Direito Penal

O STF e a irretroatividade da abolitio criminis temporalis do Estatuto do Desarmamento: posição que contraria o entendimento dos demais Tribunais do Brasil

O STF e a irretroatividade da abolitio criminis temporalis do Estatuto do Desarmamento: posição que contraria o entendimento dos demais Tribunais do Brasil

 

 

Valdinei Cordeiro Coimbra*

 

 

Recentemente publiquei artigo de minha autoria neste portal, intitulado de “A Lei nº 11.706, de 19 de junho de 2008 e o crime de posse ilegal de arma de fogo de uso permitido e não registradas – abolitio criminis temporalis e suas sucessivas ocorrências”. O artigo em referência resgata a análise da abolitio criminis temporalis criada pela Lei n. 10.826/2003, cujo posicionamento encontrava-se pacificado nos Tribunais, inclusive no Superior Tribunal de Justiça, no sentido de que a Lei mais nova, no que tange à abolitio criminis temporalis deveria retroagir para abranger os autores do crime de posse ilegal da arma de fogo, senão vejamos:

 

STJ – RECURSO ESPECIAL. PENAL. POSSE DE ARMA DE FOGO. ABOLITIO CRIMINIS TEMPORÁRIA. PREVISÃO NOS ARTS. 30, 31 E 32 DA LEI N.º 10.826/03.

PRINCÍPIO DA RETROATIVIDADE DA LEI MAIS BENÉFICA. APLICAÇÃO AO CRIME DE POSSE ILEGAL DE ARMA COMETIDO NA VIGÊNCIA DA LEI N.º 9.437/97.

1. Diante da literalidade dos artigos relativos ao prazo legal para regularização do registro ou entrega da arma de fogo à Polícia Federal, nos termos do arts. 30, 31 e 32 da Lei 10.826/03, houve uma abolitio criminis temporária, no tocante às condutas delituosas relacionadas à posse de arma de fogo.

2. Com base no art. 5.º, inciso XL, da Constituição Federal e no art. 2.º, do Código Penal, esta abolitio criminis temporária deve retroagir para beneficiar os Réus apenados pelo crime de posse de arma de fogo perpetrado na vigência da Lei n.º 9.437/97.

Precedentes.

3. Recurso conhecido e desprovido.

(REsp 895.093/RS, Rel. Ministra LAURITA VAZ, QUINTA TURMA, julgado em 26.06.2007, DJ 06.08.2007 p. 679)

 

STJ – Penal. Posse ilegal de arma de fogo. Abolitio criminis. Recurso Especial. Art. 1º, caput, da Lei n. 9.437/97. Arts. 30, 31 e 32, do Estatuto do desarmamento. Posse ilegal de arma de fogo. Fato anterior ao início do prazo para regularização da arma – “A Lei n. 10.826/03, em seus arts. 30 a 32, estipulou um prazo para que os possuidores de arma de fogo regularizassem sua situação ou entregassem a arma para a Polícia Federal. Dessa maneira, até que findasse tal prazo, que se iniciou em 23.12.2003 e que teve seu termo final prorrogado até 23.10.2005 (cf. Lei 11.191/2005), ninguém poderia ser processado por possuir arma de fogo. A nova lei, ao menos no que tange aos prazos dos artigos 30 a 32, que a doutrina chama de abolitio criminis temporária ou de vacatio legis indireta ou até mesmo de anistia, deve retroagir, uma vez que mais benéfica para o réu (APn nº 394/RN, Corte Especial, Rel. p/ Acórdão Min. José Delgado, j. 15/03/2006). O período de indiferença penal (lex mitior), desvinculado para os casos ali ocorridos, dado o texto legal, alcança situações anteriores idênticas. A permissão ou oportunização da regularização funcionaria como incentivo e não como uma obrigação ou determinação vinculada. A incriminação (já, agora, com a novatio legis in peius) só vale para os fatos posteriores ao período da ‘suspensão’” ( STJ – 5ª T. – RHC 21.271/DF – rel. Felix Fischer – j. 28.06.2007 – DJU 10.09.2007, p. 245).

 

Ocorre que no dia 12.02.2008, fomos surpreendidos com o posicionamento do Supremo Tribunal Federal (HC nº 90.995/SP), de relatoria do Min. Menzes Direito, entendendo que a abolitio criminis temporalis ou vatio legis indireta, não teria força de retroatividade, não podendo configurar abolitio criminis em relação aos ilícitos cometidos em data anterior, senão vejamos:

 

 

Lei 10.826/2003: Atipicidade Temporária e Posse de Arma de Fogo

 

A Turma indeferiu habeas corpus em que se pretendia o reconhecimento da extinção da punibilidade com fundamento na superveniência de norma penal descriminalizante. No caso, o paciente fora condenado pela prática do crime de posse ilegal de arma de fogo de uso restrito (Lei 9.437/97, art. 10, § 2º), em decorrência do fato de a polícia, em cumprimento a mandado de busca e apreensão, haver encontrado uma pistola em sua residência. A impetração sustentava que durante a vacatio legis do Estatuto do Desarmamento, que revogou a citada Lei 9.437/97, fora criada situação peculiar relativamente à aplicação da norma penal, haja vista que concedido prazo (Lei 10.826/2003, artigos 30 e 32) aos proprietários e possuidores de armas de fogo, de uso permitido ou restrito, para que regularizassem a situação dessas ou efetivassem a sua entrega à autoridade competente, de modo a caracterizar o instituto da abolitio criminis. Entendeu-se que a vacatio legis especial prevista nos artigos 30 e 32 da Lei 10.826/2003 (“Art. 30. Os possuidores e proprietários de armas de fogo não registradas deverão, sob pena de responsabilidade penal, no prazo de 180 dias (cento e oitenta) dias após a publicação desta Lei, solicitar o seu registro apresentando nota fiscal de compra ou a comprovação da origem lícita da posse, pelos meios de prova em direito admitidos. Art. 32. Os possuidores e proprietários de armas de fogo não registradas poderão, no prazo de 180 (cento e oitenta) dias após a publicação desta Lei, entregá-las à Polícia Federal, mediante recibo e, presumindo-se a boa-fé, poderão ser indenizados, nos termos do regulamento desta Lei.”), não obstante tenha tornado atípica a posse ilegal de arma de fogo havida no curso do prazo que assinalou, não subtraiu a ilicitude penal da conduta que já era prevista no art. 10, § 2º, da Lei 9.437/97 e continuou incriminada, com mais rigor, no art. 16 da Lei 10.826/2003. Ausente, assim, estaria o pressuposto fundamental para que se tivesse como caracterizada a abolitio criminis. Ademais, ressaltou-se que o prazo estabelecido nos mencionados dispositivos expressaria o caráter transitório da atipicidade por ele indiretamente criada. No ponto, enfatizou-se que se trataria de norma temporária que não teria força retroativa, não podendo configurar, pois, abolitio criminis em relação aos ilícitos cometidos em data anterior.(informativo nº 494 STF, HC 90995/SP, rel. Min. Menezes Direito, 12.2.2008. (HC-90995)

 

Com isso podemos concluir que nem sempre as decisões do Supremo Tribunal Federal são justas e corretas, pois temos na Constituição Federal no seu art. 5º, inc. XL, que “a lei penal não retroagirá, salvo para beneficiar o réu”, enquanto que no Código Penal, no seu art. 2º, temos que: “Ninguém pode ser punido por fato que lei posterior deixa de considerar crime, cessando em virtude dela a execução e os efeitos penais da sentença condenatória”, e no parágrafo único do art. 2º, “A lei posterior, que de qualquer modo favorecer o agente, aplica-se aos fatos anteriores, ainda que decididos por sentença condenatória transitada em julgado”.

 

Ora é certo que a Lei 9.437/97 foi revogada pela Lei 10.826/03, entretanto, o crime de posse ilegal de arma de fogo não deixou de existir, pois continuou sendo incriminado, com mais rigor, nos arts. 12 (arma de uso permitido) e 16 (arma de uso restrito), da Lei 10.826/2003, não havendo que se falar em abolitio criminis, entretanto o Estatuto trouxe a figura da abolitio criminis temporalis que é um instituto mais benéfico, previsto numa lei penal, ou seja, neste ponto (crime de posse de arma de fogo) a lei é mais benéfica, devendo ser aplicada a regra do parágrafo único do art. 2º do Código Penal, inclusive àqueles que já foram condenados na vigência da Lei 9.437/97 pelo crime de posse de arma de fogo, pois do contrário teríamos a seguinte situação: dois amigos adquiriram arma de fogo para tê-las em casa, com o fim único e exclusivo de segurança, incorrendo no crime de posse ilegal de arma de fogo. Um deles foi preso e condenado pela Lei 9.437/97, porque deu o azar de ser pego na vigência daquela Lei. No mês seguinte o outro amigo é flagrado na posse ilegal da arma de fogo, entretanto na vigência de uma nova Lei (10.826/03), que diz que ele não será punido tendo em vista que tem o prazo de 180 dias para entregar a arma, prazo este que foi prorrogado sucessivas vezes. Pergunta-se: seria justo um ficar preso e o outro solto?

 

Assim, diante de tudo que já mencionamos em relação à abolitio criminis termporalis, entendo que o posicionamento do STF, través da decisão tomada no HC 90995/SP, não foi acertada.

 

 

* Delegado de Polícia Classe Especial da PCDF. Especialista em Direito Penal e Processo Penal pelo ICAT/UDF. Pós-graduado em Gestão Policial Judiciária pela ACP/PCDF-FORTIUM. Professor de Direito Penal e orientação de monografia na UDF. Ex – Diretor-adjunto da Divisão de Sequestros. Ex-Chefe-adjunto da 1ª Delegacia de Polícia. Ex-Assessor do Departamento de Polícia Especializada – DPE/PCDF. Ex-Chefe-adjunto da DRR/PCDF. Ex-Analista Judiciário do TJDF. Ex-Agente de Polícia Civil do DF. Ex-Agente Penitenciário do DF. Ex-Policial Militar do DF. E-mail: vcoimbr@yahoo.com.br.

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Como citar e referenciar este artigo:
COIMBRA, Valdinei Cordeiro. O STF e a irretroatividade da abolitio criminis temporalis do Estatuto do Desarmamento: posição que contraria o entendimento dos demais Tribunais do Brasil. Florianópolis: Portal Jurídico Investidura, 2009. Disponível em: https://investidura.com.br/artigos/direitopenal-artigos/o-stf-e-a-irretroatividade-da-abolitio-criminis-temporalis-do-estatuto-do-desarmamento-posicao-que-contraria-o-entendimento-dos-demais-tribunais-do-brasil/ Acesso em: 16 fev. 2025