Direito Penal

Crime tentado e redução de pena

Crime tentado e redução da pena

 

 

Yvana Savedra de Andrade Barreiros*

 

 

Conforme o artigo 14, II do Código Penal, considera-se o crime tentado quando, iniciada a sua execução, ele não se consuma por circunstâncias alheias à vontade do agente. Na definição de Fragoso[1], “tentativa é a realização incompleta da conduta típica, que não se integra, em seu aspecto objetivo, por circunstâncias alheias à vontade do agente”.

 

Nesse sentido, a tentativa pode ser perfeita ou imperfeita. Na imperfeita, por circunstâncias alheias à vontade do agente, interrompe-se o processo executório e, por essa razão, não são praticados todos os atos de execução da conduta típica. Na perfeita, o agente consegue praticar todos os atos executórios, mas o crime não se consuma por razões alheias a sua vontade[2]. Se a consumação deixa de ocorrer por vontade do agente, configuram-se as hipóteses de desistência voluntária ou de arrependimento eficaz.

 

A apreensão da tentativa requer análise do iter criminis, ou caminho percorrido pelo agente até a consumação do delito. Esse caminho, segundo Prado[3], compreende: cogitação, preparação, execução e consumação.

 

O iter criminis se inicia, de acordo com Fragoso[4], no foro interno do agente com a cogitação (cogitatio), que consiste na idealização do fato criminoso e na resolução de praticá-lo. A seguir, vem a fase da preparação (conatus remotus), na qual o agente obtém os meios ou instrumentos com que pretende realizar a conduta, bem como predispõe modos e ocasião para a sua execução. Realizados os atos preparatórios, segue a execução (conatus proximus), que é a fase em que o agente começa a realizar a ação necessária e suficiente para obtenção do resultado criminoso. Por fim, vem a consumação (meta optata), que encerra o iter criminis e consiste na plena realização da conduta típica.

 

Zaffaroni e Pierangeli[5] entendem que a tentativa, sob a perspectiva do iter criminis, consiste num tipo penal incompleto, já que o tipo subjetivo é perfeito, mas o tipo objetivo não se realiza integralmente. Assim, entende-se que o crime tentado tem uma tipicidade subjetiva completa e uma tipicidade objetiva incompleta.

 

Sob a ótica do iter criminis, em relação à tentativa, pode haver dúvidas quanto aos limites entre os atos preparatórios, impuníveis,[6] e os atos executórios, puníveis. Várias teorias foram desenvolvidas com o fito de estabelecer esses limites e, a partir delas, estabeleceram-se critérios para sua fixação.

 

O critério objetivo-formal, de acordo com Capez[7], “parte de um enfoque objetivo, diretamente ligado ao tipo”. Segundo esse critério, ato executivo é todo aquele que tem o condão de realizar parte da ação típica, ou, como afirma Rodriguez Mourullo[8], há início de execução todas as vezes em que há correspondência formal de algum ato com a realização parcial de um tipo delitivo.

 

O critério subjetivo-material, por sua vez, não tem como foco a descrição da conduta típica, “mas o momento interno do autor, uma vez que não importa mais verificar se os atos executados pelo agente correspondem a uma realização parcial do tipo, mas sim examiná-los do ponto de vista subjetivo do respectivo autor”[9]. Segundo Urzúa[10], sob a perspectiva subjetivo-material, a tentativa tem início quando o autor, consoante seu plano delitivo, coloca-se em relação imediata com a realização da conduta típica.

 

Conforme Bitencourt[11], no sistema jurídico-penal brasileiro, que tem como princípio a legalidade, adota-se o critério objetivo-formal, devendo, contudo, ser utilizado, complementarmente, o critério subjetivo-material, pois, do contrário, ficariam impunes situações que, embora não caracterizem execução, dela são indissociáveis –  por exemplo, uma situação em que o agente adentra uma residência com o ânimo de furtar e é surpreendido antes mesmo de subtrair qualquer coisa.

 

Esse critério, contudo, deve ser utilizado apenas subsidiariamente, com extrema cautela e somente em situações em que seja absolutamente inequívoca a intenção do agente. Há divergências na doutrina quanto à possibilidade da sua utilização.

 

De qualquer modo, no Superior Tribunal de Justiça, há alguns precedentes em que houve a utilização desse critério para o reconhecimento da tentativa de furto, em situações em que o agente, após adentrar o local, foi impedido de consumar o crime, antes mesmo de efetuar qualquer subtração. São exemplos:

 

 

FURTO. ARROMBAMENTO. ATO EXECUTÓRIO. TENTATIVA. CONFIGURAÇÃO. Considera-se iniciada a execução do crime de furto quando o agente é preso em flagrante, no interior de estabelecimento comercial, por ele arrombado, com o fim de subtrair coisa móvel alheia. No crime de furto, para que reste configurada a tentativa, suficiente o início da execução, não sendo exigível a efetiva subtração. Recurso especial conhecido e provido.[12]

 

 

RECURSO ESPECIAL. FURTO QUALIFICADO PELO CONCURSO DE AGENTES. Uso de barra de ferro para ingresso em residência de terceiro com “animus furandi”. Não consumação do ingresso por interferência de terceiros. Atos que se caracterizam como início de execução. Recurso conhecido e provido.[13]

 

 

Configurada a tentativa, incide, obrigatoriamente, a minorante prevista no parágrafo único do artigo 14, qual seja: “salvo disposição em contrário, pune-se a tentativa com a pena correspondente ao crime consumado, diminuída de um a dois terços”.

 

A redução de pena encontra seu fundamento no fato de que a conduta antijurídica possui, conforme já se enfatizou, um aspecto subjetivo e outro objetivo. Embora o aspecto subjetivo (vontade dirigida a um resultado lesivo) se apresente completo na tentativa, o aspecto objetivo incompleto importa uma menor ofensa ao bem jurídico, o que vem a justificar a redução de pena a ser operada.[14]

 

Na lei penal, entretanto, não há parâmetros estabelecidos sobre o quantum de redução de pena que, dentro da margem legal de um a dois terços, deve ser aplicado, se não houver disposição em contrário. Sobre esse aspecto, o entendimento do Supremo Tribunal Federal tem sido no sentido de que a redução da pena deve operar-se sob a ótica do iter criminis:

 

 

EMENTA: HABEAS CORPUS. TENTATIVA DE LATROCÍNIO. PENA-BASE. DOSIMETRIA. FUNDAMENTAÇÃO. ITER CRIMINIS. REDUÇÃO ADEQUADA PARA A TENTATIVA. 2. Variando a pena em abstrato entre 20 e 30 anos, mostra-se adequada a pena-base de 24 anos para o crime de latrocínio, à consideração da circunstância judicial da culpabilidade, que, em grau acentuado, é fundamento bastante para fixá-la acima do mínimo legal. 3. A redução pela tentativa tem como parâmetro o iter criminis, de modo que quanto mais próxima a consumação menor é a redução. No caso concreto, uma das vítimas alvejadas não foi atingida por acaso, sendo que a outra foi baleada em área não vital devido a má pontaria do paciente, o que justifica a redução da pena pela metade. Ordem denegada.[15]

 

 

O Superior Tribunal de Justiça utiliza o mesmo critério:

 

PENAL – TENTATIVA DE LATROCÍNIO – DOSIMETRIA DA PENA – REDUÇÃO PELA METADE – INEXISTÊNCIA DE CONSTRANGIMENTO ILEGAL. – Consoante entendimento desta Corte, a redução pela tentativa varia de acordo com o iter criminis percorrido pelo agente na prática delituosa. Assim sendo, quanto mais o agente beirar os limites consumativos, menos será a redução imposta. Dentro dessa linha, o mecanismo dosimétrico da tentativa vale-se das circunstâncias específicas da conduta incompleta do autor. Portanto, correta a dedução preconizada pela decisão da Corte a quo, quando a isso remete o quantum estabelecido. – Ordem denegada.[16]

 

 

Sob a perspectiva do iter criminis, devem ser considerados os atos executórios que foram efetivamente praticados pelo agente, de modo que, quanto mais próximo da consumação ficou o delito, menor deverá ser a redução aplicada sobre a pena a ele cominada.

 

Esse critério é bastante adequado, porque, como lembra Fragoso[17], sua natureza é objetiva, levando em conta apenas as circunstâncias da própria tentativa e não as do crime, que devem ser consideradas por ocasião da fixação da pena-base.

 

 

REFERÊNCIAS

 

 

BITENCOURT. Cezar Roberto. Manual de Direito Penal: parte geral, v. 1. 7. ed. rev. e atual. São Paulo : Saraiva, 2002.

BRASIL. Distrito Federal. Superior Tribunal de Justiça. REsp 111.281 – Relator Min. Edson Vidigal – 5. T. Julgado em 03.12.1998, DJ 08.03.1999 p. 238.

BRASIL. Distrito Federal. Superior Tribunal de Justiça. REsp 113.603/DF, Rel. Ministro José Arnaldo Da Fonseca– 5. T. Julgado em 01.09.1998, DJ 28.09.1998 p. 89.

BRASIL. Rio de Janeiro. Supremo Tribunal Federal. HC 85834 – Relator: Min. Eros Grau. Publicação: DJ 12-08-2005, p. 00005 – Ement. Vol. 02200-1, p. 00143 – RTJ. Vol -00194-02 p. 00671.

BRASIL. São Paulo. Superior Tribunal de Justiça. HC 28611 – Relator. Min. Jorge Scartezzini – 5. T. Julgado em 07.10.2003, DJ 19.12.2003 p. 526.

CAPEZ, Fernando. Curso de Direito Penal: Parte Geral. 3. ed. rev. e ampl. São Paulo : Saraiva, 2001.

FRAGOSO, Heleno Cláudio. Lições de Direito Penal: parte geral. ed. rev. por Fernando Fragoso. Rio de Janeiro : Forense, 2004.

PRADO, Luiz Régis. Curso de Direito Penal brasileiro: volume 1: parte geral : arts. 1º a 120. 3. ed. rev., atual. e ampl. São Paulo : Revista dos Tribunais, 2002.

ZAFFARONI; PIERANGELI, José Henrique. Manual de Direito Penal Brasileiro: parte geral. 4. ed. rev. São Paulo : Revista dos Tribunais, 2002.

 

 

* Doutoranda em Ciências Jurídicas e Sociais (Universidad del Museo Social Argentino). Especialista em Língua Portuguesa (Pontifícia Universidade Católica do Paraná). Graduada em Direito (Universidade Positivo). Graduada em Comunicação Social – Jornalismo (Pontifícia Universidade Católica do Paraná)

 

 

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[1] FRAGOSO. Lições de Direito Penal…, p. 295.

[2] CAPEZ. Curso de Direito Penal…, p. 220.

[3] PRADO. Curso de Direito Penal brasileiro…, p. 371.

[4] FRAGOSO. Lições de Direito Penal…, p. 295-296.

[5] ZAFFARONI; PIERANGELI. Manual de Direito Penal Brasileiro…, p. 700.

[6] A Lei 7.170/83, em seu artigo 15, § 2º, pune os atos preparatórios do crime de sabotagem.

[7] CAPEZ. Curso de Direito Penal…, p. 219.

[8] Apud CAPEZ. Curso de Direito Penal…, p. 219.

[9] CAPEZ. Curso de Direito Penal…, p. 219.

[10] Apud CAPEZ. Curso de Direito Penal…, p. 220.

[11] BITENCOURT. Manual de Direito Penal…, p. 362.

[12] BRASIL. Distrito Federal. Superior Tribunal de Justiça. REsp 111.281 – Relator Min.

 Edson Vidigal – 5. T. Julgado em 03.12.1998, DJ 08.03.1999 p. 238.

[13] BRASIL. Distrito Federal. Superior Tribunal de Justiça. REsp 113.603/DF,

Rel. Ministro José Arnaldo Da Fonseca– 5. T. Julgado em 01.09.1998, DJ 28.09.1998 p. 89.

[14] ZAFFARONI; PIERANGELI. Manual de Direito Penal Brasileiro…, p. 700.

[15] BRASIL. Rio de Janeiro. Supremo Tribunal Federal. HC 85834 - Relator: Min.
 Eros Grau. Publicação: DJ 12-08-2005, p. 00005 - Ement. Vol. 02200-1, p. 00143 – RTJ. Vol -00194-02 p. 00671.

[16] BRASIL. São Paulo. Superior Tribunal de Justiça. HC 28611 –

 Relator. Min. Jorge Scartezzini – 5. T. Julgado em 07.10.2003, DJ 19.12.2003 p. 526.

[17] FRAGOSO. Lições de Direito Penal…, p. 300.

Como citar e referenciar este artigo:
BARREIROS, Yvana Savedra de Andrade. Crime tentado e redução de pena. Florianópolis: Portal Jurídico Investidura, 2008. Disponível em: https://investidura.com.br/artigos/direitopenal-artigos/crime-tentado-reducaopena/ Acesso em: 04 dez. 2024