Direito Penal

Contribuição previdenciária. Crime de apropriação indébita

Contribuição previdenciária. Crime de apropriação indébita

 

 

Kiyoshi Harada *

 

 

Até a primeira metade da década de sessenta, os crimes cometidos contra os interesses financeiros da Fazenda Pública eram apenas aqueles definidos no Código Penal. Hoje, só restou o crime de contrabando ou descaminho no estatuto repressivo geral. Tudo o mais foi substituído por leis específicas.

    

O primeiro estatuto específico surgiu com o advento da Lei nº 4.729, de 14-7-65, a chamada Lei de Sonegação Fiscal. Ela era uma lei de eficácia reduzida, porque cominava pena máxima de dois anos de detenção, com a obrigatoriedade de sua conversão em pena de multa pecuniária, em se tratando de criminoso primário, quando, então, incidia a prescrição bienal. Sob o manto do princípio da especialidade, ninguém era punido sob a égide dessa lei.

    

Ao depois, veio a Lei nº 8.137, de 27-12-90, definindo os crimes contra a ordem tributária. Em seu art. 1º definiu várias hipóteses de crimes de dano, ou seja, supressão ou redução de tributo mediante condutas aí especificadas. O que era crime de conduta, no regime da Lei nº 4.729/65, passou a ser crime de dano no novo estatuto repressivo. Pode-se dizer que a expressão ‘prestar falsa declaração ou omitir total ou parcialmente, informação que deva ser produzida a agentes das pessoas jurídicas de direito público interno, com a intenção de eximir-se, total ou parcialmente, do pagamento do tributo’ (art. 1º, I da Lei nº 4.729/65) foi substituída pela expressão ‘suprimir ou reduzir tributo…’ mediante as seguintes condutas: I – omitir informações, ou prestar declaração falsa às autoridades fazendárias’ (art. 1º, I da Lei nº 8.137/90).

    

Convolado o crime de conduta em crime de dano, segue-se que não há mais que se cogitar em tentativa, porque não é passível de fracionamento o ato de suprimir ou reduzir tributo. Segue-se, também, que o processo administrativo tributário, onde o contribuinte impugna a exigência do tributo, constitui-se em uma prejudicial da ação penal. Não é por outra razão que o art. 83 da Lei nº 9.430/96 condicionou a representação fiscal, para fins penais, ao término do respectivo processo administrativo. Na Adin impetrada pelo Procurador-Geral da República contra o referido art. 83, o Plenário do Supremo Tribunal Federal indeferiu a medida cautelar requerida (Adin nº 1571-1/DF, Rel. Min. Néri da Silveira).

    

Entretanto, a Lei nº 8.137/90, estatuiu, em seu art. 2º, os chamados crimes de conduta, reproduzindo algumas das hipóteses do art. 1º da Lei nº 4.729/65. Nessas hipóteses, comporta a modalidade de tentativa, bem como, haverá independência das esferas tributária e penal.

    

No que tange à supressão ou redução da contribuição social retida na fonte, dispunha a letra ‘d’ do art. 95 da Lei nº 8.212, de 24-7-91:

 

Art. 95 – Constitui crime:

…………………………………………

d) deixar de recolher, na época própria, contribuição ou outra importância devida à Seguridade Social e arrecadada dos segurados ou do público

 

    

A pena prevista para o crime acima era a do art. 5º da Lei nº 7.892/86, ou seja, reclusão de dois a seis anos, e multa. Esse estatuto específico superveniente passou a prevalecer sobre os crimes definidos na lei anterior, ou seja, na Lei nº 8.137/90.

Acontece que a Lei nº 9.983, de 14-7-2000, veio acrescentar ao Código Penal o art. 168-A, nos seguintes termos:

 

Art. 168-A – Deixar de repassar à previdência social as contribuições recolhidas dos contribuintes, no prazo e forma legal ou convencional;

Pena – reclusão, de 2 (dois) anos a 5 (cinco) anos, e multa.

§ 1º – Nas mesmas pena incorre quem deixar de:

I – recolher, no prazo legal, contribuição ou outra importância destinada à previdência social que tenha sido descontada de pagamento efetuado a segurados, a terceiros ou arrecadada do público;

II – ……………………….

§ 2º – É extinta a punibilidade se o agente, espontaneamente, declara, confessa e efetua o pagamento das contribuições, importâncias ou valores e presta as informações devidas à previdência social, na forma definida em lei ou regulamento, antes do início da ação fiscal.

§ 3º – É facultado ao juiz deixar de aplicar a pena ou aplicar somente a de multa se o agente for primário e de bons antecedentes, desde que:

I – tenha promovido, após o início da ação fiscal e antes de oferecida a denúncia, o pagamento da contribuição social previdenciária, inclusive acessórios, ou

II – o valor das contribuições devidas, inclusive acessórios, seja igual ou inferior àquele estabelecido pela previdência social, administrativamente, como sendo o mínimo para o ajuizamento de suas execuções fiscais

 

    

Ora, a conduta descrita no art. 168-A do Código Penal subsume-se à hipótese prevista no art. 2º, II da Lei nº 8.137/90:

 

Art. 2º – Constitui crime da mesma natureza (contra a ordem tributária)

I – ……………………………………………………..

II – Deixar de recolher no prazo legal, valor de tributo ou de contribuição social, descontado ou cobrado na qualidade de sujeito passivo de obrigação e que deveria recolher aos cofres públicos.

……………………………………………………………..

Pena – detenção, de seis meses a dois aos, e multa.

 

    

Grassa séria controvérsia jurisprudencial quanto à caracterização de crime pelo não recolhimento de tributo retido na fonte, tendo em vista o princípio disposto no inciso LXVII, do art. 5º da CF, que veda a prisão civil por dívida, salvo a do responsável pelo inadimplemento de obrigação alimentícia e a do depositário infiel. Ressalte-se que o Brasil é signatário do Pacto de São José da Costa Rica, que veda a prisão por dívidas. E tributo não deixa de ser uma dívida, mais precisamente, dívida tributária. O referido Pacto foi aprovado pelo Decreto Legislativo nº 27/92 e internado pelo Decreto nº 678/92, encontrando-se em pleno vigor, desde novembro de 1992.

    

Entendemos que, se punível for a conduta descrita no art. 168-A do Código Penal, deve ser aplicado o inciso II, do art. 2º da Lei nº 8.137/90, que define os crimes contra a ordem tributária e que comina a pena de 6 (seis) meses a 2 (dois) anos de reclusão, em virtude do princípio da especialidade. De qualquer forma, na hipótese de conflito de normas penais, impõe-se a aplicação da lex mitior, conforme pacífica jurisprudência de nossos tribunais (RT 491/311; Lex Jurisprudência do STJ e TRF, v. 42, p. 501 e v. 59, p. 515).

 

SP, 20.03.03.

 

* Especialista em Direito Tributário e em Ciência das Finanças pela FADUSP. Professor de Direito Tributário, Administrativo e Financeiro. Conselheiro do Instituto dos Advogados de São Paulo. Ex Procurador-Chefe da Consultoria Jurídica do Município de São Paulo.

 

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Como citar e referenciar este artigo:
HARADA, Kiyoshi. Contribuição previdenciária. Crime de apropriação indébita. Florianópolis: Portal Jurídico Investidura, 2009. Disponível em: https://investidura.com.br/artigos/direitopenal-artigos/contribuicao-previdenciaria-crime-de-apropriacao-indebita/ Acesso em: 16 fev. 2025