Desconsideração da pena mínima
Francisco César Pinheiro Rodrigues*
Antes de redigir qualquer artigo para difusão na internet, esse extraordinário recurso democrático para driblar o poder “de vida ou morte” das editoras — poder usualmente benéfico, como filtro, mas vez por outra tremendamente equivocado e assassino de novos talentos — costumo ler um bocado sobre o tema a ser abordado.
Obviamente, faço isso por dois motivos: primeiro, por retribuição à empatia do leitor que concedeu seu precioso tempo a um desconhecido, não obstante o dilúvio diário de textos bons que se oferecem a seus olhos; segundo, para não me desmoralizar intelectualmente, com fundamento. Falo assim porque é impossível agradar a todos e por vezes a crítica vem mais do fígado do que intelecto. Se, por uma razão qualquer — a menos intelectual possível —, a pessoa do autor do texto nos desagrada, dificilmente emitiremos uma opinião favorável a respeito da obra, ou do autor. Sua obra, mesmo boa ou ótima, corresponde, analogicamente, ao “fruto da árvore envenenada” — como diz a jurisprudência norte-americana, que invalida a prova obtida por meios ilícitos. “Árvore”, claro, é o autor. Como dizia um prestigiado desembargador paulista, já falecido, “não gosto que falem mal de mim com razão. Sem razão, podem falar mal à vontade”. E Machado de Assis escreveu que “na minha ausência podem até bater na minha cara”.
Essa necessária recomendação de estudar bem antes de escrever pode, no entanto, ter o seu lado inconveniente. Como tudo, quando
Somerset Maugham, um grande romancista e contista inglês de poucas décadas atxrás, faz referência, em um de seus contos — aparenta um fundo de verdade —, a um advogado britânico, relativamente moço, que, depois de enriquecer na profissão decidiu escrever o melhor e maior livro sobre a Idade Média. Queria fazer algo monumental. A obra mais abrangente, no mundo, sobre esse período. Fechou ou transferiu seu escritório, comprou casa numa ilha do Mediterrâneo e ali reuniu todas as obras já escritas sobre o período. Passou dez anos estudando e fazendo fichas. Quando ia iniciar a redação da portentosa obra morreu do coração. Viveu feliz durante uma década, mas no momento da morte deve ter lamentado tanta pesquisa, se houve tempo para isso.
Vou, aqui, sugerir algo que presumo útil à evolução do Direito Penal. Se, eventualmente, essa idéia já é bem conhecida, fica aqui meu pedido de desculpa. Tenho a desculpa de “não ser do ramo”. De qualquer forma, o presente texto serviria para reativá-la, porque, de minha parte, pelo menos, desconheço qualquer menção ou discussão a respeito.
Refiro-me, aqui, à conveniência de edição de uma lei federal autorizando o juiz a aplicar pena inferior à mínima legal, ou pena simbólica — em todas as normas de natureza penal —, desde que fundamentando porque fugiu da regra. Se o promotor, ou acusador particular, discordar da decisão — por achá-la benevolente demais —, poderá, claro, recorrer, cabendo à instância superior decidir se o juiz agiu, ou não, com o necessário equilíbrio, face ao caso concreto. E a vítima, representada nos autos, inconformada com tamanha mansidão estatal poderia talvez — conforme a nova legislação —, recorrer contra essa, para ela, incompreensível “benevolência”.
Não sei se essa sugestão é velha. Apenas não surgiu ante meus olhos, em leituras esparsas e relativamente poucas na área pena. O fato é que uma justiça rigidamente “tabelada” como a atual — fixando um tempo mínimo e um tempo máximo de cadeia —, é algo excessivamente mecânico, formal e por vezes injusto, conforme a peculiaridade da situação. Vejamos alguns exemplos.
Com freqüência, a mídia nos mostra casos de pessoas pobres que furtam artigos de pequeno valor em lojas ou supermercados. Filmado, o modesto ladrão é preso em flagrante e amarga algum tempo de cadeia. Como é excessivo o número de processos
Revelada a desproporção entre o crime e o tempo de encarceramento, o apresentador de televisão, eufórico, ansioso de impressionar os telespectadores e seu patrão — aumentando o índice de audiência —, berra que a pobre favelada foi presa por haver furtado um mero pote de margarina, ou um desodorante, enquanto ladrões de milhões estão soltos porque sua condenação não transitou em julgado.
Alguém poderá dizer que a lei já concede benefícios demais. Admita-se isso, mas o fato é que se o pequeno ladrão for reincidente — por exemplo, furtou primeiro um pote de margarina e, dois anos depois, um litro de leite — a lei obriga o juiz a uma severidade da qual não pode fugir.
Não se está aqui justificando ou estimulando pequenos furtos em lojas e supermercados. Todos — de favelados a milionários excêntricos, ou cleptomaníacos — devem temer a lei. Se o ladrão de lojas for visto com muita benevolência, não sendo nem mesmo detido no ato da subtração, é previsível que essa impunidade estimule invasões e saques de supermercados pelos miseráveis e aproveitadores. Em “apagões”, nos EUA, gente bem vestida foi filmada participando de saques
Uns poucos anos atrás, uma moça, de bom caráter e educação, saiu apressada de casa para uma providência qualquer relacionada com a medicina — talvez receber uma vacina, não me lembro. Obtido o atestado de um médico, o atestado seria apresentado, juntamente com outros documentos, em um determinado local, pleiteando inscrição em um concurso. Na rua, encontrando-se casualmente com um grupo de amigas, que também prestariam o mesmo concurso, estas a convidaram a irem juntas ao local de inscrição. A moça explicou às amigas que não poderia ir com elas porque teria que, primeiro, receber a vacina, em local distante. Aí as colegas disseram que seria bobagem todo esse trabalho porque o médico “X”, ali perto, forneceria o atestado mediante o pagamento de módica quantia. Explicaram que “todas elas”, sem exceção, haviam feito o mesmo, sendo isso mera rotina entre os candidatos. Aí, considerando-se “Caxias” demais, visto que todas as colegas obtinham o documento da forma mais fácil, a moça seguiu o mau conselho e procurou o médico infrator, ali perto. Ocorre que, por infeliz coincidência, a polícia estava de olho no médico e deu o flagrante justamente quando a referida moça saía com o atestado. Presa em flagrante, juntamente com o médico, não sei como terminou tudo, mas a eventual condenação penal deve ter marcado e prejudicado todo o seu futuro profissional.
Ainda que referida moça — de ótimos antecedentes — merecesse uma reprimenda, pelo menos “um susto”, para nunca mais repetir o ato, seria razoável que o juiz se sentisse autorizado a fixar, no seu caso, uma pena menor que a mínima, considerando sua falta de experiência e a cultura do “jeitinho” que contamina a sociedade brasileira. O médico merecia uma pena severa, mas a moça teria agido como milhares de outras. O mesmo se diga quando um motorista velho, meio caipira, após cometer uma pequena infração no trânsito, pensando ser rotina recomendável, prática, dar “um agrado” a um policial — evitando o acúmulo de “pontos” negativo no seu prontuário —, enfia no bolso do policial “uma cerveja” de dez ou vinte reais para não ser multado, recebendo, no ato, voz de prisão por tentativa de suborno. O policial era outro, houvera substituição e ele não sabia. Ainda que tecnicamente tenha havido uma tentativa de suborno, as circunstâncias do fato podem justificar uma pena inferior à mínima. Como já disse antes, toda “justiça tabela” pode conter exageros. Só por ser tabelada, porque os indivíduos variam além das tabelas.
As penas privativas de liberdade passaram, de uns duzentos anos para cá, a ser fixadas, pelo legislador, entre um mínimo e um máximo. Com isso evitava-se o arbítrio judicial. Não houvesse a “tabela” penal — um espaço onde o juiz poderia se movimentar em termos quantitativos —, um magistrado cheio de caprichos, embora circunspecto, poderia dar vazão às suas idiossincrasias e preconceitos, fixando penas altíssimas para qualquer delito. Não haveria qualquer segurança jurídica, e a sorte do réu dependeria apenas do azar de ser julgado por tal ou qual magistrado.
A “tabela” penal serve, porém, para as penas máximas. No entanto, para as mínimas não há mais razão para tanta rigidez, se o caso concreto sugere o contrário. Nenhum norma penal consegue prever as infindáveis variações do agir humano. Por isso, a necessidade da flexibilidade na pena mínima. Principalmente quando o órgão de acusação concordar, após proferida a sentença. Se o juiz e o promotor consideram, bem examinado o caso, que a pena poderia, no caso, ser inferior ao mínimo legal, não há porque ignorar os dois pontos de vista. Como já foi dito no início, se o promotor discordar dessa pena inferior ao mínimo, poderá recorrer. Se não o faz é porque, como homem e promotor de justiça, entendeu que as circunstâncias o caso recomendavam uma pena menor, ou até mesmo simbólica. Inclusive apagando o registro da condenação. Às vezes, um deslize mínimo bloqueia todo o futuro de um jovem, impedindo-o de inscrição em concurso público. Mancha indelével sobretudo injusta.
Essa possível inovação legislativa, aqui sugerida, dispensaria certas piruetas na análise da prova, ou contorções doutrinárias, expressas em algumas sentenças, em que o julgador vê-se obrigado a torturar a lógica para — por elogiável instinto de justiça —, absolver um réu quando a prova é clara no sentido de que houve, tecnicamente, um delito. Nesses casos o juiz percebeu que o ato do réu se enquadra, mecanicamente, na lei, mas revolta-se com a idéia de impor uma pena mínima que lhe parece exagerada, injusta, mesmo mínima. Cedendo a um honesto impulso interior de justiça, vê-se obrigado a torcer um tanto a análise probatória, ou a lógica, dizendo que “não ficou bem caracterizada”. Com esse artifício verbal — visando uma justiça superior — absolve o réu. O problema da contorção de estilo para fazer justiça é que, quem lê a sentença imagina que o juiz não raciocina bem, ou redige mal, quando não é o caso.
Essa autorização legal para desconsiderar, conforme o caso, a pena mínima, poderia ser estendida a outras disposições penais na área tributária, naqueles casos em que não houve má-fé do contribuinte e isso for bem justificado na sentença. Se o representante da Fazenda concordar com a sentença, por que não desconsiderar a multa mínima?
Reitero que, aprovada a sugestão, as penas mínimas continuariam existindo, como “norte” geral para os magistrados. A inovação consistiria apenas em a lei autorizar a “quebra” desse mínimo, se as circunstâncias excepcionais do caso assim recomendassem, e o juiz justificasse essa exceção. Esta não tem nada a ver com privilégios de casta, pois serviria para pobres, ricos e remediados.
O desenvolvimento deste tema e sua possível transformação em lei cabe aos inteligentes operadores da área penal, e talvez da tributária. Sempre me espantou a tendência dos juristas de escreverem brilhantemente sobre isso e aquilo, sem fazerem a necessária pressão no Legislativo para transformar idéias em realidade.
* Advogado, desembargador aposentado e escritor. É membro do IASP Instituto dos Advogados de São Paulo.
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