Direito Penal

Manifesto sobre o estupro

Manifesto sobre o estupro

 

 

Maria Berenice Dias*

 

 

O combate à violência contra as mulheres tem sido uma pauta político-jurídica permanente do movimento de mulheres no Brasil, chamando a atenção dos Poderes e exigindo ações públicas de contenção à violência. A luta pela igualdade ajudou a consagrar constitucionalmente o princípio da não-discriminação em função do sexo e o entendimento de que a violência contra as mulheres é uma violação aos direitos humanos. Mas a consagração desses direitos não tem recebido garantia de cumprimento de parte dos operadores do Direito, que têm dificuldade de assimilar e compreender as questões de gênero. Exemplo dessa resistência é a decisão do Supremo Tribunal Federal que criou o “estupro simples” e considerou hediondo apenas o estupro “qualificado”, ou seja, aquele que resulta em lesão grave ou morte da vítima. Essa decisão  imediatamente gerau tão forte corrente jurisprudencial, que levou o 4º Grupo Criminal do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul a conceder revisão criminal a uma condenação imposta anteriormente.

 

Ainda que a Lei dos Crimes Hediondos (Lei nº 8.072/90) seja considerada inconstitucional por corrente doutrinária e jurisprudencial – sob o fundamento de violar princípios constitucionais penais, como o da individuação da pena -, sua constitucionalidade foi reafirmada pelo próprio Supremo Tribunal Federal, continuando no ordenamento jurídico. Tal Lei elenca como hediondo o crime de estupro, uma das mais graves violências cometidas contra as mulheres, pois violadora de mais de um bem juridicamente tutelado, como a liberdade sexual e a integridade física, emocional e mental. A violência na prática do ato sexual indesejado é a essência do crime, que não tem qualificativos de maior ou menor hediondez, pois pressupõe a imposição ou anulação da vontade de uma pessoa. A posição da jurisprudência nacional, ao fazer distinção e graduação entre “estupro simples”, não-hediondo, e “estupro qualificado”, criou uma hierarquia que não está na Lei, banalizando a violência contra a mulher. Ao ignorar que o estupro é sempre um crime hediondo, beneficiou o estuprador e penalizou a vítima. É uma postura conservadora e sexista, porque se limitou a desqualificar um delito cometido contra as mulheres, tratando-o de forma preconceituosa e discriminatória. Ao não aplicar a Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher, a Justiça negou eficácia constitucional a instrumento internacional de direitos humanos, em especial dos direitos humanos das mulheres, consagrando a lógica do casuísmo androcêntrico.

 

Essa decisão pode ser considerada uma ofensa à luta das mulheres no Brasil, pois representa verdadeiro retrocesso contra as conquistas femininas, devendo ser aceita como um desafio, não só pelo movimento de mulheres, mas pela sociedade, para que a Lei dos Crimes Hediondos, enquanto não revogada, seja cumprida, pois é necessário dar um basta à discriminação e à violência contra as mulheres.

 

 

* Ex-desembargadora do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul. Vice-Presidente Nacional do Instituto Brasileiro de Direito de Família – IBDFAM

 

 

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Como citar e referenciar este artigo:
DIAS, Maria Berenice. Manifesto sobre o estupro. Florianópolis: Portal Jurídico Investidura, 2009. Disponível em: https://investidura.com.br/artigos/direitopenal-artigos/manifesto-sobre-o-estupro/ Acesso em: 13 mai. 2025