2013, surgiu o Projeto de Lei 8.125, em 2014, que propõe a alteração do Código Penal atual, a fim de criar os tipos penais específicos de resistência, desacato e desobediência à autoridade policial. É possível perceber que esse projeto, contudo, abre margem para o crescimento de arbitrariedades cometidas por policiais em nome da defesa da ordem pública, como ocorreu nas “Jornadas de Junho”, quando os policiais agiram com abuso de autoridade e violência. O projeto prioriza, portanto, o Estado e eventualmente poderia vir a mitigar o direito à liberdade de expressão.
Adversamente, em 2015, foi proposto o Projeto de Lei 2.769, que visa à revogação do crime de desacato no Código Penal, além da Lei 7.170, de 14 de setembro de 1983, que “Define os crimes contra a segurança nacional, a ordem política e social, estabelece seu processo e julgamento e dá outras providências;”. Nesse sentido, percebe-se que há uma preocupação em limitar os poderes do Estado e em contrapartida, garantir indiretamente a liberdade do indivíduo de se expressar sem correr o risco de ser punido.
Denota-se, portanto, que se trata de uma questão fundamentalmente complexa, pois existe uma linha tênue entre a liberdade de expressão e a ofensa a agentes públicos, não se esgotando tão cedo essa discussão no âmbito legislativo.
4.3 O ESTADO EM DETRIMENTO DO CIDADÃO
Luigi Ferrajoli, em sua obra Direito e Razão, define a função utilitária e garantista do direito penal e do modelo garantista do direito penal mínimo, qual seja, a minimização da violência, seja ela privada ou pública[55]. Em análise à cronologia da jornada de 2013, pode-se confirmar a ideia de Ferrajoli de que a soberania estatal representa uma fonte permanente de perigo, como transcreve o autor, e que deve ser negada em nome do valor normativo da soberania popular[56]. Isto por que, em observância ao estudo de Texeira[57] em sua tese de doutorado da PUC – Rio, em 6 de junho de 2013, no início das manifestações, já houve resposta do Estado por meio da Tropa de Choque da Polícia Militar, em repressão aos manifestantes, com presença de 30 policiais do Batalhão de Choque no Rio de Janeiro[58]. O segundo dia de manifestação, duramente reprimido, de acordo com Texeira[59], registrou quinze manifestantes presos, enquanto que no dia 11 de junho, houve 20 prisões durante as manifestações. Na noite do dia 13 de junho, são registradas mais de 200 detidos, com registro de violência policial, com a criação de um site para registro das denúncias. Nos dias seguintes, há mais registro de repressão dos manifestantes pelos policiais, havendo início de negociação do Governo de São Paulo com os representantes da manifestação em 18 de junho. Ainda, como descrição do ocorrido durante as manifestações, sobre o dia 20 de junho, Texeira dispõe que:
No Rio, o maior de todos os protestos reúne cerca de 300 mil manifestantes (segundo as estimativas oficiais) em marcha na avenida Presidente Vargas até o prédio da Prefeitura. Pacífico no início, o protesto haveria de se transformar numa noite de terror. A polícia militar carioca lançou bombas de gás e de efeito moral muito além da linha de confronto, atingindo a imensa maioria de manifestantes pacíficos, que então se puseram a correr de volta pela Presidente Vargas, apenas para descobrir que não tinham saída, pois as transversais e as saídas de metrô estavam fechadas. Um cerco, literalmente: pessoas foram perseguidas e brutalizadas por batalhões de policiais pelas ruas do Centro, Lapa, Glória e Laranjeiras. Estudantes ficaram presos dentro da Faculdade Nacional de Direito; pelas redes sociais, pedem auxílio à OAB. (TEXEIRA, 2014, pág. 226)
Assim, em paralelo feito por Ferrajoli à Hobbes, o homem em “estado de natureza”, formulou a noção, concebida contemporaneamente, de Estado, para a manutenção do convívio harmônico dos interesses individuais. No entanto, como observado no contexto do movimento ocorrido em junho de 2013, a repressão do Estado à manifestação popular reflete o status de minimização da violência através do poder policial, que detém a proteção de força policial do Estado para agir com desmedido poder contra a população que contrariar os interesses deste último. É ainda, neste aspecto, destacável a necessidade, explicitada pelos manifestantes, do uso da violência para atrair a atenção do Poder Público para as demandas em pauta nas manifestações.
Deste modo, em entrevista à BBC BRASIL, a socióloga Ana Carolina Camargo, afirma que houve erros dos repressores do ponto de vista das autoridades, sendo estes referentes à dosagem da violência utilizada e a estratégia de repressão adotada.
Ainda em uma análise da atuação do Estado em relação às manifestações, sem prejuízo dos registros de violência veiculados na mídia e registrados pelos participantes, o Estado do Rio de Janeiro dispôs a Lei nº 6.528 de Setembro de 2013, determinando em seu art. 1º que o direito constitucional à reunião pública para manifestação de pensamento será protegido pelo Estado. No entanto, este direito constitucional é passível de limitações, na medida em que o art. 4º da referida Lei assegura a possibilidade de intervenção das Polícias nas reuniões públicas, com a prerrogativa de garantia de cumprimento dos requisitos da mesma lei para o exercício do mencionado direito constitucional. Assim, retomando o disposto sobre Ferrajoli, o Estado atua em prol da minimização da violência, sendo, de acordo com o art. 4º, II, III e IV, necessária a intervenção policial para defesa da pessoa humana, do patrimônio público e privado.
Em referência a possibilidade de limitação das liberdades pelo Estado, em defesa deste último e da Administração Pública, a Repercussão Geral que proibiu o uso de máscaras em manifestações[60] há a declaração quanto à possibilidade de haver o caráter excessivo e desproporcional da lei anteriormente citada:
Sustenta-se, em síntese, que a lei limita a liberdade de manifestação do pensamento (art. 5º, IV, da CRFB/1988), bem como introduz restrições ao direito de reunião não previstas no art. 23 da Constituição Estadual, que reproduz o art. 5º, XVI, da CF/1988. Segundo a inicial, as únicas restrições possíveis ao direito de reunião se referem a: (i) finalidade pacífica; (ii) vedação do uso de armas; (iii) local aberto ao público; (iv) não frustração de reunião anteriormente convocada para o mesmo local; e (v) prévio aviso à autoridade competente. Fora isso, não seria permitido instituir novas limitações, a não ser no estado de defesa ou sítio (CRFB/1988, arts. 136, § 1º, I, a, e 139, IV). Também não haveria anonimato quando o manifestante está fisicamente presente na reunião, hipótese em que deve se identificar, uma vez instado pelas autoridades policiais. Proibir o uso de máscaras significaria cercear a liberdade de expressão. Além disso, a lei ainda seria excessiva e desproporcional.
No entanto, foi reconhecida a constitucionalidade da lei em repercussão geral, no ARE 905149, que teve como relator o Min. Roberto Barroso. Assim, há a prevalência da defesa do Estado em detrimento de direitos constitucionais individuais e do exercício da cidadania que são classificados como ameaças à segurança pública.
5 CONCLUSÃO
De forma geral, o desenvolvimento deste trabalho possibilitou o entendimento dos movimentos sociais relacionados aos crimes de resistência, desobediência e desacato abordados nos artigos 329, 330 e 331 do Código Penal Brasileiro. Tais movimentos são motivos de polêmica, uma vez que é perceptível a linha tênue existente entre a liberdade de expressão e os crimes praticados por particular contra a administração em geral.
Em seguida, tratou-se de explicitar importantes considerações a respeito do Estado democrático de direito, bem como seu conceito e finalidade social. Foi possível observar que este Estado objetiva equilibrar os direitos do povo e os deveres do próprio estado, ou seja, a finalidade é justamente garantir que o cidadão possa participar da política do país, inclusive, por meio de manifestos mais ativistas, mas sem esquecer que o Estado detém forças e precisa garantir o prestigio e moralidade da máquina pública.
Outro importante fato supracitado neste artigo foram os movimentos dos black blocs. Denomina-se assim a técnica de ação direta praticada por grupos de pessoas mascaradas com o intuito de atingir o sistema. Questiona-se se de fato essas manifestações são legítimas, levando em consideração a deterioração de bens públicos originada da manifestação desses mesmos grupos.
Em consonância com o que o trabalho aborda, foi cabível trazer para exposição a onda de manifestos ocorrida no ano de 2013 no país. A partir disso, pode-se observar como a complexidade se estende nos casos em que há de se defender a liberdade de expressão e ao mesmo tempo a integridade do Estado, bem como seus bens patrimoniais que são comuns a todos os cidadãos.
Em síntese, pode-se afirmar que o que ocorre é o uso da legislação como um aparato para legitimar algumas ações arbitrárias por parte do Estado e facilitar a criminalização de manifestações legais, um direito de todo cidadão brasileiro, um direito que deveria ter mais mecanismos de defesa do que de ataque que parte do próprio Estado.
REFERÊNCIAS
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[1] Discente do curso de Direito da UEMA.
[2] Discente do curso de Direito da UEMA.
[3] Discente do curso de Direito da UEMA.
[4] Discente do curso de Direito da UEMA.
[5] Discente do curso de Direito da UEMA.
[6] Discente do curso de Direito da UEMA.
[7] BITTENCOURT, César Roberto. Tratado de direito penal: parte especial. vol. 5. São Paulo: Saraiva, 2012. p. 485-491.
[8] Idem. p. 592-594,
[9] Idem. 484.
[10] Idem. 596-597.
[11] Ibidem.
[12] Ibidem.
[13] FRAGOSO, Heleno Cláudio. Lições de direito penal. vol. 4. São Paulo: Atlas, 2006, p. 457.
[14] BITTENCOURT, César Roberto. Tratado de direito penal: parte especial. vol. 5. São Paulo: Saraiva, 2012. p. 507-508.
[15] Idem. p. 509.
[16] Idem. p. 514.
[17] Idem. 515.
[18]Magalhães Noronha. Direito penal. p. 317
[19]Nélson Hungria. Comentários ao Código Penal. p. 424.
[20] BITTENCOURT, César Roberto. Tratado de direito penal: parte especial. vol. 5. São Paulo: Saraiva, 2012. p. 545-546.
[21] Idem. p. 501.
[22] MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional. 13. ed. São Paulo: Atlas, 2003. p. 41.
[23] BRASIL, 2013, p.11.
[24]GOMES SILVA, 2015, p. 396.
[25] SARLET, Ingo. Curso de direito constitucional. ed. 7º. São Paulo: Saraiva Educação, 2018. p. 399.
[26] MENDES, Gilmar Ferreira. Curso de direito constitucional. ed. 12º. São Paulo: Saraiva, 2017. p. 210.
[27] MENDES, Gilmar Ferreira. Hermenêutica constitucional e direitos fundamentais. p. 240-241.
[28] SARLET, Ingo. Curso de direito constitucional. ed. 7º. São Paulo: Saraiva Educação, 2018. p. 404.
[29] MENDES, Gilmar Ferreira. Curso de direito constitucional. ed. 12º. São Paulo: Saraiva, 2017. p. 211.
[30] ALEXY, Robert. Colisão de direitos fundamentais e realização de direitos fundamentais no Estado de direito democrático. Revista de Direito Administrativo 217/67- 69.
[31] Idem, p. 405.
[32] Disponível em: <http://artigo19.org/blog/2014/06/23/relatorio-protestos-no-brasil-2013/>. P. 92-142.
[33] PRADO, Luiz Regis. Curso de Direito Penal. p. 519.
[34] COSTA, Paulo José da. Comentários ao Código Penal. p. 503.
[35] Disponível em: <http://artigo19.org/blog/2014/06/23/relatorio-protestos-no-brasil-2013/>. p. 117.
[36] Idem. p. 26-27.
[37] BITTENCOURT, César Roberto. Tratado de direito penal: parte especial. vol. 5. São Paulo: Saraiva, 2012. p. 525
[38] Idem. p. 538.
[39] Disponível em: <http://bibliotecadigital.fgv.br/ojs/index.php/rda/article/%20viewFile/45920/44126>.
[40] Idem. p. 126.
[41] Sociólogo francês, nascido em 1925, conhecido por suas obras sobre Movimento Sociais.
[42] Disponível em:< https://www.ufsj.edu.br/portal2-repositorio/File/revistaestudosfilosoficos/art13_rev6.pdf>.
[43] Disponível em: <https://vestibular.uol.com.br/resumo-das-disciplinas/atualidades/manifestacoes-de-junho-de-2013-qual-e-o-saldo-dos-protestos-um-ano-depois.htm>.
[44] Disponível em: <https://www.terra.com.br/noticias/brasil/legado-dos-protestos-de-junho-de-2013-sobrevive-nas-greves,efb9978c85776410VgnVCM4000009bcceb0aRCRD.html>.
[45] Movimento social autônomo, horizontal e independente, com o objetivo de lutar por transporte público gratuito e fora da iniciativa privada. Disponível em: https://www.mpl.org.br/.
[46] Disponível em: <https://www.nexojornal.com.br/expresso/2017/06/17/O-que-foram-afinal-as-Jornadas-de-Junho-de-2013.-E-no-que-elas-deram>.
[47]Disponível em: <http://g1.globo.com/brasil/noticia/2013/06/protestos-pelo-pais-tem-125-milhao-de-pessoas-um-morto-e-confrontos.html>.
[48]Acrescenta o § 10 ao art. 144 da Constituição Federal para definir a competência para a investigação criminal pelas polícias federal e civis dos Estados e do Distrito Federal. Disponível em: <https://www.camara.gov.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=507965>.
[49] Disponível em: <http://www.scielo.br/pdf/ccrh/v27n71/a12v27n71.pdf>.
[50]Ativismo de origem alemã, que se baseia no questionamento do status quo. Leva esse nome pelo fato da utilização de máscaras negras pelos integrantes, dificultando sua identificação. Disponível em: <https://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2013/07/1309858-entenda-o-que-e-o-ativismo-black-bloc-presente-nas-manifestacoes.shtml>.
[51] Disponível em: < https://www.nexojornal.com.br/expresso/2017/06/17/O-que-foram-afinal-as-Jornadas-de-Junho-de-2013.-E-no-que-elas-deram>.
[52]Disponível em: < https://www.nexojornal.com.br/expresso/2017/06/17/O-que-foram-afinal-as-Jornadas-de-Junho-de-2013.-E-no-que-elas-deram>.
[53]SOLANO, ESTHER; MANSO, Bruno Paes; NOVAES, William. Mascarados, a verdadeira história dos adeptos da tática Black Bloc . São Paulo: Geração Editorial, 2014.
[54]Ibidem.
[55] FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: teoria do garantismo penal. São Paulo: Editora Revista dos tribunais, 2002. Pág 745
[56] ______Pág 751
[57] ENGELKE, A. Internet e Democracia: Cooperação, Conflito e o Novo Ativismo Político. 2014, 274p. – Tese – Ciências Sociais – Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. Pág. 203
[58]PROTESTO CONTRA AUMENTO DE PASSAGENS FECHA AV. PRESIDENTE VARGAS E TEM QUATRO PESSOAS PRESAS. O GLOBO. Disponível em: < https://oglobo.globo.com/rio/protesto-contra-aumento-de-passagens-fecha-av-presidente-vargas-tem-quatro-pessoas-presas-8616234 >
[59] TEXEIRA, pág. 203.
[60]Ementa: DIREITO CONSTITUCIONAL. RECURSO EXTRAORDINÁRIO. LIBERDADES DE EXPRESSÃO E REUNIÃO. PROIBIÇÃO DE MÁSCARAS EM MANIFESTAÇÕES. SEGURANÇA PÚBLICA. REPERCUSSÃO GERAL. 1. Constitui questão constitucional saber se lei pode ou não proibir o uso de máscaras em manifestações públicas, à luz das liberdades de reunião e de expressão do pensamento, bem como da vedação do anonimato e do dever de segurança pública. 2. Repercussão geral reconhecida. (ARE 905149 RG, Relator(a): Min. ROBERTO BARROSO, julgado em 25/08/2016, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-263 DIVULG 09-12-2016 PUBLIC 12-12-2016 )